quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

please

mais sossego, se faz favor, vai a passar um pensamento maduro

um minuto

tropeçavam nas palavras. eu ouvia. não tirava dali conclusão alguma. vomitavam ideias. eu assistia. era uma fartura. e crescia a cada minuto a vontade de comer um gelado. enquanto se lambe e saboreia o maracujá não se fala. não se ouve. faz-se pausa.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

contar

Conta até ao infinito para sentir o universo

88

Os meus pais fizeram anos de casados. Passaram 44 anos, mas a minha mãe diz que comemoraram 88. Trabalham debaixo do mesmo teto e passam quase 24 horas juntos, por isso conta a dobrar.

1, 2 e 3

querido pai natal, traz me uma varinha mágica para poder passar a sopa. se funcionar bem, aproveito e peço três desejos.

banheira

agasalha-se mal porque gosta de sentir o frio. depois, queixa-se dele. depois, sente-se frágil. depois, vai para casa enfiar-se na banheira. depois, encolhe-se nos lençóis enquanto ele não chega.

bengala

Queria conversa, a vizinha. Percebi depois. Falou na bengala novinha. Até é gira, disse, como se uma bengala não pudesse ser dotada de beleza. Não a imaginaria a passear de bengala feia na mão. Não me abre a porta de casa antes de se retocar. Sombra azul muito clara, sempre, que lhe evidencia a cor dos olhos. Acelerei a despedida. Tinha 15 minutos para chegar ao INE. Ia de bicicleta. Fiz o caminho a pensar em como seria a bengala.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

a tua voz

Entra-me pelos ouvidos
como se fosse música
de instrumento acústico,
cortada por um ligeiro grão
num dos tons mais graves
mal sobes meio tom
entre a terceira e a quarta
outro som me embala
ligeiramente seco,
estaladiço
se pudesse,
fazia um disco
com ela,
meu top 10

braços

Iam sozinhos em, círculo, girando até à cozinha
sem corpo, portanto
Esse ficou a alongar os músculos
das pernas, até ao maior milímetro possível
os braços, deixou-os ir
voltam sempre

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

efeito

um dos segredos mais bem guardados tem a ver com o deserto e seus efeitos após regresso. o alto mar não conseguiu semelhante proeza. As montanhas idem aspas. Os rios são meninos adolescentes, de borbulhas a abrir e energia a despontar em bruto. depois da fúria das tempestades, só o teu amor.

sonho de uma noite de outono

Soprava vento lá fora
estavam frescos os lençóis
e o teclado do computador
ponta dos dedos
vinha com o dia inteiro
dentro de mim
para deitar fora
despejar
não saía pela boca
nem pelas narinas
essas, entupidas
vedavam
a passagem
sabia que precisava
de fazer do dia tóxico
um passado
para poder dar ao sono
um presente

terça-feira, 8 de outubro de 2013

sem querer

debatia-se por qualquer coisa todos os dias. quando não havia contas por pagar, arranjava uma suspeita minimamente infundada para explorar. de lupa na carteira, e caneta bic laranja na mão, deu-se ao trabalho, daquela vez, de perceber a mudança da vizinha. num mês, 20 quilos. Estava outra pessoa, em todos os aspectos. magra que nem uma vassoura. uma esfregona, tendo em conta o cabelo de pêlo grosso. perguntar seria indelicado. podia ter perdido alguém importante. podia ter descoberto que tinha cancro. podia ter morto o cão.

os três estados

À medida que ia andando, e fazia quilómetros, deixava para trás conclusões sólidas. Chegado ali, que morram. Matava-as, na sua cabeça, desferindo uma paulada certeira, imitando a padeira de Aljubarrota. Xantipa, mulher de Sócrates, também padeira, era outra inspiração. Tau. Desfaziam-se. O amor nunca chega ao estado sólido.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

mapa

desenhaste um mapa tão pequenino. mundo de escassas portas e fronteiras. nos meus países falam-se línguas variadas mas toda a gente se entende. as palavras são mais um meio. os olhares estão primeiro.

dança

disseste-me para ver como uma horta e aí percebi tudo. Tinha vegetais, legumes, de todas as cores e feitios, alguns verdes, verdes, de tão bonitos nem apeteciam arrancar para comer. de lado, plantas, muitas. altas e de folha fina e depois outras de caules e folhas expressivas, como se estivessem num bailado. que abertura de braços e mãos. Linhas quase perfeitas. Não havia flores. as flores morrem depressa.

antes e depois

antes de falares, estavas bloqueado. Nem te mexias. A expressão do rosto fechada. Tinhas um poço dentro da tua cabeça. e não tinhas forças para trepar as paredes, velhas e gastas, escorregadias e perigosas. a imobilidade. O medo apoderou-se de ti e não eras humano. Tinhas ficado um animal. Apenas não tinhas conseguido ser feroz.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

força

rasguei-lhe a camisola intencionalmente. ele não gostava dela mas continuava a usá-la sempre que a restante roupa estava suja, já no interior da máquina de lavar. ele agradeceu. faltava-lhe coragem para cortar com o passado. tinha de ser à força, empurrado por outrém. E já estava.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

um dia

tinha sido educada para não dizer o que pensava. dizia, com delicadeza, o que não feriria os outros. ou então dava a volta e criava um texto ao lado do que pensava, para não o dizer directamente, dizendo-o. Na sua cabeça, um só pensamento encaixava em vários níveis de expressões verbais. Já para não falar da parte física. Sempre disse coisas com o corpo, a sua tradução mais transparente, como se o todo nunca se conseguisse libertar da parte. Posto isto, o desgaste, o acumular de frases sobre o mesmo, de linhas e escadas sobre o chão de terra dura. Uma canseira. Até que um dia.

domingo, 15 de setembro de 2013

limites

dobrou o papel até ao fim das possibilidades. ficou pequeno, mínimo. depois, fez exactamente o contrário. cresceu, esticou-o. puxou-o com a ponta dos dedos. espalmou-o para lhe tirar o amarrotado. era uma folha A5. tinha sido um rectângulo de dois centímetros. era capaz de mais. tinha ficado com as mãos.

tesourada

- espero que sejam mais felizes do que parecem. Que entre quatro paredes falem olhando-se olho no olho e se vejam nus como se fossem abençoados pela natureza.
- serão igualmente tristes?
- é provável.
- Estão separados estando juntos.

domingo, 8 de setembro de 2013

pouca coisa

Que fazer à saudade infinita do que não se pode voltar a ter?

muro

Pulou o muro e foi espreitar a casa escondida. O muro estava a pedi-las. Ali em frente, sempre a olhar para ela quando por ali passava. Pulou o muro e viu de imediato a sala de estar. Era envidraçada, de alto a baixo. A decoração era simples. Cores neutras. Um vaso grande de onde saía uma planta que mais parecia uma árvore. A casa estava vazia. Ouvia-se silêncio. Edward Hopper. Bauhaus. Mente contente. Pulou o muro.

melancia

Se não vieres, passo para plano B. Vou ao cinema, como uma melancia inteira, e falo das grandes, tamanho XXL, mando mensagens a todos os amigos e amigas que não vejo há mais de um mês. O que mais graça tiver na resposta, ganha um bolo de laranja e canela a sair do forno. Se vieres, mostro te aquela fotografia.

domingo, 1 de setembro de 2013

se vieres

cá estou eu a deitar baldes de palavras fora
hoje o balde é amarelo torrado
tem asa cinzenta
no interior, água límpida
e parece menos pesado do que é costume
a leveza da certeza

não saber

perseguiu a ideia do progresso
perseguiu a ideia do amor
afinal, não são o que disseram
são outras ruas
estreitas
a meio da montanha

natureza

depois da esquina, começou a correr
ouvia o barulho dos seus pés no chão
sentia o vento na cara
as orelhas a encolher
na cabeça, latejava uma ideia
o tempo é maior invenção
ai se o apanhasse

domingo, 28 de julho de 2013

cesta

trouxe um par de garfos, facas e colheres e disse: são para te comer melhor

verão

só gostava do meu sorriso?
hipnotiza-o?
não se perdia por mais nada?
fixações de uma noite de inverno
recuperadas num dia de verão

depois

quando for grande, nada farei contrariada

não era o verbo

No princípio era o começo
no princípio era uma incerteza
era uma fruta acabada de apanhar
que enchia a mão
no princípio não se ouvia o farfisa
no começo apenas se avistavam carris
no início não era o verbo
eram as primeiras notas de uma melodia
muito antes do refrão

magia

Pedalou até encontrar rio
ouviu inglês, francês, italiano
estava vento
estava corrente de ar
tirou da mala o frasco
desenroscou
tirou a argola
soprou, soprou e dali
nasceram bolas de sabão
subiram, elevaram-se
bailaram
libertou-as

sábado, 27 de julho de 2013

estrada

pela estrada dentro
vaidosa ia
vestido novo
outros dois na mochila
só compra vestidos
quando se apaixona
pela estrada dentro
cheiros intensos
linhas de perder de vista
vistas longuínquas
pela estrada fora
pela estrada dentro

sexta-feira, 12 de julho de 2013

enquanto isso

cortou caminho, cortou caminho. e não chegou mais cedo. chegou mais tarde. tinha partido depois da tartaruga. a tartaruga fez-se à floresta mais cedo. perdeu. ganhou caminhos.

post it

nota de música. nota de cinco euros. nota de afazeres. são muitas notas. são muitos quartos. um quarto de farinha. um quarto de dormir. um quarto de hora.

papel de parede

vestiu a parede de linho. salvou a planta da seca. enviou pelo correio a palavra certa. ganhou a semana. os dias são demasiado curtos para balanços. os meus dias são as tuas horas.

escadas

não tenho dores, não preciso de remédios. não preciso do calor, nem do fresco da noite. não preciso de ti. por isso, o amor chegou pela porta da frente, subindo as escadas.

vidro duplo

Matias vestia fato de macaco azul. Alto, forte, habituei-me a vê-lo todos os dias. Costumava estar ao pé da Felismina, minha vizinha costureira. Por vezes, sentado na cadeira, levantava a cabeça para dizer: E a menina, como vai? Ontem, teve uma dor de cabeça insuportável e assustou a Felismina pedindo-lhe para chamar a ambulância. Disse-lhe que ia morrer se o socorro não viesse depressa. Felismina ainda teve tempo para pensar que os homens e o Matias, sábia representação do género, gostam de exagerar nas maleitas. Ao segundo vómito, abriu a pupila e a razão e percebeu que estava diante de uma cena real da série "Anatomia de Grey". O que pensamos para abafar o sofrimento enquanto ele se instala.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

campo

quantos pensamentos levamos de carroça?

quarta-feira, 10 de julho de 2013

de lado

toco-te no braço e ouço-te. música para os meus ouvidos, tendo como baixo o vento suave. acontece no banco de jardim.

em pé

o ritmo da forma de andar. o ritmo da respiração. o ritmo da gravidade.

terça-feira, 9 de julho de 2013

deitada

resulta outra coisa pensar deitada. Por isso, Rembrandt dormia sentado. Não só por isso. Era costume na época. Acreditava-se que a ida do sangue para a cabeça daria morte certa. os pensamentos deitados são menos firmes, voam. Os mesmos de cabeça erguida impõem-se ao lado de muita cautela. efeito dos pés na terra. ou da terra nos pés.

domingo, 7 de julho de 2013

sentada

enquanto olhava para ele, nasciam versos na minha cabeça. ele não os ouvia. eu não os dizia. tinha vergonha de os deitar cá para fora. Parecia a Ofélia a escrever cartas ao Pessoa. eram primários. estava encantada e deixava-me estar, sentada naquele banco de madeira.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

ponteiro

pedir um minuto de atenção. conversa séria ao minuto. nos intervalos. intervalos valiosos. sérios.

estafeta

chorar pelo que devia ter dito e não disse na altura certa. ficou por dizer. a quem o dizer? quantos pensamentos carregamos no camião?

segunda-feira, 1 de julho de 2013

rio

seguia esverdeado, escorregadio
terá sido sempre assim
aquele rio
simplesmente não estava lá
como naquela noite em que não estive lá
e naquela tarde em que não fui
naquele domingo em que fui preguiçosa
bloqueei estupidamente até segunda-feira
seguia de água límpida
ao gosto das rãs
ao gosto das algas finas
das lagartixas
dos sapos, não sabemos
foram para o baile
não sabem estar sozinhos

bem comportada

derreto-me. sinto um pouco isso nas pontas das mãos e dos pés. se me desfizer um dia destes, transforma-me num chocolate, se faz favor.

madeira

Caiu, bateu com a cabeça na cómoda e morreu. Num segundo, contava. Sem tempo para revisitar o passado, felizmente. Tem Alzheimer e sonha um dia bater com a cabeça num móvel qualquer. Joaquim foi esquisito a vida toda. Gostou de amarelo quando era fatela vestir essa cor. No momento de ir embora, qualquer madeira serviria. Sabes que não vai ser assim, disse. Também não sabes como vai ser, nunca sabes como vai ser a seguir, amanhã, e depois de amanhã, e antes do fim de semana, dizia-me, cheio de vida.

sábado, 29 de junho de 2013

Poesia quotidiana

de que serve a poesia enfeitada
de que serve gente postiça
caem as unhas de gel
e
a descoberto fica a mancha do fungo
de que serve não falar das ninharias
se são elas a inquietação
de que serve um prato de ostras
se o apetite pede uma banana dentro do pão
de que serve a poesia enfeitada
se a vida é sóbria que nem as manhãs

sexta-feira, 7 de junho de 2013

vinho

Não é o melhor poema dele. O melhor também não interessa. A competição é uma treta. As melhores pessoas de tão boas ficam escondidas pela bondade. Disse-lhes para serem menos generosas. Não perceberam onde queria chegar. Continuaram excelentes. E desisti de querer fazer delas o que não são. Atirei razão, devolveram um jantar à larga. Cada prato mais delicioso do que o anterior. Vinho de 100 euros. Tinha sido oferecido. O nome não o fixei. Esqueci-me de perguntar pelo filho ausente. Emigrou.

às escuras

A dor não tem luz. Fecho os olhos. Pões a mão sobre a minha cabeça. Não consigo abrir as pálpebras, apesar do sol queimar a pele e de me pressionares falando das andorinhas. Voam sobre a piscina, vem  uma e outra atrás, imitam-se, fazem tangentes finas à linha de água. Vão bebericar.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

falta

Felismina gostava tanto de aprender. Era uma paixão. Iluminava-se. Depois, na adolescência, começou a compreender, a compreender até ao tutano e não poder mais e aí transformou a paixão em amor de noiva. De tanto querer compreender os outros, para não os julgar e os justificar, esqueceu-se de si e eles esqueceram-se dela também. Ficou invisível, estando visível, sentia-se pouco em toda a parte e toda a parte sentia falta dela.

hirudoid

tinhas uma árvore dentro de casa e um piano no meio do jardim. desconfiei logo. ajudei a deslocar as peças até aos sítios devidos. Disseste que foi isso que mudou a tua vida. eu, eu ganhei as tuas piadas.

vai ou fica

vai
vai, vai
vai, vai, vai,
vai, vai, vai, vai, vai, vai, fica

fica? fico?

vai ou fica?
vai,
vai, vai
vai, vai, vai

fico?
fica



segunda-feira, 27 de maio de 2013

tema original

tive um sonho com banda sonora. um dos temas era bom. dos outros, não me lembro. quis gravá-lo e quase consegui. tinha refrão. era animado. peguei no gravador para o cantarolar. tinha-o na mão e a ele na cabeça, bastava deita-lo fora. mas não saiu. eu tive um sonho com banda sonora.

deboulés

Não estragues uma tranquilidade que tanto demorou a fazer parte.

quieta

matou a culpa, mas ela ressuscitou. Não foi na Páscoa, foi no Corpo de Deus. Voltou a sacudi-la e ela sucumbiu. Desistiu diante de tanto pó. Parece. Está quieta.

iphónicos

Caminhavam pelos passeios, conversando a bom ritmo, de forma encadeada. Não haveria guião de filme mais perfeito a esse nível. Falas vivas, períodos pouco extensos. A vizinha, o pão, o Herberto Helder, as férias no campo, a queda do precipício, a viagem a Israel, ligaram-se espontaneamente. As declarações de amor ficam sempre para depois. Escrevem-nas via iphone. Ao vivo, não se fala delas, não vá o éter desviar-lhes o sentido.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

tristeza

as músicas melancólicas ajudam a sentir tristeza longe de quaisquer postiços e disfarces. é melhor assim. vem delicada em terreno de respeito.

domingo, 19 de maio de 2013

reclicar

quando se tenta dizer o que vai na cabeça sai algum lixo, frases a despropósito. Não tem mal. a melhor música tem algo disso. a melhor amizade também. a perfeição é muito chata. a vida é tão imperfeita.

fazer a praia

Alice gostava de fazer a praia. Ia sempre aos quatro cantos perceber a dimensão e depois ia molhar os pés. Nada superava a sensação de vida de uma água gelada no corpo. Se andasse meio morta, tomava banho. Metia-se lá dentro. Quando saía, sacudia-se que nem uma cadela e ganhava alma nova. Podia não durar muito. Não interessa. Nem sempre o que dura vale a pena. E a pena é muito relativa.

ver-te chegar

Sonhei contigo. Estavas igual. Tinhas os músculos com o desenho de antes e olhavas para o meu pescoço da mesma maneira, inclinando a cabeça. Desviavas o cabelo para passares o dedo. Pedia-te para te afastares. Vai, vai. Tinha de treinar pensar-te na tua ausência. Queria ver-te chegar. Fechava os olhos quando te ias embora. Ficava em pausa e vestia a tua camisola antes de adormecer.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Felismina

Felismina andava à procura dos seus defeitos, perseguia-os. a culpa era tanto dela, que se castigava por dá cá aquela palha. Um dia, certa vez, naquele mês, cansou-se da busca e viu, finalmente, de outra maneira. Não eram defeitos. era só uma perseguição estéril. e o cansaço desapareceu.

beleza

a beleza da sinceridade não se supera. não há vestido nem verso mais marcante. pele em formato palavra. Cheia de sinais, pequenas sardas. Um grão de areia na Adraga, praia escondida entre montanhas. A beleza da sinceridade descobre árvores onde outros vêem jardins.

domingo, 12 de maio de 2013

viagem de comboio

é porque não somos simples que procuramos a simplicidade.

terça-feira, 7 de maio de 2013

cães de louça

A colecção de cães de louça não é bem uma colecção. São cinco, ao todo. Vieram parar cá a casa por acaso. Cada um traz uma história. Nunca se partiu nenhum, talvez por estarem fora dos aposentos reservados à cozinha. O maior foi oferecido aos meus pais no gozo e reencontrado exactamente na véspera da mudança de casa. O que veio de Moscovo foi comprado enquanto decorria um assassinato à porta do apartamento onde estava instalada. Quando cheguei à entrada do prédio, havia um lago de sangue e salpicos em redor. Subi rapidamente as escadas. Energicamente, de dois em dois degraus. Não quis usar o elevador. A meio caminho, um vizinho nitidamente perturbado, de mãos trémulas, fez sinal, levando o dedo à boca, para me calar. Sentada no sofá extra mole da sala retirei o papel vegetal do embrulho do cão e dei por mim a pensar na morte e na sorte que foi ter estado presa uma hora e meia na loja de artesanato. Primeiro, tive um bloqueio e não me conseguia decidir. Tinha planeado uma compra e não duas. Depois não encontrava o cartão visa em lado nenhum.

torradeira Crussel

faço café numa italiana para que o cheiro do café me encha a casa. antes de começar tem de haver uma introdução. não a passo à frente. façam-se torradas a seu tempo.

acordar

não vieram os melros cantar para ao pé da minha janela. acordei sem pássaros

viu

- tia, a mariana diz que se contarmos até 8 duas vezes em frente ao espelho, aparece o nosso namorado.
- isso não faz sentido nenhum. isso não faz sentido nenhum.
- pensei em ti e foi o que lhe disse (gesticula, abre os braços e as palmas da mão, estica os dedos).
- e ela? (a andar em passo lento no jardim fernando pessa)
- que viu o namorado, o rodrigo do 2.º A

casa da lista amarela

Era a primeira vez que passava férias acompanhada de duas amigas. Metiam-se na cama entre as 22 e 23 horas, depois do regresso do café da aldeia. A pedalar, iam de bicicleta, era uma galhofa pegada. O concurso da melhor piada. Bocas sobre colegas de escola, namorados improváveis, professores desajeitados ou segredos das festas de garagem. Interrompiam-se, riam-se muito. Faziam imitações. À terceira noite, conhecerem os amigos do Alfredo, o neto do vizinho da casa azul, que vivia no Porto. Duas noites depois, estavam a combinar um encontro, por volta da meia-noite, no pinhal colado à placa de entrada para a aldeia. Imitando as séries televisivas e os livros da Patricia e dos Sete, os Cinco eram para miúdos, planearam ao detalhe o encontro nocturno. Alguém bateria na janela três vezes e faria depois uma pausa. Dez segundos depois, repetiria os toques e sumiria. Saltariam então da janela em pés de veludo. Assim foi. O coração de Luisa nunca bateu tão forte. Nem na piscina, após as provas de bruços do segundo período. Teve de o apertar ao peito. Para se acalmar, mas também com intenção de abafar o som. Havia pouca claridade na estrada, as árvores ganharam cinzento. Ouvia-se o latido do cão vindo da casa de lista amarela. Não se lembra da temperatura, por isso não estaria frio. Mês de julho. Vestiam apenas camisolas largas, pintadas durante a tarde, depois do banho no tanque, que podiam ser dos irmãos mais velhos, não chegavam aos joelhos. Deram passos largos e saltaram estrada fora. Rodopiaram e dançaram para afastar o medo.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

banho

Não suportava a inocência dela. Os princípios éticos e morais apurados. Davam-lhe superioridade. Inferioridade, para ele. Era demasiado limpa. Ela apresentou-lhe outra versão. Gostava de rock e algum punk, sons sujos, portanto, por alguma razão. Os grãos de areia não o convenceram. A angústia mantinha-se. Ele era um poço de defeitos, não queria que ela se banhasse nele.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

cravos

saiu-lhe das mãos um molho de cravos vermelhos. não cheiravam a nada, estávamos em 2009, o ano em que Lisboa perdeu os aromas. Os lisboetas tinham de imaginar o cheiro das manhãs luminosas e das sardinhas assadas na brasa. Foi um ano vivido em sensação de falta. Os melros voavam sem companhia, por lapso, cortaram-se árvores saudáveis nas ruas erradas. Os chineses, esses, começaram a ser vistos nas ruas, a fazer parte da paisagem; a avenida almirante reis, por exemplo, lavou-se e ganhou nova vida. Quando não me oferecem um molho de cravos no dia de 25 de abril, compro-os eu. Assim que agarro neles, vem para mim a sensação de conquista. não aos mouros, minha, nossa.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

peixinho

Josefina disse-lhe para aparecer às 19 horas no Cais Sodré. Ele não sabia ao que ia. Quis saber, mas não teve sorte nenhuma. Quando ele chegou, desfez-se um pouco e disse-lhe: vamos apanhar o barco. Os olhos dele brilharam muito. Viu neles escapar uma ligeira faísca, mas deixou a razão falar mais alto e arrumou rapidamente a percepção pouco realista. Não podia ser, ponto final. Lá foram. Subiram ao convés e ali permaneceram calados, a ouvir o barulho do motor, a água cortada pela ventoinha, de olhar fixo na outra margem. Quando saltaram para terra, começaram a dizer piadas sem piada. Funcionou bem. Desbloqueou a conversa e até o corpo tenso de Josefina. Beberam umas imperiais e puseram-se a caminho à beira Tejo. Objectivo: restaurante atira-te ao rio. Podia ser assim o fim de uma relação. Não era essa a ideia de Josefina. No regresso, parecia que tinham avançado meses numa paixão de horas. De vez em quando empurravam-se um ao outro, ombro com ombro, que nem miúdos de quarta classe. Tiveram de acelerar o passo para apanhar o último cacilheiro. Frio, estava muito frio, frio firme. Um mais despenteado que outro. Estavam gelados. Estavam gelados e comeram-se.

enrola na areia

a praia gosta de ti

domingo, 21 de abril de 2013

janela

praia. regresso a casa. cortina dividida em três. ferro de passar. desliza para a esquerda e para a direita. parte seguinte. meia hora nisto. cheiro a lavado na cozinha. mais um pouco. vapor. falta a meio. está quase. dores musculares. braços esticados. missão cumprida. quarto vestido. hora de ir para a cama. livro fechado. desligou.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

casa despida

cortinas na máquina de lavar

reunião de condomínio

- pagamos imi de valor diferente por este prédio ter sido construído ao contrário.
- ao contrário?
- tem datas de registo diferente, foi o que me disseram das finanças.
- os mais antigos são os terceiros andares?
- parece que sim. Foi construído a partir do telhado.
- de cima para baixo?
- sim, é um mistério. Mudemos de assunto, preciso de voltar para Marrocos.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

água

Há quem precise de banhos de imersão
prefiro poesia

sexta-feira, 5 de abril de 2013

segundos

cheiravas a verão
que raio de pele
mais irresistível
tinhas
fervilhava de vontade
de uma dentada
e receava que o lesses
nos meus olhos transparentes
medrosos
cerrei-os segundos
para que não visses
sinais
abri-os
estavas tu
de olhos bem fechados

pomar das laranjeiras

Sempre soube que um dia
escreveria sobre o pomar
hoje não consigo
hoje não consigo
escrever sobre o pomar
hoje não consigo
falta músculo
sempre soube que um dia
escreveria sobre o meu pomar
hoje não consigo
teria de puxar
pela memória
está perra
voltar atrás
aos momentos chave
ao dia do diagnóstico
da doença
à decisão de te arrancar
da minha cabeça
e de fugir, não me largavas
hoje não consigo
hoje não consigo
hoje como laranjas


vida dupla

quando os sonhos se sucedem em episódios, estaremos doentes? Assim rola há 15 dias. Envolvem duas, três pessoas. A acção é divertida e bastante realista. Nada se assemelha a pesadelos. Cérebro, cérebro meu, de que tipo de férias precisas, diz-me lá. estou a tomar notas.

baloiço

ruy belo que me perdoe o atrevimento de escrever sobre o vento. A perfeição pertence-lhe nesta área. Mas no dia em que hoje estamos há roupa estendida nas cordas em qualquer lado para que eu me vire, e de tanto a fitar, ganhei vontade de me transformar numa das peças. são sacudidas, apanham sol, esticam-se nos pequenos intervalos, baloiçam. Dançam nas traseiras dos prédios, depois de um inverno prolongado, pessimista.

terça-feira, 26 de março de 2013

melro

Um melro à minha porta,
quase ao pé da estação
bico amarelo
corpo negro
andava ali de um lado
para o outro
de um lado para o outro
de um lado para o outro
levei comigo a sua imagem
descarrego-a aqui

sábado, 23 de março de 2013

frio de março

Passado três meses, arranjou coragem para espreitar a página de Facebook dele. Cumpriu direitinho a auto-imposição. Na última semana foi custoso. Chegou a hora de ver, encarar a desaire e andar noutra direcção. Lá estava ela, a nova namorada. Seguia o padrão. Morena, um pouco ruiva, sardenta, pose insegura mas elegante, perna alta, queixo e nariz bem desenhados. Parecida comigo.

frio de janeiro

Sentou-se à frente dela e colocou as mãos em cima da mesa. Estava frio na esplanada do Museu de Arte Antiga. Ela estremeceu um pouco, mas resistiu a comentar a temperatura do primeiro dia de primavera. Não queria ser vulgar naquele momento. Pressentiu, de imediato, que iam dar-lhe tampa. Falou de coisa nenhuma até mencionar as parecenças com a sua irmã mais velha. Vinham-lhe à cabeça de vez em quando e por isso não conseguia continuar. nem mais um beijo. acabaram-se os bilhetes na bicicleta. As linhas do nariz e do queixo tinham o mesmo desenho, dizia. na cabeça dela fez-se um pensamento tolo. Eça de Queirós, Eça de Queirós: teriam o mesmo pai?

não é

há palavras por inventar e queria trazê-las aqui. Como chamar à empatia fina sentida por um quase desconhecido? não é amor, que sei bem o que isso é. Provei-o cedo, minha cara amiga. Divorciei-me cedo, camarada. não é amor porque esse faz ser mais tolerante do que é costume e aceitar o que por regra faz mal. Fumei por amor, é verdade. Bebi absinto por amor, um dia conto-te essa história. conduzi a 200 Km/hora por amor, meu Deus. há palavras que não servem para o que queremos dizer porque somos mais do que matéria e cinzas. Metafísica? Põe metafísica nisso. o mistério não está no amor. esse, quando está lá, bate forte que nem trovoada em tempo seco algures no alentejano. O mistério está na incerteza. em tudo o resto que não é amor.

antes do amor

antes do som
antes do amor
depois da música
depois do jantar
os primeiros dez minutos
de conversa são sempre
para deitar fora
jogam-se no lixo
em saco limpo
negro, brilhante, a estrear
antes da doença
depois da cura
antes de cozinhar
depois do banho

migalha

era uma migalha na vida dela, dizia. Dedicou-lhe duas horas de conversa.

balão

comeu vento
encheu-se de ar
e voou

osso

Agarrou-se a ele.
Era magro, osso e osso,
conseguiu perceber
o desenho dos
omoplatas.
ainda hoje se lembra disso,
omoplatas

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

fazer o pino

Fomos passear, deitar conversa fora. Deu-se o inverso. Vieram as palavras todas para dentro. Ficou cheia delas. Decorou cada frase como se fosse um verso eterno. Não lhe saíam da cabeça. Teve de fazer o pino.

eixo

Apesar do frio que estava lá fora, estava quente no eixo principal. Deslocou o equilíbrio para a zona abaixo do peito, ligeiramente acima da barriga, e a sequência dos acontecimentos alterou-se. Os problemas eram exactamente os mesmos. o ponto para eles é que era outro.

parva

Como estás?
Estou parva.
Neste momento?
Há dias.
Isso passa?
Demora.
Como começou?
Depois do acidente.
Então?
Desisti.
De quê?
De controlar.
O quê?
A minha vida
Toda ela?
A que vier

levitar

A conversa sobre a neve não é uma conversa sobre o tempo. A neve é outra coisa. Tal qual tu.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

sem-abrigo

Podemos perder tudo. O nome fica

sábado, 16 de fevereiro de 2013

amoras

Foi rua fora, pé no asfalto, vestindo apenas camisa de dormir.

biscoitos

Naquele cesto juntam-se frases perdidas. São papéis de cores e feitios diversos. alguns deles de letra imperceptível. Demoro tempo a decifrar os gatafunhos das duas da manhã. os outros estão alinhados, impecáveis, limpos. Ganho sempre alguma preciosidade a tentar encontrar o mistério.

deslizar, deslizar

o melhor exercício para conhecer alguém melhor. jogar ao se eu pudesse. Se eu pudesse passava o dia a andar de patins. O dia, é como quem diz, o tempo todo até me fartar e não ter forças para mais. Desistir assim não é desistir. A última vez, houve uma vez em que caí e senti o frio no rabo. não me magooei. Já me tinha magoado nesse dia o suficiente por causa do Pedro. Já tinha sentido frio.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

dói me o pé

depois de um palavra, veio outra, e mais outra. Fez-se uma história. A deles. Começou pelas confidências, deslizes mínimos entre conversas cruzadas de amigos. Em vez de equívocos, nasciam esclarecimentos. Não importavam. Sabiam bem que não importavam. Foram almoçar ao "bate fundo", na Graça.

iogurte

Aos seis, comia iogurte de banana todos os dias. Fez uma pausa na adolescência para experimentar outros sabores e estacionou, mais tarde, de novo, no de banana. O sabor nem sequer se alterou. Exactamente igual. Mudou a embalagem.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

hipoteca

Anos teimosos aqueles: a culpa é minha, a culpa é minha. Moral das histórias mais íntimas, uma após outra. De cela em cela. Erros associados a defeitos. A culpa é minha. Hoje, as crianças herdam dívidas.

básico

diz-me que foste para casa a pensar se terias feito tudo mal naquele fim de tarde. À medida que a horas passam desenvolvemos ideias menos essenciais. De manhã, estamos na infância.

manias e taras

Nada de mais errado do que poupar no chá e no café. Corta no medo

profundamente

Com a dor não se brinca

vistas de fim distante

Não suporta fãs de coscuvilhice. Está do outro lado lado. Perde-se em contemplações. Poemas, fotografias, parágrafos, notas de piano, pautas, músicas de embalar, linhas de ballet, saltos do chão, vistas de fim distante. Não espreita pela janela. Basta-lhe ver as cortinas. Podiam ter sido lençóis.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

a tua fotografia

as melhores fotos são sempre as de alguém a pensar
fiquei presa à imagem
colou-se entre as memórias recentes
era a preto e branco e flutuava
errante, sem causar incómodo
intrometeu-se simplesmente
as melhores fotos são sempre as de alguém a pensar

mar de prata

sol de inverno
frio nas mãos
nariz gelado
pontas
as ondas teriam dado
cabo de mim
se me tivesse feito a elas
bebi água salgada
engoli areia
quanto mais aprecio
a natureza
mais me apetece deixar
de comer vegetais


sábado, 12 de janeiro de 2013

vick vapospray

quando está desanimada
encosta a chávena
de chá bem quente ao coração
cerra os olhos
e deixa entrar
a claridade
que vem
da janela
em 11 segundos, os feixes de luz
ultrapassam as barreiras
e chegam lá
os neurónios agradecem
há festa de fim da tarde
cerveja fresca e tremoços
piadas non sense
planos de viagem
lá dentro

dois

descobriram que tenho dois
corações no peito
fica explicada a inquietação
a sensibilidade tão fina
os excessos nos amores
e na dança
ainda não disseram
qual me tiram
vai demorar um mês a saber
por minha vontade
ficava o maior
o mais pequeno
quer emigrar

raiz

juro pelo meu cabelo

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

on my way

faz à tua maneira em vez de fazeres à maneira do trabalho. Cansa menos, descansa a pele.

a ver se te avias

Estava na caixa do correio o livro. Vai lê-lo devagar. Assim trata o que gosta. Coisas chatas, é um ver se te avias.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Rewind

Não bebe água das pedras há um ano. Era a primeira bebida dos encontros com o José. De tal forma que o abastecimento na despensa se tornou rotineiro. Começaram na esplanada do cinema São Jorge. Beberam-na juntos pela última vez em Alfama. Apagou da memória o nome da tasca. Após o afastamento, deixou de fazer sentido. Ontem, voltou a pedir água das pedras natural, à semelhança do passado, utilizando a mesma entoação de voz, e contou ao Pedro, por alto, o trauma. Ele ouviu-a através dos olhos e disse-lhe a seguir: não a peças ao pé de mim, ok? Calou-se e encolheu-me. Há coisas que é melhor não sabermos, não é?, disse. Meteu a mão à boca para a tapar. Maldita. Não dá para voltar atrás.

caracol

Nunca tem fé no início de uma relação. Vai ela a meio, quando começa a ter um vislumbre de um namoro. Afinal, resulta, diz ao espelho confidente. A falta de timing tem-lhe estragado o futuro. Chega ao final e ela ainda vai a meio.