quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Vem bandido

A mensagem estava estampada no parabrisas, presa na escova limpa vidros:
"Hoje eu nem dormi
a tentar a entender
entre o que eu sinto
e o que eu te digo
o que é feito de nós
e o que vai ser".
Lucília conhecia os versos. Artur roubou-os ao Manel Cruz. Estão em "Foge foge bandido".
Retribuiu.
Passou a tarde a martelar em frases e escreveu esta:
"Se estou dentro da tua cabeça, vais ter de me aturar.
Levo smarties. Durmo contigo esta noite".
Deixou-a no carro que achava ser dele.
Mas ele nunca a leu. Ele não estava à espera dela. Estava a cortar as unhas.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Que nervos

Sempre que estava por perto o Tomás, ficava desajeitada. Parecia tolinha. Com os nervos, não dizia nada de interessante, as piadas pareciam gastas. As mãos transpiravam e o nariz começava a pingar a conta gotas. Naquele dia, aconteceu pior. Disse-lhe à descarada que estava com saudades dele. Tomás franziu o sobrolho, mostrando a sua estranheza. Ela calou-se desde aí. Naquela noite não disse mais nada. Quando este lhe ofereceu boleia, ela recusou, dizendo que estava à espera de um amigo noutro sítio. Tomás insistiu em ficar com ela até que o amigo chegasse. Ela recusou com firmeza. Ao afastar-se dele, foi pensando que não seria assim tão grave ter-lhe respondido que tinha saudades dele, quando este lhe perguntou como ela estava. No semáforo, quase ao pé da esplanada nova do Teatro Dona Maria, um carro apitou e uma voz saiu pela janela. Era o Tomás, que se ia embora. Ela disse-lhe adeus, mexendo ligeiramente a mão. E ficou a olhar enquanto ele desaparecia do campo de visão. Tornou-se pequeno e desapareceu. Depois, caiu-lhe a tristeza em cima. Sentiu-se espalmadinha no chão. Uma bolacha belga. As pernas ficaram cansadas e sentaram-se. Esperou que o concerto de jazz começasse, em pleno Rossio. Mas às primeiras notas, saiu. Foi-se embora.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Saltar à corda

Gosto das cidades por serem mais democráticas. As pessoas misturam-se e a rua principal não é uma passarelle como acontece na minha terra pequena e conservadora. Elsa justificava desta maneira a sua relação com o sapateiro do seu bairro. Na sua vila, seria impensável encontrar um sapateiro que adorasse documentários a ponto de os fazer. Em Lisboa, nunca se sentiu uma mulher sozinha, mas uma rapariga de 30 anos que prefere ir ao cinema sem companhia para poder afastar-se das trivialidades dos outros. Se for à sexta-feira, o fim-de-semana começa mais cedo. Duas horas depois, já esta noutra. Quando chegava a casa e não tinha com quem falar, pensava que tinha de aproveitar aqueles momentos. Pois eles iriam acabar. O que temos acaba sempre. Pode apenas gastar-se, mas muda. Desde que está com o Rui nunca mais saltou à corda na sala. Não é que não o possa fazer. Mas não fica bem nesta fase. É preciso estabelecer marcos. Agora anda de bicicleta. Sozinha, pela manhã, enquanto ele ainda dorme. Antes que este acorde, já está outra vez enfiada na cama e de banho tomado.

O ensaio

João, Dulce e Gabriela eram amigas inseparavéis até que uma delas partiu para Lisboa. Sem a Dulce, a João não tinha conversa suficiente para aguentar a amizade com a Gabi. João era uma pessoa repetitiva, previsível: uma seca a maior parte das vezes. Aquela amizade funcionava apenas a três. Isto para contar que, aos 14 anos, as três amigas tiveram uma experiência rara. À noite não havia grande coisa para fazer naquele meio pequeno por onde passava um rio. O cinema mais próximo era a 4o quilómetros. O convívio surgia como solução. Havendo gente nova por ali, os primos de amigos, essa era a novidade. Combinavam num café mas passavam lá dentro pouco tempo. Apenas enquanto se juntavam. Eram oito naquela noite de luar. Foram para o pontão, sentavam-se por lá, enquanto falavam. Dulce ficou ao pé do Zé, o amigo que a tinha livrado dos apalpões no ciclo. João encostou-se à Gabi, na tentativa de passar despercebida. Mas os lugares foram mudando à medida que Ricky foi manipulando a conversa. Ricky pôs toda a gente a falar do primeiro beijo. Provocando as meninas, conseguiu arrancar-lhes que pouco sabiam do assunto. Gabi ficou curiosa. Mudou-se de tema, falou-se da roupa esburacada de Madonna, mas o isco fez seu efeito. Quando o Ricky se sentou ao lado da Gabi, esta perguntou-lhe, a medo, se os beijos a sério sabem a alguma coisa. Ricky disse-lhe que podia perguntar à Dulce e à João. À João? Também já tinha beijado a João! Acenou que sim com a cabeça. Só ela se mantinha burra na matéria. Apenas tinha encostado os lábios ao Filipe. Mais tarde, quando tocou as 23.30 horas, o sino da Igreja deu bem conta disso, enquanto se despedia, Ricky abraçou-a e pediu-lhe que ficasse mais um pouco. Gabi ficou. Muito concentrada, deu por si a dar-lhe um beijo a sério. Achou aquilo muito estranho. Era molhado e não tinha sabor nenhum. Foi para casa a pensar se com o Filipe também não saberia a nada. Mal dormiu nessa noite. Uma ideia não lhe saia da cabeça: convencer o Filipe a ir ao pontão com ela. Conhecia ali um clareira com uma vista para o rio onde apetecia passar a noite. O beijo a sério aconteceu no dia seguinte. O outro foi uma brincadeira.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Uma esquina

Com as férias, as ruas ficam quase desertas e sobressaem os que ficam. Hoje encontrei muitos perdidos na cidade. São loucos, mais ou menos atordoados, não sei bem. São os que não puderam ir de férias. Ficaram. Lembrei-me do que o Zé dizia depois de um dia de banco no hospital: "Leva-me a um sítio bonito que não aguento tanta miséria". Eu levava-o. Era assim que cada encontro se fazia. Ele conhecia mais uma esplanada, um canto da cidade, um café, uma galeria, um restaurante, uma parede graffitada, uma rua, um beco, uma loja de discos baratos, uma feira de antiguidades, um elevador, uma esquina, um pátio interior. Eu esforçava-me por ter sempre algo novo para lhe mostrar. Até que, aos poucos, se foi tornando mais difícil fazer-lhe a vontade. Resolvi então começar a mostrar-lhe pessoas. Fiz-lhe a proposta. Ele reagiu mal. Não queria amigos novos, porque estava farto de pessoas, de falar com elas, de as atender, de as tentar salvar. Não queria nada disso. Ficou muito irritado. "Quero lugares", disse. Foi nessa altura que lhe coloquei a questão: "E eu?" Ele respondeu: "Tu não contas".