quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Homem do frigorífico

Já era tarde para voltar atrás. Ficou com uma mola a menos, mas que se lixe. Estava cansada de o ver fora do lugar. O frigorífico parecia um monstro dentro da cozinha. A única peça que destoava. Resolveu dar-lhe um fim. Custou-lhe uns arranhões nos braços, mas valeu-lhe uma noite bem dormida, tal era o cansaço. Explique-se: Matilde teve dificuldade em arranjar o frigorífico que se avariou em pleno Verão. Depois de uma semana a telefonar para técnicos desconhecidos, conseguiu, finalmente, encontrar um a jeito. Na primeira vez em que ele foi lá a casa, sentiu um certo descanso. O Paulo inspirava confiança. Falava com calma, olhava para a máquina como se a entendesse. Desmontou-a sem sobressaltos. Dava gosto vê-lo trabalhar. Deixou uma pequena caixa para medir a temperatura e a promessa de voltar na semana seguinte e assim confirmar o problema que lhe diagnosticou. Matilde sentiu-se vitoriosa naquele dia. Valeu a pena procurar, insistir para encontrar o Paulo. Ele trataria como deve ver do frigorífico, uma das máquinas mais preciosas de uma casa. Um frigorífico é o pulmão de uma casa. É vital. Confiou no Paulo. Na semana seguinte, como ele não ligou, tal como combinado, tomou a iniciativa. Ele foi amável mas adiou a visita. Pareceu-lhe sincera a desculpa. Achou que estava na hora de deixar de desconfiar de técnicos e canalizadores. O Paulo não a deixaria na mão. A maquineta da temperatura, que tem aspecto de ser coisa cara, continuava dentro do frigorífico. Na semana seguinte, ele não disse nada. Deixou passar mais uns dias e ligou-lhe de novo. Nada. Agora, não atendia. Tentou dois dias depois já a pensar que estava a ficar paranóica: que sentido pode fazer o desaparecimento de um técnico que arranja electrodomésticos? A resposta era simples: nenhum. Nem um cêntimo lhe tinha dado, e o aparelho de medir a temperatura estava onde ele o deixou. Voltou a não atender. Sem racionalizar muito o que fazia, decidiu voltar a colocar o frigorífico no lugar, encastrá-lo no móvel. Não foi fácil, o peso tornou a operação difícil, as molas de suporte não encaixavam - nessa altura teve tantas saudades do Zé, que continuava em Londres - ganhou uns cortes valentes e umas nódoas negras, mas lá empurrou o frigorífico. Ainda sem lavar as mãos, foi beber um Baileys. Encheu o copo. Estava a precisar. No dia seguinte, acordou com dor de cabeça mas com o frigorífico no sítio. Ficava tão bem! Quase perfeito, como ela gostava (a perfeição é defeito). Deu por si a pensar: ainda bem que os homens do frigorífico só são homens do frigorífico.

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