segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Outra face da lua

Encontraram-se de novo na outra face da lua. Há três anos atrás, na rua do Norte, agora em plena baixa, onde as ruas desaguam para mais um pequeno pátio com calçada portuguesa. Francisco trazia os phones colocados. Só os tirou quando se esgueirou para a cumprimentar. Ela trazia um livro cor-de-rosa entre mãos que de depressa arrumou na mala para não parecer que o exibia. Era o livro "Rei", de Zui Zink e ilustrações de António Jorge Gonçalves, que conta uma viagem ao Japão, resumiu Alice, para passar adiante. De cabelo desalinhado, Francisco ainda ficava mais interessante. Era como se o exterior selvagem espelhasse as ideias poderosas que ia reunindo lá dentro. Alice contou-lhe que a árvore onde se encostavam nas férias já só tinha um tronco. Os outros dois foram cortados. Cresceu sozinha num baldio, não tinha sido plantada por ninguém, e foi-se erguendo com três troncos, igualmente largos e curvados que se pareciam a bancos. Os três amigos sentavam-se ali no Natal e na Páscoa para fazer o ponto da situação das suas vidas. Alice combinou o chá com o Francisco porque queria saber se ele tinha levado um safanão que justificasse a extracção de mais um tronco. Na altura em que o primeiro foi cortado, Júlia tinha anunciado que estava grávida. Francisco não lhe respondeu logo. Desviou a conversa. Quando se virou de frente para ela de forma a encará-la, disse-lhe que não era nada disso. Não era o tronco dele certamente. "Ainda acreditas nessas coisas?". Nenhum dos dois acreditava. Mas Alice queria confirmar que não era assim. Francisco disse-lhe que ela ia gostar de saber. Foi o próprio quem o cortou num dia de raiva. Detestava violência, armas, mas tinha de fazer alguma coisa insane naquele dia injusto. Pegou num machado e deu-lhe com toda a sua força. Ela chorou sem dar conta disso. Ficou cheia de frio a seguir. Ele calou-se. E corrigiu: "Não foi nada disso, vão construir lá uma casa, já têm licença camarária e tudo e quiseram retirar a árvore dali". Prosseguiu: "E sabes o que aconteceu? Só conseguiram tirar aquele ramo. Vão pedir uma grua para escavarem o terceiro tronco e as raízes. Foi um trabalho difícil. Quanto a mim, fica descansada, ainda moro em casa dos meus pais. Ou melhor, vou vivendo na casa da namorada e quando ela corre comigo volto para a minha mãe". Alice perguntou-lhe se sabia quando iam retirar a árvore. Francisco respondeu-lhe com sentido prático: "Há coisas que é melhor não saber".

2 comentários:

Anónimo disse...

E continuo a gostar MUITO!!!!

Anónimo disse...

Esta história podia passar-se no centro de Portugal...
Gostei da há coisa que é melhor não saber...
Maravilhosa