segunda-feira, 29 de abril de 2013

banho

Não suportava a inocência dela. Os princípios éticos e morais apurados. Davam-lhe superioridade. Inferioridade, para ele. Era demasiado limpa. Ela apresentou-lhe outra versão. Gostava de rock e algum punk, sons sujos, portanto, por alguma razão. Os grãos de areia não o convenceram. A angústia mantinha-se. Ele era um poço de defeitos, não queria que ela se banhasse nele.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

cravos

saiu-lhe das mãos um molho de cravos vermelhos. não cheiravam a nada, estávamos em 2009, o ano em que Lisboa perdeu os aromas. Os lisboetas tinham de imaginar o cheiro das manhãs luminosas e das sardinhas assadas na brasa. Foi um ano vivido em sensação de falta. Os melros voavam sem companhia, por lapso, cortaram-se árvores saudáveis nas ruas erradas. Os chineses, esses, começaram a ser vistos nas ruas, a fazer parte da paisagem; a avenida almirante reis, por exemplo, lavou-se e ganhou nova vida. Quando não me oferecem um molho de cravos no dia de 25 de abril, compro-os eu. Assim que agarro neles, vem para mim a sensação de conquista. não aos mouros, minha, nossa.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

peixinho

Josefina disse-lhe para aparecer às 19 horas no Cais Sodré. Ele não sabia ao que ia. Quis saber, mas não teve sorte nenhuma. Quando ele chegou, desfez-se um pouco e disse-lhe: vamos apanhar o barco. Os olhos dele brilharam muito. Viu neles escapar uma ligeira faísca, mas deixou a razão falar mais alto e arrumou rapidamente a percepção pouco realista. Não podia ser, ponto final. Lá foram. Subiram ao convés e ali permaneceram calados, a ouvir o barulho do motor, a água cortada pela ventoinha, de olhar fixo na outra margem. Quando saltaram para terra, começaram a dizer piadas sem piada. Funcionou bem. Desbloqueou a conversa e até o corpo tenso de Josefina. Beberam umas imperiais e puseram-se a caminho à beira Tejo. Objectivo: restaurante atira-te ao rio. Podia ser assim o fim de uma relação. Não era essa a ideia de Josefina. No regresso, parecia que tinham avançado meses numa paixão de horas. De vez em quando empurravam-se um ao outro, ombro com ombro, que nem miúdos de quarta classe. Tiveram de acelerar o passo para apanhar o último cacilheiro. Frio, estava muito frio, frio firme. Um mais despenteado que outro. Estavam gelados. Estavam gelados e comeram-se.

enrola na areia

a praia gosta de ti

domingo, 21 de abril de 2013

janela

praia. regresso a casa. cortina dividida em três. ferro de passar. desliza para a esquerda e para a direita. parte seguinte. meia hora nisto. cheiro a lavado na cozinha. mais um pouco. vapor. falta a meio. está quase. dores musculares. braços esticados. missão cumprida. quarto vestido. hora de ir para a cama. livro fechado. desligou.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

casa despida

cortinas na máquina de lavar

reunião de condomínio

- pagamos imi de valor diferente por este prédio ter sido construído ao contrário.
- ao contrário?
- tem datas de registo diferente, foi o que me disseram das finanças.
- os mais antigos são os terceiros andares?
- parece que sim. Foi construído a partir do telhado.
- de cima para baixo?
- sim, é um mistério. Mudemos de assunto, preciso de voltar para Marrocos.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

água

Há quem precise de banhos de imersão
prefiro poesia

sexta-feira, 5 de abril de 2013

segundos

cheiravas a verão
que raio de pele
mais irresistível
tinhas
fervilhava de vontade
de uma dentada
e receava que o lesses
nos meus olhos transparentes
medrosos
cerrei-os segundos
para que não visses
sinais
abri-os
estavas tu
de olhos bem fechados

pomar das laranjeiras

Sempre soube que um dia
escreveria sobre o pomar
hoje não consigo
hoje não consigo
escrever sobre o pomar
hoje não consigo
falta músculo
sempre soube que um dia
escreveria sobre o meu pomar
hoje não consigo
teria de puxar
pela memória
está perra
voltar atrás
aos momentos chave
ao dia do diagnóstico
da doença
à decisão de te arrancar
da minha cabeça
e de fugir, não me largavas
hoje não consigo
hoje não consigo
hoje como laranjas


vida dupla

quando os sonhos se sucedem em episódios, estaremos doentes? Assim rola há 15 dias. Envolvem duas, três pessoas. A acção é divertida e bastante realista. Nada se assemelha a pesadelos. Cérebro, cérebro meu, de que tipo de férias precisas, diz-me lá. estou a tomar notas.

baloiço

ruy belo que me perdoe o atrevimento de escrever sobre o vento. A perfeição pertence-lhe nesta área. Mas no dia em que hoje estamos há roupa estendida nas cordas em qualquer lado para que eu me vire, e de tanto a fitar, ganhei vontade de me transformar numa das peças. são sacudidas, apanham sol, esticam-se nos pequenos intervalos, baloiçam. Dançam nas traseiras dos prédios, depois de um inverno prolongado, pessimista.