terça-feira, 25 de dezembro de 2007

A bela adormecida

A melhor prenda de Natal foi ouvir a Laurinha dizer sempre que desfazia um embrulho: "Era mesmo isto que eu queria!". Depois do esforço em modo trapalhão para retirar o laço que estrangulava o presente e de rasgar o papel sem direcção, dizia, enquanto pousava os olhos em alguém: "Era mesmo isto que eu queria". Até as meias aos losângulos que não pediu ao Pai Natal, oferecidas pela Arminda de 88 anos, lhe mereceram reacção idêntica. O livro de lombada grossa, de muitas letras, que só poderá ler lá para 15 anos foi abraçado. Enfim. Não parou. Foi difícil convencê-la a deitar-se na noite de 24. Quando a mãe se despediu dela na cama, esta desabafou que tinha recebido tudo, tudo o que queria. O Pai Natal tinha sido muito seu amigo. Mas no dia 25, Laurinha estava outra. Rabugenta, choramingas. Queria dormir mais. Saltou de uma cama para outra e a mãe teve de andar atrás dela, enquanto lhe dizia que o velhote cabeça de vento tinha deixado mais prendas na casa da outra avó. Laurinha não se rendeu facilmente. A tia compreendia-a muito bem. Se tivesse tido exactamente tudo o que queria numa noite, não quereria acordar.

domingo, 16 de dezembro de 2007

À sua maneira

Passava de autocarro quando reparou num peão que tinha um rosto familiar. Era o João: mais largo, é certo, com um charuto na boca que segurava sem mãos – sempre gostou de ser excêntrico e praticava-o. Foi o suficiente para a fazer lembrar do que tinha acontecido. Ele esteve com Josefa sem reparar bem nela. Ela cedo viu isso. É tão importante que gostem de nós de uma forma que nos agrade. Esse é o segredo para a longevidade das relações, pensou em sistema de piloto automático, sem usar as regras lógicas do amigo Aristóteles, que tanta dor de cabeça lhe deu na faculdade. É por isso que há quem se vicie e depois não consiga deixar para trás relações com quem os admira. O rabo saltou do banco. A travagem do autocarro interrompeu o devaneio. No caso do João, ele achava Josefa inteligente, boa companhia, estimulante intelectualmente e sexy. Mas tudo isso à sua maneira. Josefa preferiu o Nuno, que via nela uma menina inquieta que acalmava com poesia.

Fim-de-semana

Estava numa semana perdida à partida. Terça-feira foi pior que segunda, quarta, pior que terça, e por aí adiante. Nada a fazia mover um dedo mais do que o previsto. Tomar banho foi complicado. Cada ensaboadela parecia um degrau alto a subir. Não gostou do café. As calças romperam-se quando as vestiu. O cabelo não ficava bem de maneira nenhuma: nem apanhado nem solto. Mantinha-se a falta de informação sobre o Roger. Parecia viver o contrário do início. No princípio, havia excesso de informação. Não a largava: por mail, msn, telemóvel, correio tradicional. O postal que lhe mandou um dia ficará na caixa do very importante for ten years. Dizia: Só liguei para te dizer que te amo. Era a gozar. A referência era óbvia. Quando tinha dúvidas, ouvia a música. Agora: nada. Carolina estava à beira de um esgotamento amoroso. Não sabia o que se tinha passado. A última vez que estiveram juntos, ele disse-lhe que tinha gostado muito de passar o fim-de-semana com o Xavier. O olhar ficou finamente terno quando o disse. Carolina passou o fim-de-semana com a Clara. Viram DVDs e fizeram o blog. Será que escreveram alguma coisa desagradável?

sábado, 10 de novembro de 2007

A falha

Encontrei-o no café onde apenas fui comprar uma caixa de fósforos que nem sequer era para acender um cigarro. Tinha deixado de fumar e estava a conseguir resistir à tentação de falar de coisas pessoais e difíceis sem ter ajuda do fumo, que eu achava que me aclarava as ideias. Literalmente contraditório, não? Acabei por me sentar e perceber que ele continuava na mesma. Com a mesma namorada, os mesmos problemas, basicamente relacionados com a incapacidade de tomar decisões. Ele disse-me que eu também estava, embora não me sentisse nada na mesma. Estava uma pessoa realista. Nunca o tinha sido. Quando tivemos um caso, era uma criativa andante. Agora não. Deixei-o falar. Ficar com a boca seca de tanto dar à língua. Parecia que estava com fome de o fazer. Chegou a um ponto em que desliguei. Desviei a atenção para o casal que estava ao meu lado. Percebi que ainda não teria passado meia-hora sobre uma boa cambalhota. Estava visto o que tinha falhado. Não tinha sido a namorada que sempre existiu. Ele gostava que eu o ouvisse, como se a minha aprovação fosse importante. No meu lado, nunca houve grandes confidências, fiquei pela epiderme. Quando sai dali tinha o enigma resolvido. Ele nunca tinha gostado grande coisa de mim. Acho que ele também não devia gostar grande coisa da namorada. Há quem nunca goste grande coisa de ninguém. Tenha essa deficiência.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Fora do sítio

Correu mal o dia. A colega de trabalho mandou uma mensagem bem cedo a dizer que o namorado estava a ser operado à cabeça, por causa de uma hemorragia. Parecia que um osso do pescoço tinha crescido demais ou que estava fora do sítio, mas afinal era mais do que isso. E agora não podia dizer-lhe que tudo ia correr bem, pois da última vez que o fez a sua previsão falhou. Não se pode errar duas vezes em assuntos que metem vida e morte. Sentiu um vómito a formar-se dentro dela. A digestão parou. O seu director tratou-a bem demais antes de lhe pedir para ficar 10 horas fechada numa conferência sobre temáticas de economia. A nova estagiária não percebeu ainda que não trabalha em função dela mas das muitas solicitações que lhe exigem respostas rápidas. A sua amiga mais frágil liga-lhe mas depois não fala do que a preocupa. Só diz futilidades. Rouba-lhe tempo. O namorado é um chato. Até no msn quer saber isto e aquilo. Nunca sabe onde está nada na cozinha. Mariana funciona como um livro de instruções de culinária à distância. Ele nunca aprende nada e anda muito palavroso ultimamente. Como Mariana passa o dia a falar com pessoas, chega à noite a querer que não lhe digam nada. Se só a olharem e como deve ser, de forma a que entenda, tanto melhor. Mariana resolveu não ir para casa. Enfiou-se na primeira tasca que encontrou com gente de dentes estragados. Falava-se alto. Pediu um copo de vinho da casa. Quando deu uma trinca num pastel de bacalhau encontrou um brinde. "Ai, se a ASAE vem a este estabelecimento, estão lixados", pensou. Era um anel. Uma aliança de metal branco. Tinha gravado na parte de dentro: Mariana, 25/10/2003. Como tinha o seu nome, guardou-a.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um café bem quente

Quando se é muito amado durante a infância e adolescência torna-se difícil ficar satisfeito com a meia-dose que pode vir com os amores seguintes. O contrário também sucede. E é igualmente mau. A Josefa não sabia o que era o amor incondicional. Sempre se contentou com pouco. Habituou-se a ficar contente com um cafezinho quente pela manhã, com o piropo do senhor da mercearia - acho que só continuava a ir lá por causa disso - com o roncar do Salvador e as cócegas que este lhe fazia na cama. Se ressonava era porque dormia tranquilamente na sua companhia. Podia ser um bom sinal. Sem dramas. Se ele fazia o jantar, Josefa apontava que lhe estava a dever uma massagem aplicada de hora e meia. Daquelas que até deixam os músculos dos braços a doer de quem a faz. Achou que ele gostava o suficiente dela para avançarem para um filho. Mas ele surpreendeu-a pedindo-lhe que se desfizesse dele. Disse-lhe que ela não percebia nada de amor e que não era sensato darem esse passo. Josefa propôs então que se separassem. Ele não quis. Queria estar com ela, mas não queria esse tipo de ligação que alguns casais têm. Não queria nada que se parecesse com um final feliz. Odiava palmas e finais felizes. Saía sempre antes da sessão do cinema terminar.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Outra face da lua

Encontraram-se de novo na outra face da lua. Há três anos atrás, na rua do Norte, agora em plena baixa, onde as ruas desaguam para mais um pequeno pátio com calçada portuguesa. Francisco trazia os phones colocados. Só os tirou quando se esgueirou para a cumprimentar. Ela trazia um livro cor-de-rosa entre mãos que de depressa arrumou na mala para não parecer que o exibia. Era o livro "Rei", de Zui Zink e ilustrações de António Jorge Gonçalves, que conta uma viagem ao Japão, resumiu Alice, para passar adiante. De cabelo desalinhado, Francisco ainda ficava mais interessante. Era como se o exterior selvagem espelhasse as ideias poderosas que ia reunindo lá dentro. Alice contou-lhe que a árvore onde se encostavam nas férias já só tinha um tronco. Os outros dois foram cortados. Cresceu sozinha num baldio, não tinha sido plantada por ninguém, e foi-se erguendo com três troncos, igualmente largos e curvados que se pareciam a bancos. Os três amigos sentavam-se ali no Natal e na Páscoa para fazer o ponto da situação das suas vidas. Alice combinou o chá com o Francisco porque queria saber se ele tinha levado um safanão que justificasse a extracção de mais um tronco. Na altura em que o primeiro foi cortado, Júlia tinha anunciado que estava grávida. Francisco não lhe respondeu logo. Desviou a conversa. Quando se virou de frente para ela de forma a encará-la, disse-lhe que não era nada disso. Não era o tronco dele certamente. "Ainda acreditas nessas coisas?". Nenhum dos dois acreditava. Mas Alice queria confirmar que não era assim. Francisco disse-lhe que ela ia gostar de saber. Foi o próprio quem o cortou num dia de raiva. Detestava violência, armas, mas tinha de fazer alguma coisa insane naquele dia injusto. Pegou num machado e deu-lhe com toda a sua força. Ela chorou sem dar conta disso. Ficou cheia de frio a seguir. Ele calou-se. E corrigiu: "Não foi nada disso, vão construir lá uma casa, já têm licença camarária e tudo e quiseram retirar a árvore dali". Prosseguiu: "E sabes o que aconteceu? Só conseguiram tirar aquele ramo. Vão pedir uma grua para escavarem o terceiro tronco e as raízes. Foi um trabalho difícil. Quanto a mim, fica descansada, ainda moro em casa dos meus pais. Ou melhor, vou vivendo na casa da namorada e quando ela corre comigo volto para a minha mãe". Alice perguntou-lhe se sabia quando iam retirar a árvore. Francisco respondeu-lhe com sentido prático: "Há coisas que é melhor não saber".

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Persianas

Durante anos criou vários mundos paralelos na sua cabeça. Um deles tinha países e num desses países as pessoas eram transparentes. Havia uma ou outra excepção. Há sempre. Quando as pessoas faziam a digestão fechavam as cortinas, por exemplo. A linguagem seguia o mesmo registo. E o resultado era avassalador. Tornava-se contagiante ouvir o mais sórdido e o mais apaixonante por um motivo pequenino. Dizia-se tudo, verbalizava-se cada inquietação e por isso não existiam problemas de memória. Não se guardavam mágoas. As dúvidas disparavam na ocasião e não cresciam. As declarações de amor tinham muitas partes desagradáveis lá pelo meio. Quase não se faziam conversas de circunstância. O mais parecido que detectou com isso foi: "As tuas persianas estão a ficar mais fechadas". Ao que ela respondeu: "Estou a pensar no Rui, desculpa!"

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Não digas adeus

"Ai, amiga, amiga, estou com uma mama de fora. Será que alguém me viu da janela?". Não era a primeira vez que acontecia. Rosita era assim. Devia ter um ombro curto para as alças do soutien e volta e meia elas deslizavam por ali abaixo. Ria-se muito ao telefone enquanto contava à Carolina. "Ai, não estás a acreditar, está um homem do outro lado a dizer adeus, o que faço? Respondo?". Carolina disse que não. Se ele viu o peito de Rosita, era melhor que ela não lhe desse troco. Podia ser um tarado. Mas na cabeça de Rosita, não havia maldade. "Também se viu", disse, " talvez o tenha animado, há quanto tempo não verá ele um peito empinado?", continuou ela. Carolina queria contar-lhe que a colega mais insuportável do trabalho tinha arranjado um namorado, mas ela interrompia-a. Não a deixava terminar. Rosita lembrou que uma vez estava a sair da casa de banho do café Baliza e que só reparou que estava destapada depois de alguém lhe dizer: "Golo, golo, ah descarada!". Tinham as duas tido um dia de trabalho para esquecer e não conseguiam parar a galhofa. Finalmente, Carolina consegui contar que o namorado da mais rude e atabalhoada colega era adorável, adoravelmente gay. "O quê?". "Isso que acabaste de ouvir". Será que parece e não é? Também o Luís parecia, ainda que pouco, e afinal não era. Carolina foi burra por se ter deixado levar pela desconfiança. Transformou logo em amizade o que tinha potencial para ser uma relação mais envolvente. Verdadeiramente, não lhes interessava muito se o namorado da irritante era ou não gay. Naquele momento só não podiam perder o ritmo da conversa. Rosita ainda disse: "Na próxima quarta-feira, quando nos encontrarmos no Funicular, mostro-lhe uma mama. Dependendo da sua reacção, veremos!".

domingo, 7 de outubro de 2007

Escadas rolantes

Dois casos de sucesso amoroso começaram em palcos pouco finos. Claro que para os envolvidos não foi visto dessa maneira. A prática também nos diz que qualquer arraial pode ser um baile sofisticado quando os sujeitos sentem a inclinação. Vejamos: Rui andava tão desiludido que resolveu ir ao almoço de Natal da empresa. Bem, foi lá, entre cortesias e frases de ocasião que reparou na Luísa. Naquele ambiente inóspito a vários níveis - até o comportamento das pessoas era mecânico, balofo - sobressaiu alguém. Foi assim que a viu pela primeira vez. Com Raquel, a inclinação nasceu enquanto ele descia as escadas rolantes do Coimbra Shopping. Havia barulho desgradável, frenesim, música de elevador, gente a encher os degraus. Num dos degraus, viu um rapaz que já tinha visto não sabia a onde. Sorriram a medo por não terem razão para se cumprimentarem. Descobriram mais tarde que nunca se tinham visto antes. Serão os cenários importantes para o primeiro contacto? Para eles, não foi. Depois, perguntei como foi o primeiro beijo. As respostas foram igualmente inesperadas: "Foi desajeitado", disse a Raquel. "Não me lembro bem, já demos tantos depois disso", saiu da boca do Rui.

Noite branca

Esteve aflita toda a semana. O director parecia que estava a implicar com ela. Sonhou com ele duas vezes: na terça e quinta-feira. Numa delas, ele pedia-lhe que corresse até que as veias saltassem das mãos. Josefa estava cansada. Sabia disso. Mas tinha poucas alternativas. Já não podia tirar férias: gastou-as com a doença do avô. Nem a hipótese de uma viagem a animava. Na sexta-feira bebeu vodka antes de sair para a rua para tentar rasgar com o que era a sua vida: 11, 12 horas de trabalho intenso; fazer jantares rápidos para o Alexandre (porque lhe deu para dizer que era boa cozinheira e deixou instituir que a cozinha era a sua área da acção?) ; ter encontros com a mãe na tentativa de a ajudar na recuperação psiquiátrica. Não parou de beber bebidas brancas toda a noite. Há dois anos que não o fazia. Evitava-o. Com o Alexandre não era preciso grandes estímulos. Ele sabia sempre como lhe dar a volta. Desde o dia em que lhe disse que por ela emagrecia, ela deixou-o ficar. Dia após dia. Emagreceu, sim, deixou crescer a barba e tornou-se mais pontual. Naquele noite, abusou do vodka. Josefa não conseguia parar de dançar. Lembrou-se de "Os cavalos também se abatem". Falou com muita gente que mal conhecia. Deitou conversa fora por três meses, pelo menos! Alexandre resolveu ficar um pouco à parte. E Josefa resolveu ir a um "after" (hours). Alexandre despediu-se sem lhe tocar. Ela deixou-o ir. No regresso a casa, ainda fervilhava em energia mental, embora o corpo já não lhe respondesse. Quando abriu a porta do quarto, não viu o Alexandre. Passaram-lhe mil coisas pela cabeça. Ficou à toa, chorou. Talvez as coisas já não andassem afinadas. Andou distraída. Seria o princípio do fim? O pior é sempre o princípio do fim. Dormiu como se morresse. No outro dia, acordou com o Alexandre a seu lado. Afinal, ele não foi dormir para casa da vizinha, sua amiga. Esteve a dormir no sofá enquanto ela inventava problemas.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Que droga!

"Deixei-me de substâncias, estou viciada na lucidez". Foi por causa de uma frase destas que Mariana começou a prestar atenção à conversa que se passava ao lado, na mesa vizinha do café. A rapariga de rastas no cabelo e camisola lacoste prometia mais revelações fora do comum. De voz firme, contava que estava farta das distracções: de se deixar levar pelos pensamentos que lhe davam um gozo que não ia além dos 20 minutos. Chegava a pensar que conseguia o que mais queria fazendo exercícios de concentração, fixando, por exemplo, o olhar no ponto mais alto de um prédio ou então seguindo o percurso de um avião que rasga os céus. Se o céu estava zul forte e o avião deixava um rasto recto e bem desenhado, acreditava que o dia lhe traria brindes. Durante anos, pediu aos aviões que lhe trouxessem isto daqui e acolá. Como se com eles, chegassem as poções milagrosas. Era tudo para entreter a mente. Tudo valia desde que entretesse. Não conseguiu aguentar o Rui muito tempo por ele ser muito materialista. Ele olhava para o que rodeava com régua e esquadro, já para não falar nos números que atribuía a tudo. A ela deu-lhe 19, vá lá. Mas às vezes dizia-lhe que ela estava um sete. O cinco era reservado para os dias da tensão pré-menstrual. Mariana ouvia o mais atentamente possível. Estava vento e tinha de adivinhar o resto de algumas frases. A rapariga de rastas no cabelo e camisola lacoste contava à amiga que estava agora viciada na lucidez. Isso é que era contra corrente! "Vejo os outros mais perto de mim, apercebo-me melhor como são, do que têm falta", disse. "Eu? Eu também vejo claramente o que preciso, como se o corpo me fosse dizendo. O que faço é escutá-lo".

Mulher assassina

José pensava que ela era amiga da Renata e esta partiu do princípio que ela estava com ele. De olhos azuis claros, cabelo liso e comprido, mexia-se como um gato, ou melhor, movimentava-se a lembrar uma sedutora de outra época, já desaquada nos filmes contemporâneos. Seria kitsch a miúda? Inclinava a cabeça para um lado e suavemente para outro, sem seguir o ritmo. Estava fora dele. E lá se ia encostando. À primeira vista parecia mais do que amiga do José. Olhava-o com um jeito de quem se fazia a ele sem disfarce. Observava-o um pouco de lado. Molhava os lábios com frequência. Tocava-lhe aqui e ali, como se fosse levemente empurrada pela dança dos outros. Enquanto isso, todos se mexiam animadamente. José já não estava a perceber. A amiga da prima seria uma atiradiça! Perguntou a Renata quem era. A prima devolveu-lhe a pergunta: Não é tua amiga? Não, não era conhecida de alguém ali do grupo, muito menos amiga, mas comportava-se como fosse. De segredinho em segredinho, os primos e amigos dos primos inventaram possibilidades. Ninguém sabia quem ela era. Estaria ali uma rapariga completamente sozinha a engatar o José como se o conhecesse de outra encarnação. O José foi cauteloso. Primeiro, só se ria. Depois, acedeu responder-lhe quando ela lhe falou. Rui ainda achava que ela tinha de conhecer alguém dali, se não era da malta, amigo de amigo da malta. Quando chegou a hora da retirada - eram quatro da manhã - continuavam as mesmas questões. Mas José ficou. Ficou a falar com ela. Os outros foram-se embora sem saber quem era a desconhecida. No dia seguinte, o Zé mandou um mail a desfazer o enigma. Afinal, a mulher assassina, como lhe chamou o Rui, era a melhor amiga da sua namorada, com quem o Zé começou a partilhar casa há coisa de uma semana. Como é que não se lembrava dela? Muito simples, ainda não a tinha visto. Ela conhecia-o bem das histórias, fotografias e vídeos das últimas férias. Tinha vindo da Holanda há 72 horas.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Homem do frigorífico

Já era tarde para voltar atrás. Ficou com uma mola a menos, mas que se lixe. Estava cansada de o ver fora do lugar. O frigorífico parecia um monstro dentro da cozinha. A única peça que destoava. Resolveu dar-lhe um fim. Custou-lhe uns arranhões nos braços, mas valeu-lhe uma noite bem dormida, tal era o cansaço. Explique-se: Matilde teve dificuldade em arranjar o frigorífico que se avariou em pleno Verão. Depois de uma semana a telefonar para técnicos desconhecidos, conseguiu, finalmente, encontrar um a jeito. Na primeira vez em que ele foi lá a casa, sentiu um certo descanso. O Paulo inspirava confiança. Falava com calma, olhava para a máquina como se a entendesse. Desmontou-a sem sobressaltos. Dava gosto vê-lo trabalhar. Deixou uma pequena caixa para medir a temperatura e a promessa de voltar na semana seguinte e assim confirmar o problema que lhe diagnosticou. Matilde sentiu-se vitoriosa naquele dia. Valeu a pena procurar, insistir para encontrar o Paulo. Ele trataria como deve ver do frigorífico, uma das máquinas mais preciosas de uma casa. Um frigorífico é o pulmão de uma casa. É vital. Confiou no Paulo. Na semana seguinte, como ele não ligou, tal como combinado, tomou a iniciativa. Ele foi amável mas adiou a visita. Pareceu-lhe sincera a desculpa. Achou que estava na hora de deixar de desconfiar de técnicos e canalizadores. O Paulo não a deixaria na mão. A maquineta da temperatura, que tem aspecto de ser coisa cara, continuava dentro do frigorífico. Na semana seguinte, ele não disse nada. Deixou passar mais uns dias e ligou-lhe de novo. Nada. Agora, não atendia. Tentou dois dias depois já a pensar que estava a ficar paranóica: que sentido pode fazer o desaparecimento de um técnico que arranja electrodomésticos? A resposta era simples: nenhum. Nem um cêntimo lhe tinha dado, e o aparelho de medir a temperatura estava onde ele o deixou. Voltou a não atender. Sem racionalizar muito o que fazia, decidiu voltar a colocar o frigorífico no lugar, encastrá-lo no móvel. Não foi fácil, o peso tornou a operação difícil, as molas de suporte não encaixavam - nessa altura teve tantas saudades do Zé, que continuava em Londres - ganhou uns cortes valentes e umas nódoas negras, mas lá empurrou o frigorífico. Ainda sem lavar as mãos, foi beber um Baileys. Encheu o copo. Estava a precisar. No dia seguinte, acordou com dor de cabeça mas com o frigorífico no sítio. Ficava tão bem! Quase perfeito, como ela gostava (a perfeição é defeito). Deu por si a pensar: ainda bem que os homens do frigorífico só são homens do frigorífico.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Ela sabia

Assim que o viu percebeu que ia acontecer qualquer coisa com aquela pessoa. Podia até ser um murro por um motivo tolo, mas algo se iria passar. Será que iam ter um acidente juntos? Tinham amigos em comum, mas tinham pouco em comum. Ela gostava de rock. Ele só gostava de jazz. Ela gostava do ar de desdém dele, à doutor house. Ele gostava da expressividade dela: comunicava com as mãos, os ombros, cada músculo que mexia. Já para não falar do que conseguia transmitir pela cara. Ele nunca tinha conhecido ninguém assim. O olhar denunciava-o. Não conseguia parar de seguir o que fazia. Ela tinha brilho e tinha dor. Tolice e sabedoria. Daquela que não vem nos livros. Ela sabia que ia passar-se alguma coisa. A festa foi ficando com menos luz, até que se deu um incêndio. Foi ele quem ligou para os bombeiros.

Difícil on-line

"Liguei-lhe tantas vezes, cheguei a fazê-lo de meia em meia hora. Pontualmente. Chateei-o tanto, que ele cedeu a marcar um encontro comigo. Acontece que o local era a porta de um prédio onde havia um consultório de um psiquiatra". A história da Felismina não fazia rir mas ainda era melhor: "Senti-me indisposta e dei por mim a fazer 50 quilómetros de carro. Acabei por o encontrar a tirar o soutien a outra". A Felismina, ele nunca o desapertava. Era sempre ela que o fazia. Felismina ainda tentou esquecer a cena. Ficou com ele até tirar aquela imagem da cabeça. Quando deu conta que a perturbação tinha morrido, mudou de casa. Foi viver para um T0 na Praça das Flores. Voltando atrás, a história da chata teve desenvolvimentos improváveis. No dia em que ela ligou a agradecer a ajuda psiquiátrica ele estava deprimido. O senhor seguro tinha-se tornado vulnerável. Os papéis estavam invertidos. Depois, ele ligou-lhe de volta a dizer que tinham de combinar um café. Ela ainda se fez difícil on-line por sete dias, até que disse que sim. Não dormiu sossegada a noite que antecedeu o encontro. "E o Zé? Iria trair o Zé?", perguntou à almofada. Transpirou e mudou de roupa por duas vezes durante a madrugada. Estava de rastos quando o enfrentou. Foi difícil disfarçar as olheiras. Tudo mudou assim que ele reconheceu, num tom de voz mais baixo, que sentiu falta dos seus telefonemas. Tinha passado um ano. Ela não estava a acreditar naquilo! Encheu o peito enquanto deduzia: Ele tinha-se tornado um álcoolico.

domingo, 23 de setembro de 2007

A nave

Diana era uma miúda certinha. Contou que ficava nervosa sempre que qualquer coisa não estava no sítio. A sua mala de viagem era disso exemplo. No meio de outra conversa, disse que sempre usou roupa à medida, justa ao corpo. Já Francisco tinha o perfil do intelectual. Exibia um olhar de mergulho, de quem está sempre com mais do que uma ideia, uma preocupação na cabeça, de quem procura um significado novo para cada cabelo fora do sítio. Tinham pouca coisa em comum. Juntamente com Rita, conheceram-se numa viagem de trabalho. E depois de três dias num congresso, pode dizer-se que conheciam mais uns dos outros do que muitos amigos de copos. Falaram muito deles próprios. Aconteceu ser assim. A cidade de Nápoles convidada a isso. Os outros médicos, do México ao Japão, eram pouco dados ao diálogo. No último dia, Diana revelou, sem rodeios, que, inicialmente, tinha tido a impressão que Francisco era alguém que andava sempre à procura da nave. Nunca estava bem em lugar nenhum e mostrava-se pronto para partir. Francisco achou que Diana era uma queque submissa a uma vida pré-definida pelos padrões sociais, de que é exemplo a ideia: sem um filho estás fora do baralho normal. Rita ficou com dores de barriga de tanto rir da história da nave. Disse, por fim, que lembraria de cada um deles pormenores: de Diana, o facto de se queixar do cheiro do namorido (expressão brasileira: namorado + marido), ela contou que chegou a pedir-lhe para colocar o perfume só quando saísse de casa, mas não exigiu que ele mudasse de marca; de Francisco, o olhar triste com que contemplava namorados em sintonia, que se beijavam e abraçavam na rua. Eles não gostaram de saber aquilo. Rita cortou, então, o rumo da conversa, perguntando ao Francisco como seria a sua nave. Depois, na viagem de avião, quando estava literalmente nas nuvens, descreveu ao detalhe, em letra pequenina, no cartão de embarque, como seria a sua.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Sofá

Nas tardes de preguiça, brincavam ao programa de rádio. Gravavam-no e tudo. Basicamente faziam perguntas com sugestões estranhas e da sua escolha dependia o desenvolvimento dos próximos minutos, tantos quanto tivesse a música que escolhessem para tocar a seguir. Uma das vezes, Rui deixou três hipóteses: comer pão com pedaços de unha, braço com compota de frutos silvestres ou batido de alface. Alice quis a compota, claro. Seguiu-se Chet Baker. Riam muito e ocupavam o chão da sala como se fossem turistas de pé descalço. Há dois dias atrás encontrou a cassete. Teve foi dificuldade em encontrar um gravador para a ouvir. Antes de carregar no play, sentou-se no chão. Uma das propostas desfez-lhe uma falha de memória. Rui dizia: um dia no telhado, um dia na horizontal ou um dia sem comer. Anteciparam o dia na horizontal. Como os pés fora do chão, o corpo fica mais solto. Por isso é que Rui lhe ofereceu, depois, um sofá miniatura. Lembrou-se entretanto.

domingo, 16 de setembro de 2007

20 minutos

Já tinha reparado nele mas achava-o presunçoso. Calhou ter de utilizar o mesmo taxi que Pedro. Ana começou por falar do mau jornalismo feito por levianos. Ele contou-lhe do que estava a fazer para se tornar jornalista. Pensou que ele era novo. Não, não era. Tinha sido biólogo marítimo. Foi professor de mergulho. Estava agora a ganhar três vezes menos do que ganhava. Vivia com dificuldades. Na última semana do mês, comia sopa e bolachas para conseguir pagar as prestações do carro e casa. Em pouco mais de 20 minutos sintetizaram num tom sério a sua vida nos últimos cinco anos. O taxista terá gostado do que ouviu. Foi ritmado. 20 a 30 segundos para cada um. Parecia um ping-pong de palavras. Leva lá mais esta: "A investigação estava a fazer de mim uma alienado". Será que o taxista não grava o que se passa dentro do taxi? Dava-lhe 100 euros por aquela conversa. Quando saíram do carro, Pedro falou um pouco mais embaraçado. Antes de se despedir de vez, voltou atrás para lhe dizer que o que mais gostava do jornalismo nem era escrever, mas conhecer pessoas. Tinha a desculpa para se poder meter com elas e fazer perguntas. Ana reagiu com o seu sorriso 112. Tinha um trauma com aquele frase: "Conhecer pessoas". Ouvia-a logo com a voz do indivíduo que a traumatizou. Das poucas vezes que falou nele nunca lhe deu nome. Há coisas que quanto menos se dizem menos nos atormentam.

Homem radar

Conheceram-se num carro comercial. Por acaso, o amigo comum teve de os juntar là atrás. Tiveram que se tocar por causa dos solavancos. Poderá pensar-se que se a viagem não tivesse ocorrido naquela estrada cheia buracos, de altos e baixos, poderiam nunca se ter enrolado daquela maneira. Dormiram na mesma cama121 dias seguidos. Gastaram muitos lençois. Clara renovou várias vezes a roupa da cama. Contaram um com outro vai para mais de dois anos. Com o namorado seguinte, logo ao segundo encontro, Clara combinou encontrar-se, de carro, na terceira cortada da avenida. Estariam os dois nas suas viaturas para depois fazerem caminho. Clara iria à frente porque ela conhecia um descampado perto. Fizeram o caminho sempre a acelerar. Clara foi a culpada. Até ela se surpreendeu com a sua atitude de jovem inconsequente. Encontraram-se várias vezes com a mesma metodologia. Acelerar era o sinal de partida. Clara já andava preocupada com o gosto que ia ganhando pela velocidade O seu homem radar veio depois. João não agradava a nenhuma das suas amigas, mas dava-lhe uma tranquilidade fora do comum. O seu lado privado era uma surpresa tão agradável que deu por si a pensar que o queria sem ninguém à volta. Socialmente, ele era um desastre. Corava, não dizia nada de jeito e chegou a parecer tolo num jantar por ser o único a não perceber uma piada óbvia. Chegava a ser uma aflição vê-lo enrascado. Entre paredes, estava ali outra pessoa, o seu João. Solto, criativo, e muito atraente. Essas coisas saltam cá para fora. O seu bem-estar combateu a ansiedade do trabalho e mais do que isso, derrotou-a. Os colegas diziam: "Clara está muito mais calma". Assim viveram nove meses. Não deu para mais. João comprou um carro e deixou de andar a pé com ela. Clara começou a ressacar da falta dos amigos. Só as histórias que eles contavam não chegavam.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

A torre gémea

A morte é um roubo brutal. Arrancou-me um braço à força. Deu-me uma tareia. Cada músculo doeu isoladamente. Deixou-me o cérebro bloqueado, sem reacção. Hoje identifico facilmente quem a viu por perto. O olhar é profundamente vazio. Caiu num poço. Tudo se transforma. Tem outro ângulo. Esta é a visão egoísta do espectador. Egoísta, egoísta. O mais grave é o desaparecimento da face da terra. Sem volta. Quem fica é sempre egoísta. Entretem-se a enganar a dor insuportável. Será o instinto de sobrevivência a dar de si? Uma das amigas da minha avó, quando foi vê-la ao caixão, descontrolou-se e, num pranto, disse: "Lá vais tu amiga com a minha caixa de segredos". Prometi à minha avó que um dia escrevia um romance, como ela gostava de dizer, sobre a sua vida. Nunca o fiz. O mais certo é que nunca o farei. Guardei as histórias. Vou-me lembrando delas. Talvez este seja o romance à minha escala! Ela via sempre o que se passava de uma forma inédita. Não dizia o óbvio. Não fazia o óbvio. Parecia que compreendia qualquer coisa que lhe contassem e tinha a intuição do avesso das pessoas. Vinha-lhe daí o humor. Levou consigo muitas histórias alheias. Há um ano atrás ainda estava viva.

sábado, 8 de setembro de 2007

Boleia

A última vez que andou à boleia foi muito divertido. Naquele dia tudo correu o melhor possível. Depois de uma noite mal dormida, Joana gostou de acordar e ver o Nuno esticado ali ao lado. Naquela manhã não deu para dar cambalhotas matinais, as suas preferidas, mas também sabia que se deve evitar tornar hábito o que é bom, sob pena de este perder a graça. A funcionar em câmara lenta, vestiu-se e foi apanhar o autocarro. Só que o autocarro já não estava lá, quem lá estava era a prima que igualmente chegou depois da hora. A camioneta da carreira, como dizia o avô, tinha partido. Ficaram as duas sem transporte e tinham prometido não faltar ao almoço de família... Cristina lembrou-se que havia quem apanhasse boleia ao pé do cruzamento, na saída da cidade, e assim fizeram. Escreveram: "Boleia para duas até Riscado". Parou uma carrinha e um senhor dos seus 50 anos perguntou porque estavam ali. Vinha acompanhado do filho de 20 e de uma rapariga mais nova: uma vizinha que os ajudava na distribuição. A sua família precisava. Morava num barracão com apenas uma parede de tijolo. As restantes eram feitas de lata. "Podem vir meninas, mas têm de se arranjar lá atrás", disse. Entraram e foram encontrar caixotes e mais caixotes... cheios de soutiens e cuecas. Vendiam roupa interior a retalho. Cristina ainda vestiu uns de copa gigante por cima da roupa. Joana apreciava os modelos variados. O senhor Miranda virou-se para trás e ainda lhes disse: "Ha, parece que caíram no caldeirão dos soutiens!". Depois da risota de dar dor de barriga que sucedeu à primeira história, o senhor Miranda não se calou. Percebeu que tinha uma plateia receptiva. As piadas com as clientes eram hilariantes. A carrinha acabou por fazer um desvio para as deixar à porta de casa. Sempre chegaram a tempo do almoço, embora a mesa já estivesse posta, o que era suposto fazerem. Em família, quando falaram do que se tinha passado (na versão oficial não foi uma boleia de um anónimo mas de um conhecido de uma amiga, previamente combinada), a avó contou que quando era nova os soutiens pretendiam era espalmar o peito. Lembrou ainda que até o cabelo se passava a ferro. O avô, que mostrava os primeiros sinais de Alzheimer, lá disse: "Sempre tiveste foi uma pernas muito bonitas. Ainda hoje tens!".

Guardanapo

Sempre achou que quem toca muito nas pessoas está carente. Que quem fala muito de sexo tem falta dele. Que quem está sempre a telefonar não sabe estar sozinho. Que quem só fala de si nunca se vai preocupar com os outros. Que os amigos ficam melhor com o tempo. Que uma boa conversa supera qualquer concerto ou filme. Que quem tem boas noites tem fracos dias. Que as pessoas normais são as mais perigosas. Escrevia as frases num guardanapo enquanto esperava pela Clara. Ela estava atrasada. Escrevia apenas para entretar a espera. Quando esta chegou, como se de uma reunião de negócios se tratasse, passaram aos assuntos do dia. Falaram dos problemas da Margarida e do Paulo, do casamento do Luís, dos discos que queriam comprar, do dinheiro que não chega para pagar o seguro do carro, da empregada de limpeza teimosa, das férias adiadas. Raquel não quis tocar no que a incomodava durante a conversa. Clara percebeu. Falaram, falaram do mais óbvio, escorregando entre assuntos. Voltaram a rir do que a Maria lhes tinha contado no outro dia. Quando Raquel ficou de novo sozinha, voltou a pensar no que a incomodava e lembrou-se do guardanapo. Ficou lá na esplanada? Voltou atrás. Já nem se lembrava bem do que tinha escrito, mas, naquele momento, pareceu-lhe importante recuperá-lo. Subiu a rua. Afinal, ainda lá estava! À medida que se aproximava, Raquel assistiu à cena: uma senhora leu-o e, de seguida, limpou o nariz com ele.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Ver ao perto

A conversa descambou para as fases em que cada um se encontrava naquele momento. Dito assim parece coisa de adolescente, mas como todos se conhecem muito bem, até bem demais, a troca de desabafos fez o ponto de situação. Como disse o Miguel, "situar é bom, mais que não seja para mudar imediatamente a seguir". Grande Miguel! Joana achou graça à fase de Luísa: "Quero lá saber!". Era, de facto, o que ela mais dizia nos últimos tempos. Fazia-o serrando os dentes no início, o que lhe dava garra. Aparentemente em fase positiva, Ana disse que se via na fase "falhar em grande estilo". Ok, fazia sentido, pensou Ricardo. No seu caso, teve de pensar um pouco. Lembrou-se que há dois dias tinha reparado na senhora da caixa do supermercado que tinha nome e cabelo de beta de Cascais. Chamava-se Francisca, tinha madeixas louras, falava como se fosse uma Pitucha qualquer. Imaginou alguém que resolveu mudar de vida. Enquanto isso, os pulsos chamaram-lhe a atenção: tinham cortes. Para empurar o cesto de mão, acabou por lhe mostrar os tornozelos. Tinham cortes. Era isso: a sua fase podia ter no título "ver ao perto". Além de o entreter a ponto de evitar devaneios protagonizados pela Mariana, que já tinha feito dele passado, havia um consolo existencial naquele nova forma de olhar para o que estava mesmo ali à mão se semear. O passo seguinte foi ir à consulta do oftalmologista, tantas vezes adiada. Estava mesmo a precisar de mudar de lentes! Quando chegou a hora de se sentar no sofá ao lado da Carolina reparou nos braços dela e estes pareceram-lhe irresistíveis. Queria-os para si. Não era muito apreciador de pernas. Essas são para andar. Se ela os vendesse, ele comprava-os. Delirou. Estava a começar a interessar-se por ela, mas isso foi coisa que cresceu na fase seguinte.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

No pinhal

Eles apareciam pontualmente à meia-noite. Batiam à janela e lá iam elas. Bastava um salto para estarem na estrada pouco iluminada. Nunca pensaram muito na roupa que levavam para o pinhal. Agora, quando se lembram, mete-lhes confusão que aos 14 anos não achassem estranho sair para a rua apenas de camisola. Talvez seja importante referir que não eram umas camisolas quaisquer. Diziam: Cocaine em vez de coca-cola. Na altura, era um must. Durante quase duas semanas, o tempo das férias, eles bateram, elas saltaram, noite sim, noite não. Ana curtia com o Zé. Carolina fez uns avanços nos beijos. Clara gostava de colocar as mãos dentro da camisola do Vasco, que era muito quentinho. Até que um dia, alguém bateu de forma diferente na janela. Clara foi espreitar por detrás do cortinado e viu um vulto de um homem que dizia qualquer coisa. Ficaram em pânico. Uma voz sem dono pedia-lhes para irem ao pinhal. Fecharam o taipal de madeira da janela e foram buscar duas cadeiras para reforçar a segurança. Dormiram inquietas. As noites do pinhal acabaram assim. Nada daquilo tinha a ver com o combinado com os três amigos. Eles não falavam. Cada um deles dava um toque fininho no vidro. E elas respondiam da mesma maneira. Eles não ficavam ao pé da janela quando elas saltavam. Já iam no poste seguinte. Só se juntavam na curva de 90 graus. Ficaram a saber mais tarde o que se teria passado: dois fulanos da aldeia, um pouco mais velhos, souberam do piquenique no pinhal e quiseram tentar a sua sorte. Clara lembra-se daquelas noites como muito calmas. Depois da curva também não se falava muito. Diziam-se curtas mensagens ao ouvido. Como as msn de agora. Elas também estavam cansadas de falar. Coisas de rapariga. Já tinham falado tanto, mas tanto durante o dia!

Para ver melhor...

Rita encontrou a avó a dormir de óculos. Quando esta acordou, perguntou-lhe como se tinha deixado dormir com os óculos enfiados no nariz. A resposta foi esta: "Às vezes durmo de óculos para ver melhor os sonhos".

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

O teste

Aos 11 anos, fez o primeiro teste. Era uma menina pespineta, reguila, que atraía as atenções com facilidade. As outras eram mais giras, mas ela tinha outros encantos. O empregado mais responsável da empresa do pai não se cansava de a elogiar com termos pouco adequados para a sua idade. E Ana gostava. Sabia que ao encostar-se na secretária meio de lado, Damas, tinha o nome do jogo, lhe falaria de Dostoievski durante mais tempo. O livro que mais tarde este lhe ofereceu de Simone de Beauvoir foi durante muito tempo a sua Bíblia. Adiante, as cenas ao estilo Lolita nunca deram em nada de mais perverso. Fizeram-lhe foi bem. Ganhou jeito para lidar com os primeiros rapazes que quis tocar e colar a si. Entre as cenas que mais a divertia estava o teste. Durante anos, Ana fez o teste. No primeiro, vestiu a sua camisola mais foleira, penteou o cabelo como se visse mal e disse um grande disparate. "Se gostares de mim, pintas o meu nome no campo de futebol". Nunca pensou que Filipe o fizesse. Ele foi além disso. Escreveu-lhe uma carta que esta acabou por retalhar o mais possível e meter pela sanita abaixo, logo depois de lida. Na folha de quadradinhos do caderno de matemática, ele dizia que não sabia o que gostava dela, talvez tudo. Estas coisas não se esquecem. No dia seguinte, o muro dizia Ana+Filipe. Enfim, passaram-se anos e anos e lembrou-se desta história por ter dado conta que estava a fazer o teste dentro de um táxi. Para o próprio taxista e claro com uma intenção bastante diferente. Fez uma cara desalinhada, puxando um dos lábios mais para um lado, de modo a ficar o mais feia possível. Não dizem que é na proporção que reina a beleza! Daquela maneira, o taxista de ar ameaçador - exibia músculos que metiam medo - não a atacaria. Mais tarde, nessa mesma noite, foi ter com o Rui com hálito a alho e mostrou-lhe que afinal sempre tem pêlos nas pernas. Só que ele foi óptimo. Ana não previa aquilo. "Podemos brincar às depiladoras, é assim que se diz, não é?". Rui passou com "Satisfaz bem".

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Aspirador

Tinha que perguntar: porquê é que Joana tem tantos aspiradores lá em casa? O mais pequeno, parecido com uma máquina de barbear, foi comprado numa loja dos chineses na Holanda. A sério? Sim, é mesmo verdade. Daí até a conversa saltar para o tema das pessoas que sugam a energia dos outros, o melhor dos outros ou, por outro lado, que puxam o mais depressivo e sinistro dos outros demorou cinco minutos e 33 segundos. Joana contou que teve vários namorados que a deixavam cansada, sem vontade de tomar iniciativa. Quanto mais apaixonada mais lerda ficava. Com Rita, não. Sucedia que ficava mais humorada e viva do que era costume. Maria inspirava-se como se tivesse dominada pela força da imaginação. As ideias galopavam-lhe na cabeça. Inês não notava mudança alguma em si. O seu cu de pêra dizia alguma coisa da sua personalidade. Era uma pessoa descaída. As mudanças registavam-se na primeira fase da paixão, claro. Depois vinham os ajustes e com eles as atitudes mais mornas. Joana tinha os aspiradores lá em casa, segundo a própria, porque adorava guardar coisas para dentro. Era uma coleccionadora de pequenas peças. De molas de roupa a caixas de música pequenas. Quando se esquecia do significado do objecto este ia para o lixo. A presença dos aspiradores garantiam-lhe alguma tranquilidade, acabou por dizer, para compor a explicação pouco satisfatória. Rita contou, então, que os últimos três namorados que teve em cinco anos começaram a ter uma vida melhor depois de ela ter passado pela vida deles. Um deles estava lançado... Ela estava convencida que os tinha libertado de uma gaiola qualquer. Veio-se embora quando eles começaram a voar. Missão cumprida!

terça-feira, 28 de agosto de 2007

No autocarro

Josefina gostava dos solavancos. Quando os autocarros deslizarem pela estrada deixarão de dar o mesmo gozo. Entretinha a sua mente com pensamentos infantis do género quando a entrada de uma senhora desembaraçada veio dominar os acontecimentos. Falava alto e dizia à colega em brasileiro: "Para o ano vou pedir seis meses de férias. Sim, sim, um mês a que tenho direito e mais cinco para me fazer à vida. Claro que vou para o Brasil, aqui não se passa nada". A colega discreta, bem portuguesinha, de olhos sempre postos para baixo, porque é no chão que afunda as desgraças, respondeu: "Seis meses, não podes. Quando voltares não tens emprego". Não a deixou terminar, interrompeu-a para dizer: "Posso, posso, já fiz isto há dois anos e fez-me muito bem. O resto do tempo foi para arranjar namorado e fui ficando até me fartar". Ninguém se mexia no autocarro mas todos os passageiros estavam com os ouvidos alerta. "Ah", voltou à carga a brasileira, "é verdade, aqui também acontecem coisas, sabias que no piso de baixo o inquilino matou o senhorio. Eu quase que via tudo. Vi-o sair mais tarde. O desgraçado não tinha dinheiro para pagar a renda e descontrolou-se. Às vezes apetece mesmo matar o senhorio, não é?". A portuguesinha ficou espantada: "Não soube de nada, quando foi isso?". "Há 15 dias. O homem ainda não foi enterrado porque estão à espera que o filho venha da Austrália". Os passageiros do autocarro das 21 horas pensaram que poderiam estar diante de uma louca. Josefina teve pena que a senhora saísse logo na paragem seguinte. Ainda lhe faltavam mais seis.

domingo, 26 de agosto de 2007

Plano B

Houve uma altura em que vivia em função do plano B. Quis ir para Praga, mas foi passar uns dias a Barcelona, onde já esteve mais de meia-dúzia de vezes. Nunca fazia exactamente o que queria, optou por deixar-se levar como se fosse uma peça flutuante a descer o rio. Às vezes ia de lado, outras vezes até apanhava as pequenas ondas como se estivesse a fazer surf. Tentava fazer surf, divertir-se, mas eram instantes passageiros. Hoje não. O plano B estoirou para Carolina. Morreu-lhe o gato, bateu com o carro, a tia tem cancro e já não basta descer a Avenida Almirante Reis para ficar menos depressiva. A irmã está muito doente. Antes, a miséria e a diferença humana davam-lhe algum conforto. Afinal, por comparação, a sua vida era boa. Agora sim. Faz o exercício de ser ela a sugerir onde se vai tomar café com os amigos- deve-se começar com pequenas coisas -, a impor mudanças ao chefe, a pedir ao Nuno que a deixe ficar a ler o livro enquanto ele brinca com os sinais e outros mapas que ela tem estampados no corpo. Hoje já chorou duas vezes. As gotas são espessas e molharam o chão. Esteve 731 dias sem chorar. Sabe porque apontou a última vez. Bateu o seu recorde.

sábado, 25 de agosto de 2007

Palhaço

Ficou sozinha no bar de máscara nos olhos. Era Carnaval e os amigos estavam mais eufóricos do que era costume. No momento de decidir ir para outro sítio, formaram-se dois grupos e foi por causa disso que Felismina acabou por ficar sozinha. Os primeiros a sair pensaram que ela vinha a seguir. O segundo grupo partiu do princípio que ela já ia adiante. Foi assim que conheceu o Rui. Depois da troca de palavras com o então desconhecido, Felismina disse-lhe que tinha ficado ali sozinha e ele prontificou-se a levá-la ao outro bar onde estariam as amigas. Bem, enrolaram-se, não foram ter com ninguém mas um com o outro, "fizeram o amore" até ao nascer do sol numa casa com vista para o Tejo. Felismina não gosta de adormecer de dia e fê-lo parar assim que a claridade deu de si. Perderam bastantes calorias. A barba dele exfoliou a pele do queixo dela. Trocaram, depois, o que podiam em três semanas. Ao 21º dia, ele mandou-lhe uma mensagem escrita a dizer que estava confuso. Ela percebeu o que se estava a passar. Só nessa altura, com a ruptura, teve coragem de contar às amigas que havia uma faceta muito forte dele que lhe provocava pesadelos: ele era palhaço em part-time. Palhaço? Sim, à séria. Ela não tinha nada contra palhaços e por quem faz de palhaço, mas, sem saber muito bem porquê, estes metiam-lhe medo, como se escondessem sempre uma tragédia que estaria quase a chegar. Não lhe foi difícil esquecê-lo. O facto de os pesadelos acabarem, ajudou.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Sexto sentido

São eles que o têm. São eles que têm um sexto sentido apurado. "Não pode ser?". "Pode, pode", respondeu a Samantha do grupo. O assunto era tão corriqueiro quanto divertido: gajos. Deitava-se conversa fora quando Maria deixou a ideia: "Os gajos têm um sexto sentido". Baseou-se em factos para defender a tese. Contou que sempre que alguém a interessava, surgia de novo o Zé. No outro dia (foi tão engraçado) deu por si a responder de enfiada a um e a outro, por msn ao Zé e por mail ao Manel. Uma boa meia-hora, não, bem mais do que isso, foi assim passada. Dois jogos ao mesmo tempo. O tempo fugiu. No fim, resolveu apagar todas as mensagens do Zé e desistir do convite para jantar. Na conversa do ninho de amigas, outras teses se impuseram: "É que hoje em dia as mulheres acham sempre que podem ter um companheiro melhor", disse ainda a Samantha inspirada. Eles ganharam o sexto sentido (não estou a ver o meu pai a tê-lo). Elas tornaram-se exigentes. Maria acabou por ir jantar com o Manel.

Biquini

"Acabou de ir para o lixo o meu biquini preferido". Joana telefonou à amiga para lhe contar a novidade. No dia em que o comprou não lhe assentou na perfeição, mas depois de duas idas à praia tinha ganho o estatuto de objecto-pele. São poucos os que ficam nessa sua prateleira mental. Tem uma camisola gasta que ainda veste em casa nos dias em que sente saudades. Voltando ao biquini, este apanhou umas manchas amarelas na piscina. Lavou-o, lavou-o, até se aventurou a passá-lo por lixívia, mas não notou diferença. O fim do biquini coincidiu com a morte de mais uma história amorosa. Como dizia o outro, vão-se os anéis e ficam-se os dedos. Os anéis são as histórias. Depois de o telefonema terminar, apeteceu-lhe ligar ao Zé. O Zé também estava para lhe ligar. Encontraram-se. Contou-lhe a história de vida do biquini. Ele gostou muito. Adorou os pormenores. Disse, depois, que tinha de ir à Fnac para comprar um CD a um amigo e que voltava logo. Mas não voltou, nem mandou sms. Eclipsou-se. No dia seguinte, foi ao seu encontro. Joana não estava a acreditar que o Miguel estava do outro lado da passadeira com uma prenda na mão... Era um fato-de-banho.

Ao que chegámos

Carolina levantou-se mais cedo do que era costume. Não conseguia abrir o olho da esquerda na totalidade. Estava colado ao sono. O da direita bastou-lhe para se orientar minimamente. Enfiou a escova de dentes na boca, esfregou os dentes com as forças que tinha. Eram poucas. Tinha prometido que ia à feira nesse dia e não podia falhar. Estava um dia rijo de Verão e valia a pena ver com era. E foi muito bom. Enquanto descia no carro velho entre os montes, através da estrada magra em largura, foram passando pela sua cabeça pensamentos pouco organizados. A sua vida estava estreita como aquele caminho que só dava para um carro. Era assim que se via: sem bermas por onde poder fugir. Lá em baixo, no meio do largo local onde se situava a feira, várias coisas aconteceram. Quem mais lhe chamou a atenção foram os ciganos: o Acácio que conhecia desde tempos da escola e que nunca mais vira; um miúdo de três anos arrebitado e a avó de preto quase de burka. Ela tentava vender a todo o custo as camisas aos quadrados dizendo: "Não tenha vergonha de comprar barato". Pelos vistos, tinham. As camisas não tinham saída. O miúdo não parou quieto o tempo todo. Quando um carro de mão tocou na tenda da sua família, barafustou como gente grande sem travão social: "Ai se te apanhasse em Espanha, nem sabes o que te fazia, limpava-te logo". Os pais e os avós repreenderam-no mas de forma pouca assertiva. Acharam graça como toda a gente que assistia. O melhor momento estava para vir. Quando passou um burro de pêlo escuro, castanho brilhante, o puto reagiu logo: "Avó, avó, um burro, um burro!". A senhora de vestes pretas levantou as mãos para o alto e gritou com voz de quem fumou (não deve ter fumado, mas o seu timbre dava sinais disso): "Ao que chegámos, ao que chegámos, até um cigano fica surpreendido por ver um burro".

sábado, 11 de agosto de 2007

Bendito roubo

Mariana roubou o namorada à Marta e em boa hora o fez. Com a Marta o Zé era um rapaz pouco dedicado. Com Mariana, o Zé era outro: atento, perspicaz. Será que as pessoas mudam conforme quem têm pela frente? Este exemplo diz que sim. O Zé nunca se separaria da Marta se não fosse a Mariana. Marta não o mandaria embora por achar que gostava dele. Afinal, o motivo de não se interessar por mais ninguém só podia ser esse, não? Não era. Mariana reparou no Zé quando ele se deitou em cima da Marta sem lhe tocar. Os braços firmes seguraram o resto do corpo, deixando-o em suspenso. Era franzino mas elegante. Como podia a Marta vê-lo como desajeitado! Contava sobre ele as histórias mais absurdas. Na noite em que a Marta disse à Mariana que não tinha grande gozo em dormir com o Zé, Mariana foi à sua procura e roubou-o. Tirou-lhe os 20 euros que ele tinha na carteira e quando foram ao multibanco buscar mais dinheiro, encostou-se a ele, dando o arranque a outra história. Mariana ainda hoje guarda na caixa dos segredos esses vinte euros. Quando ele for embora, devolve-lhe o dinheiro para que possa ir de táxi para casa. Será que em 2020 ainda vai dar para isso?

domingo, 29 de julho de 2007

Viva a mentira

Abaixo os psicólogos e psicanalistas que vão buscar pesadelos do passado para justificar os do presente. A maior parte dos traumas de infância são interpretações incorrectas. Luísa não era feliz com a verdade. Passou a vida inteira a viver em função dela e raramente se deu bem. Agora ia divorciar-se dessa obsessão. A verdade que vá chatear outra moçoila maníaca, insatisfeita. Afinal, podia viver com a mentira. Era uma questão de treino. Ela pode tornar a vida mais suave. Primeira aula: não dizer o que se pensa, desviar o assunto. Assim fez. Acham que alguém reparou? Nem o Zé que continua a enroscar-se nela antes de adormecer, enquanto não aterra, antes do salto para o outro lado da cama como se aquele espaço fosse outro continente. Nem a Maria, sua grande amiga das confidências mais vergonhosas. Só uma pessoa lhe chamou a atenção para a fina mudança: a empregada palradora. Disse-lhe: "Não me diz o que aconteceu ao vestido que justifique a nódoa, vou arriscar e colocá-lo na máquina". Foi a verdade, ficou o risco.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Campo e cidade

Descobri pessoas depressivas no campo. Nunca tal me tinha passado pela cabeça. Sempre associei a tristeza e a rude destruição da vontade à cidade, a uma vida sem paragens para o sono, marcada pelos excessos da noite, do namorado ou namorada, do trabalho. Cada vez mais por causa do trabalho - 12 horas por dia com cabeça metida na secretária não faz bem a ninguém-, ou então, por falta dele - desemprego que nem sequer permite um subsídio que pague os cafés. No campo, a perdição é outra. Não se passam acontecimentos vistosos para além das saídas de estranhos da casa da vizinha. Nasceu um gato novo, mas, de resto, sucede-se a ordem regular da natureza. Os que chegam da cidade deliciam-se com a música dos pássaros, dos galos, das árvores em dia de vento, mas Clara sonha com um concerto de rock. Lembrei-me do que a Helena me disse: "Sabes que li que os proprietários de casas de turismo rural são todos, todos, citadinos. Curioso, não é?". Dei por mim a pensar que a prevenção talvez esteja em alternar campo e cidade. Decidi telefonar à Clara e oferecer-lhe o meu bilhete para o Superbock SuperRock. Eu vou para o campo pedalar.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Beleza portuguesa

Quando o Rui lhe tocou ao de leve no braço, lembrou-se da cena do filme “Virgens Suicidas” de Sofia Copolla. Quem nunca teve uma assim, que alimenta duas semanas de paixão inebriada, perdeu uma das dádivas desta vida. Quando o Rui lhe passou os dedos pelo pescoço escondido pelo cabelo, Josefa não sabia se queria deitar-se com ele. Tinha 30 anos, um namorado obsessivo para apagar da cabeça. Um ex-namorado, desculpem o engano. Não tinha ainda o espaço disponível para receber informação de natureza tão matizada. Às vezes acordava a pensar que ainda tinha de dizer ao Rui qualquer coisa sem importância, mas que fazia sentido dizer-lhe. Agora não contava as estórias de sempre a ninguém. Engoli-as. Por vezes, dava por si a falar sozinha. Tinha de corrigir esse hábito. Se o Rui tivesse avançado de outra forma, sem esse modelo tão estabelecido de sedução, talvez o contacto tivesse outro resultado. Mas engate, ou lá o que é, estereotipado, criava-lhe repulsa. E isso acontece-lhe nos casos mais comuns do dia-a-dia. Na piscina, odeia que a olhem quando sai pela escada. Mesmo enquanto faz uma pausa entre “piscinas” fica incomodada quando uns olhos de lobo que a querem comer a observam enquanto trincam o lábio. Por isso põe o seu andar mais desajeitado. No outro dia, deu por si a pensar, enquanto deixava a piscina para trás e procurava a chave do carro, que devia ser difícil levar a vida sendo muito bonita. Implicaria estar sempre a ser perseguida, desejada pelos homens, cobiçada pelas mulheres, desejada pelas raparigas e pelos rapazes. Daria em doida. Faria uma plástica para ficar menos atraente.

sábado, 9 de junho de 2007

Ricardo, o que lhe fizeste tu?

Várias amigas da Maria já tinham sonhado com Ricardo Araújo Pereira. Sim, esse, minhas amigas. Maria sempre se riu e riu até não mais poder com essas histórias. Mas aconteceu-lhe a ela viver um episódio com Ricardo Araújo Pereira que parecia sonho. Parecia. Foi assim: Era jornalista, tinha de o entrevistar, e lá foi. Um pouco nervosa porque sabendo tratar-se de um humorista que podia sair dali uma conversa arrebatadora ou completamente non sense, de que o seu editor não acharia graça nenhuma. Ele atrasou-se mas foi logo educado, simpático e muito normal. Podia ser o encontro com o senhor do café que ganhou a lotaria com os números que lhe disse a filha de três anos. Ricardo era um rapaz normal. Nem uma graça, um trocadilho lhe deixou para contar aos colegas. Nada disso. Deu-lhe foi uma seca com a conversa sobre a dor de dentes do siso. Como já tinha sofrido do mesmo, Maria contou-lhe alguns truques. Metade da hora e meia que passaram juntos, falou-se de quê? Exactamente: dentes. Ele tem-nos bonitos mas reles, frágeis, sensíveis aos gelados. Maria tem-nos amarelados mas resistintes o suficiente para elevar uma cadeira. Palavra puxa palavra e Maria deu por si a contar-lhe os sonhos que as amigas tiveram com ele. Então, é que foi! Que lhe fizeste tu, Ricardo, para ela contar o que não devia? Estamos todas chateadas com a Maria.

Pouca terra, pouca terra

Sempre desejei conhecer alguém muito interessante num comboio. Tão interessante, de ter vontade de levar na mala para casa. Um dia sonhei que me casava num comboio. Numa das carruagens comia-se, noutra dançava-se, noutra esticava-se as pernas em confortáveis sofás que se moldavam às exigências da nossa coluna. O copo de água demorava o tempo da viagem. Ele estava vestido de revisor e dizia-me sempre a mesma coisa: "O seu bilhete, se faz favor". Acordei com barulho do "pouca terra, pouca terra". E com a sensação de estar o cansaço a substituir a boa disposição da festa. Queria que a folia acabasse, mas o comboio não parava. Foi essa inquietação que me despertou. O comboio nunca mais reduzia a marcha. Pelo contrário, ia acelerando, acelerando.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Taxi driver

Ritinha gostava de andar de taxi. Só na quinta-feira passada percebeu porquê. É um risco, uma viagem na montanha russa. Tanto pode sair dali um senhor simpático que conte uma história de vida bem melhor do que o argumento do filme em exibição no cinema da esquina ou então um potencial serial killer pior do que o de Santa Comba Dão, que enche os noticiários. Ritinha apanhou daquela vez umas costas largas que suportavam um cabelo louro oxigenado. Quando o taxi parou, ouviu então a sua voz: "Eu não travava. É apenas um drogado que deve ter caído para cima do carro". Ritinha não cheirava o hálito dele, mas temia-o só de imaginar. Fez uma careta quando pensou nisso. Ainda lhe disse que se deveria chamar a ambulância. Mas o taxista arruinou-lhe o argumento. "Qual quê, nem como os cães páro. Para quê? Para ter de pagar aos donos!". Viu-se um jovem colado ao passeio. Ritinha ficou com medo. A marcha prosseguiu. Quando saiu do carro não resistiu ir ver como era a cara do senhor. Olhou e viu um cão de dentes afiados com pose de taxista. Que gania.

domingo, 20 de maio de 2007

Sem alínea c

O que é que elas vêem no Tocha? Cristina começou a enumerar as razões: “Primeiro, lembra um certo romantismo já perdido no tempo, o que faz dele uma relíquia”. Mas é uma farsa, como dizia a Andreia. “Claro que sim, que é uma farsa”, respondeu rapidamente Cristina. Mas o seu ponto forte é esse. A dança e olhar certeiro fazem lembrar o tempo em que se engatava com regras conhecidas por todos. Não havia que enganar. Ou era amigo ou namorado, não existia alínea c. Voltando ao Tocha, a personagem cria ambiente por si só, ficando a vontade de participar no filme. É convidativo. A meia-luz, Tocha é o cromo que sempre vemos num homem quando resolve fazer qualquer coisa tradicional para nos agradar. Tocha veste-se de safado mas não convence. Percebe-se que se pode regenerar. O tipo que até pode acordar cedo para andar de bicicleta só para nos fazer companhia. Cristina disse outras coisas, mas só me lembro destas. É da ressaca.

Na horizontal

Tocha gostava delas altas. Mais altas do que ele. E de cintura fina, claro. Com ela vem um tronco mais magro e ossos próximos dos órgãos. Podia sentir o que se passava lá dentro. O estômago dela a triturar era música. Relaxava-o. Também quando o ritmo acelerava, sentia-se confiante para avançar. E era assim que, depois, Tocha se tornava grande, poderoso. Já Joaninha gostava de começar por enfiar os braços dentro das mangas da camisola dele. Saíram muitas vezes juntos enquanto ele a viu alta, elegante. Terminou quando ela lhe disse que tinha apenas um metro e 65 centímetros. Como pode ele ter andado tão equivocado? Na horizontal, ela parecia-lhe interminável: pernas longas, torneadas, ventre liso e braços finos. Na cama, ele encolhia-se. Ela esticava-se. Na cabeça dele, ela era tão grande. Tocha tinha um metro e 70.

sábado, 19 de maio de 2007

Bomba no peito

A primeira vez que Miguel lhe deu troco, o coração começou a bater mais do que era costume. Rita queria falar mais tempo com ele, estar mais próxima, tocar-lhe, mas tinha receio que ele percebesse que estava ali uma bomba no peito a querer saltar para fora. Punha a mão no decote para que não se visse as palpitações. Não lhe passou pela cabeça ir logo ao hospital. Na sua mente, só desfilava uma ideia: estar a menos de cinco metros dele. Se ficasse a seis, sentia frio. Aos dez, era como se caísse uma neve repentina, daquelas que nunca viu ao vivo. A primeira vez que Miguel lhe deu troco, Rita teve de ir às urgências. Os médicos fizeram-lhe exames e descobriram que ele tinha um problema no ritmo cardíaco. Nos primeiros dois meses de namoro, antes de cada encontro, a ansiedade obrigava-a a um comprimido específico para evitar batidas excessivas. Um dia, quis arriscar, não tomou nada e quando chegou ao pé dele teve de lhe dizer que precisava de ir à farmácia rapidamente. Três meses passados, de saídas, jantares, concertos, cinemas e muitos comprimidos, Rita melhorou. A coração habituou-se. Só quando o atraso descaía para os 20 minutos, as batidas aceleravam. Ele passou a viver com medo de não chegar a horas. Enquanto gostou dela, viveu com essa preocupação. Quando deixou de gostar dela, foi um certo alívio.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Zé Diogo

Clara sonhou com José Diogo Quintela. Que estava ansiosa pela chegada dele, pela sua presença. Ele não a cansava com nada do que dissesse. Via-se nos olhos dele quando o olhava. Era também uma coisa física. A perturbação efectava o sistema nervoso. As idas à casa da sanita multiplicaram-se. O nervoso miudinho só acalmava quando ele dizia piadas. E eram muito melhores do que as televisivas. Uma amiga - é incrível como elas entram nestes delírios da madrugada - foi dizer-lhe que ele a observava de uma forma muito terna. Ok. Era tudo o queria ouvir nesse momento. Aquilo bateu-lhe mais do que uma declaração de amor refinada feita pelo próprio. No dia seguinte, tentou responder de várias maneiras à pergunta: "Porque não sonhei eu com o Ricardo Araújo Pereira?"

domingo, 13 de maio de 2007

Barba

Encontrou-o vezes sem conta entre a esquina da avenida e o túnel. Contava com ele no percurso. Tinha uma ar amistoso, e uma barba rala como ela gostava. Refira-se que o Zé, o seu namorado, deixou de ter barba rala. Por causa de um problema de pele, ele tinha de se barbear todos os dias. Há dois anos e meio que não conhecia ninguém que lhe interessasse descobrir melhor ou ficar a curtir uma tarde de sol sem receio que a conversa esgotasse rapidamente. Bárbara resolveu segui-lo. Veio a saber que ele era informático, tinha uma namorada que trabalhava na Holanda, e era bom rapaz. A depiladora que trabalhava no seu prédio contou-lhe tudo. Quando a namorada vinha de dois em dois meses aproveitava para ir lá tirar o pelos e falavam muito. Até lhe trouxe um creme anti-rugas que ainda não tinha chegado a Portugal. Era um produto natural, claro. Na cabeça, cabem mil coisas, mil paixonetas e sinais a decifrar. Por vezes, há coisas que vão e vêm por passos de magia. O Zé voltou a ter a barba rala e ela deixou de reparar no Carlos. Pensando bem, nunca mais o viu. Bárbara não sabe se ele desapareceu, ou se foi ela que nunca mais reparou nele.

Miau miau

Cecília tinha uma vida sem graça, apesar das carteiras caras e dos sapatos espectaculares que faziam inveja às amigas. Na segunda-feira de manhã, a angústia era ainda maior. Crescia, crescia e quase a deixava sem ar logo depois do pequeno-almoço. A terapia: compras. Embora a tranquilidade fosse passageira, sempre ficava mais calma depois de passar pela loja. O empregado mais alto enchia-a de mimos e ela não era capaz de sair de lá de mãos a abanar. Pelo contrário, comprava sempre "umas coisinhas". Perguntou-lhe naquele dia: "Não veio ainda aquela carteira do anúncio da revista Miau, Miau?". O empregado não se conteve. Ela era a cliente conhecida por "miau, miau". Talvez estivesse na altura de a corrigir. Chamou-a um canto da loja e explicou-lhe que as peças "Miu Miu" estavam cada vez mais caras. Ela voltou ao erro: "Eu sei. A miau, miau anda pelas horas da morte. Mas alivia-me o stress". Justino resolveu ser frontal. Antes de lhe explicar tim por tim que não se dizia assim, mas assado. Ela antecipou-se: "Eu sei, mas estava à espera que alguém me corrigisse. Nunca ninguém o fez. Digo-o sempre na esperança que alguém o faça. Ninguém tem o coragem de o fazer. Pensam que sou uma tonta e eu desleixei-me, não provo outra coisa". Justino fez silêncio. Cecília: "Quando digo que adoro as malas trava, ninguém liga. Pensam que digo Prada. Mas miau, miau, é fantástico, não é?"

terça-feira, 1 de maio de 2007

Casal pingo doce

Todos os dias, durante 11 anos, Francisco deixou a côdea do pão para Clara comer. Tal como Clara deixava Francisco ser sempre o primeiro a tomar banho. Só depois de mais de uma década, em casa do irmão mais falador da família, se fizeram as revelações aparentemente insignificantes. Os presentes, seis membros da família do lado dela, pensavam, e comentavam sempre que havia oportunidade e o assunto vinha à baila, que Clara e Francisco formavam um casal modelo. Pareciam viver em harmonia. Ninguém se lembrava de os ver discutir. Abriu-se o poço das dúvidas quando descobriram que se pode viver de muitas maneiras uma relação tão longa. Ela comia miolo às escondidas e fora de casa. Ele achava uma chatice ser o primeiro a levantar-se para se despachar com o banho. Fazia-o para que ela ficasse no quentinho dos lençóis mais uns minutos. Quantas cedências se escondiam em função daquele amor que se queria preservar a qualquer custo? Habituaram-se a viver assim. Na cama, também.

segunda-feira, 30 de abril de 2007

Bolos

Quando se passa pela porta não se consegue resistir. É uma tentação. Trava-se o passo e inspira-se, enche-se os pulmões daquele ar que cheira a bolos bem cofeccionados, feitos com bons ingredientes. Justina andou mesmo uns passos para trás. "Não, a vida são dois dias, e não podemos deixar que nos escape o que contenta o nosso nariz", pensou. Conseguia perceber o desenho ondulado em ziguizague daquele agradável perfume que vinha não só da cozinha como dos pastéis expostos. O ziguezague das bandas desenhadas, perceba-se. Aquela pastelaria marca uma manhã. Torna-a diferente. Os empregados são uns cromos, adivinham-se personagens insólitas que podiam ter vida num filme de Pedro Costa. A mais nova tem um dente quase negro no canto da boca, que mostra quando ri, de cinco em cinco segundos, pois acha graça a quase tudo. O senhor mais velho tem um olho muito maior do que outro e está sempre a repetir o que dizem da cozinha: "Mais um prato de carne com fruta, segue, segue". Parece um robot com defeitos exteriores, mas eficiente. Não se consegue imaginá-lo com cara de apaixonado. O mais alto obedece sem nada dizer, parece uma pessoa gelada. Daquelas a quem apetece acender um isqueiro perto do rabo para ver se sempre sente alguma coisa. Ao quadro humano cinzento pálido, sobrepõe-se o cheiro dos bolos e os clientes. As personagens principais são os bolos e os clientes. Eles devoram-nos como se aquele momento fosse irrepetível. Há quem feche os olhos por fracções de segundo. Justina comeu dois bolos e levou um deles na mala, com o embrulho ligeiramente aberto, para que dele pudesse sair um bocadinho do aroma. Enquanto durou, foi bom.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Banho quente

Depois de muita conversa deitada fora, esgotaram-se as palavras. Não conseguiam dizer mais nada. Ele calou-se e olhou para ela à procura de qualquer coisa. Do lado dela, o olhar descaiu em direcção à calçada portuguesa. “Tantos quadradinhos entre pés!”, pensou. Mas não havia mais nada a dizer. A aflição daquele silêncio bloqueou-lhe a acção. Só andava. Ele mantinha-se calado, a seu lado, ligeiramente à sua frente. Do outro lado, estava o Tejo. Quando ela se apercebeu disso – que ele ia um bocadinho de nada à sua frente – acelerou o passo. Ele seguiu-a. Deram por si a correr. Um atrás do outro. Energicamente. De repente, pareciam animais selvagens. Quando ele se deu por rendido, parou, inclinando-se para a frente, levando a cabeça ao encontro dos joelhos. Ela imitou-o. Estavam exaustos, mas aos poucos começaram a falar sem entraves alguns. As palavras voltaram desprendidas. Escorregavam. Deixaram de estar nervosos e o dia acabou com um banho quentinho.

terça-feira, 27 de março de 2007

Sonho português

Foi na conversa que ouviu no café que se apercebeu de que o sonho português inclui um emprego, sem trabalho, na função pública, com um horário que dê para sair dois minutos antes das cinco da tarde. O sonho português pressupõe levar a melhor sobre o parceiro, e não necessariamente por ser criativo ou resolver problemas, apenas levar a melhor. O dono do sonho português gosta mesmo é de dizer mal. É a maior diversão nacional. Elogiar é que nem pensar, não fique o outro convencido e a julgar-se melhor do que ele por tão pouco. Só isso! A cabeça onde cresce o sonho português é invejosa mas nem sabe bem de quê. Apenas quer o que não é seu. É isso! E se não chega lá, mais vale que ninguém o faça. O sonho português, o sonho português, o sonho português mais parece um pesadelo.

domingo, 25 de março de 2007

Surpresa

Felismino mudou por uns tempos em função da sua nova paixão. Nunca tinha cozinhado, à excepção de ovos na frigideira e atum com massa, o mais pop dos pratos. Mas daquela vez "apetecia-lhe algo, algo diferente". Não lhe bastava comprar comida feita, pronta a ir para o microondas. Quando ela se ausentava, preenchia a sua ausência entre tachos e utensílios de cozinha. Experimentou massas variadas, polvilhadas com ervas exóticas, receitas vegetarianas ricas em temperos, que ela não se cansava de elogiar assim que provava. O que lhe dava ainda mais gozo era a surpresa final: a sobremesa. Revelá-la antes do momento certo é que nem pensar. Era o segredo dos seus jantares. Em troca desse segredo, ela dizia-lhe outro. Às vezes não era nada de especial, podia passar por uma revelação elementar, como a forma como apreciava homens com barba de leves tons ruivos. Ele conquistava segredos. Ela dava pontos aos seus pratos. Até que ele decidiu tirar um curso de culinária aos fins-de-semana e se apaixonou por Mariazinha, a melhor aluna da classe.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Parlamento

No campo, os enigmas são outros. O tio avô desapareceu sem deixar rasto. O lenhador que ele contratou foi entregar a madeira sozinho, o que nunca tinha acontecido. A irmã de 99 anos insistiu em perguntar por ele, pois, a primeira resposta criou-lhe inquietação. "Ele não estava em casa", respondeu. "A filha também não sabia dele". Logo ele: tão pontual, certinho. Correu até à vizinha para lhe pedir que ligasse à sobrinha. Ela ligou. A filha não sabia dele e estranhou a ausência. Foi averiguar. Morava ao lado dele, tinha essa vantagem. A irmã, de 99 anos, a mais preocupada, aproveitou para pedir um segundo telefonema para a outra sobrinha que vivia longe mas que estava a par de tudo como se morasse no piso de cima. Ela não poderia saber, mas teria uma explicação. Tinha-a quase sempre e isso tranquilizava-a. Pouco depois, o telefone tocou. A vizinha atendeu: "Ah, sim, pois, não costuma ser assim". Assim que pousou o telefone, disse: "Ele não está no parlamento, a filha foi lá ver". Os 99 anos pesaram-lhe então em cima dos pés, ficando quase sem forças. Os ombros caíram. "Podes ligar-me outra vez para a minha sobrinha?". A vizinha disse que sim. Desta vez, falou ela: "Ele não está no parlamento, ninguém sabe dele, teria alguma consulta no hospital?". A sobrinha começou por perguntar: "No parlamento?". Afinal, um banco de uma paragem de autocarro mesmo em frente ao café servia de parlamento. Um grupinho de amigos com uma média de 80 anos passava grande parte do dia no parlamento. Ali, falavam das manchetes dos jornais que estavam em cima da mesa do café, falavam mal do Sócrates, da ministra da Educação, da reforma que não estica, do padre amante da pinga. Discutiam, lançavam graçolas. A melhor piada era repetida, contada ao que estava a chegar. Assim se passava parte do dia. Naquela manhã, o tio avô esteve no parlamento bem cedo. Mas não resistiu a um convite para ir à feira com o compadre, que lhe prometeu uma viagem curta: iam e vinham numa esfregadela de olho. Quando chegou, já era ele o motivo da conversa no parlamento.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Preguiça

Cada um tem os seus truques. Falar das coisas com os amigos não é a única alternativa. Conversar com um estranho pode dar bons resultados. Assim fiz: Contei-lhe que não fazia nada de especial nesta vidinha e que às vezes era muito preguiçosa. O culto da preguiça também tem exigências, indiquei: esvaziar a cabeça, limpar alguns departamentos. Pode ainda superar-se a chatice de forma radical: bebendo muito e fazendo o maior número de disparates possível numa noite fora de casa. No dia seguinte, a ressaca toma conta de ti e desvalorizas algumas coisas. O desconhecido perguntou: "Mas és alcoólica? ". Parei uns segundos, antes de lhe responder: "A última vez que bebi foi no ano passado". "Então?". "Sou preguiçosa. Devia sair mais vezes e beber mais uns copos".

quarta-feira, 21 de março de 2007

Detalhes

Como dizia Frank Lloyd Wright, "o amor está nos detalhes". Faça-se a lista: tique no olho, gaguez que acompanha falatório sério, risadas a propósito muito particular, forma de limpar o nariz. Esta última não conta, claro. Era a gozar. Passaram-se as primaveras - coisa mais foleira, desconheço - e as mangas das camisolas dele continuam a reclamar limpeza. "Lá estás tu!", diz ela. "Nem dei por isso", diz ele. O nariz parece limpo, mas opto pelo pescoço. Tem mais terreno à disposição e não quero arriscar.

terça-feira, 20 de março de 2007

ele tinha um sonho

Ainda pensava no que podia passar-se na cabeça de Valentim Loureiro para este querer ser julgado diante das câmaras, quando um telefonema lhe assaltou a mente. E qualquer coisa mudou. O resto ficou em suspenso. Em câmara lenta, deslocou-se para o sofá, dobrou as pernas para dentro, enquanto perdia o olhar no espaço amplo que via da janela. Estava letárgica, meia adormecida. O telefonema, que telefonema! Uma volta de 180º graus revolucionou o sentido da sua atenção. "Quero lá saber o que leva alguém suspeito, com problemas nos tribunais, a dizer que quer ser julgado para todos verem!". Quando chegou aqui, sinal que tinha abandonado o estado de distracção ambulante, quis desocupar a mente de pensamentos estéreis. Tinha, no entanto, de dar desfecho ao raciocínio, arrumá-lo, mesmo que fosse mal arrumado. Vai já para a despensa. Ok: Valentim Loureiro quer ser protagonista de uma série ao jeito "Law and Order", sobre advogados. Será o sonho dele? Que se lixe: colocou a história na gaveta dos devaneios com figuras que são notícia, onde está "Pinto da Costa gostava dela".

sexta-feira, 16 de março de 2007

Cansaço

Troquei rapidamente de cassete, deixei o trabalho para trás, fui a correr para o bar, falei aceleradamente, bebi sem olhar para o copo, peguei no troco mas não sei onde o meti, apanhei um táxi a pensar na chegada a casa, adormeci a planear a manhã, levantei-me com a imaginação posta num sofá que me receberia no regresso. Pelo meio, nunca disse o que queria dizer, fingi não estar a perceber, troquei impressões sobre o tempo, comi o mesmo da minha colega, fiz-me desentendida, esforcei-me por ouvir uma amiga, despedi-me e não lhe disse que não, mas a estalar por dentro.

Avesso

Amanhã, se estiver sol, coloco cinco pessoas ao avesso na corda lá de casa. Só cinco. Não dá para mais, de certeza.

Não contarás

Guardei para mim. Não lhe contei que tinha passado o início da noite com o meu novo amigo. Será que fiz bem? "Será que sou eu?", como dizia a outra.Tirei o bilhete de identidade da carteira e confirmei: Já não sou aquela pessoa. Por fora: cortei o cabelo, comecei a borratar um pouco os olhos bem no cantinho de fora, consegui livrar-me das borbulhas. Por dentro: estou mais líquida, menos inquieta, mais fútil, menos obsessiva, mais extravagante.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Cara de pão

Quanto mais ando, mais me apetece andar. É viciante. Encontrar o padeiro de bicicleta montada com cestos pelo caminho é sinal de um bom dia. A sua cara de pão, pálida e robusta, agrada-me. Sinto logo à distância o perfume do pão fresquinho. Esse, sim, seria o meu perfume de eleição. Os outros são de toda a gente. No outro dia, meti-me com ele, falei-lhe, e descobri que ele é bem disposto. Muito animado. Blá, blá, para aqui; blá, blá, para acolá, pois então. Peça rara na cidade, portanto. Atravessei a rua com um pensamento a atravessar-me a garganta. Sinto falta dos homens do pão.

sms interminável

Ele convidou-me sem mais nem menos. Eu preferia que tivesse sido outro a fazê-lo. A mensagem escrita falava em passear na Gulbenkian. Mas recusei. Ainda estava a cozinhar uma chatice relacionada com trabalho na minha cabeça e preferi não fazer o esforço de ter de falar, conversar sem dizer nada de jeito. Nesse dia, a sms repetiu-se por três vezes. Vai não vai, "tlin" no telemóvel e mais uma sms. Exactamente a mesma. Não liguei. No dia seguinte, na segunda-feira, acordei com a mesma sms. Foi a minha sobremesa do pequeno-almoço. Não, não podia ser um engano humano. Liguei para a operadora. "Erro do sistema, não temos outra explicação. Desligue e volte a ligar". Assim fiz. Depois de almoço, nova mensagem. A mesma. Com o novo telefonema outra voz sedutora pró-pirosa: "Talvez seja um virús no telefone do seu amigo. Mas, o telefone não está no nome dele, mas de uma senhora. Peça-lhe o número de contribuinte dela para podermos desligar a função". Assim fiz. Ele começou por não perceber, mas lá disse que sim. Não nomeou a proprietária do aparelho. Segundos depois, enviou o número de contribuinte. Telefonei de novo, indiquei o número e respirei de alívio. Quando estava a chegar ao trabalho, sucederam-se várias "tlints". De novo: "Vou à Gulbenkian, não queres aparecer?". Apaguei as três de enfiada. Liguei-lhe de forma resoluta e assertiva, coisa que não faria antes, e depois de um desfilar de disparates da mesma família, resolvemos encontrarmo-nos numa esquina próxima. Quando cheguei a casa, já depois das onze da noite, voltei a receber a mesma sms. Lá estava ela. Respondi então: "Ainda bem que não apareci no domingo".

terça-feira, 13 de março de 2007

Café da manhã

Estou com o coração apertadinho. Mas pronta para começar. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.