terça-feira, 25 de novembro de 2008

Vizinhas

Vinha do hospital de braço dado com o sobrinho. Quase que a Sara tropeçava neles no segundo degrau. Aconteceu quando Sara se viu obrigada a ir a casa à hora de almoço por causa de uma inundação. Lia, a vizinha, regressava à casa de Alvalade para uma estadia curta. Contou que o médico lhe disse que seria no máximo uma semana. Durante esse tempo, teria de aparecer um dador de coração compatível. Mas Lia não parecia dramatizar o que se estava a passar com ela. Falava dos factos com entusiasmo. No encontro com a vizinha de lado, que se deu logo a seguir - as escadas tinham-se tornado a praça pública - dizia que o que mais a chateou no tempo passado na enfermaria não foi a comida, não foi a falta de humor de certos médicos, mas os outros doentes. "Aquelas provincianas que passam o dia a lamentar-se, que estão sempre a queixar-se das dores deram-me cabo dos nervos". Mariazinha, do segundo esquerdo, concordava, acenando com a cabeça para a frente, enquanto, ao mesmo tempo, lançava um sorriso fechado. Bem, o pormenor romântico da história foi o olhar iluminado do sobrinho. Comportou-se como se estivesse a assistir a uma cena de filme. Não disse nada. Manteve-se como observador não participante mesmo quando foi apresentado como sociólogo que se dedica à investigação. Num quadro normal, Sara teria subido às paredes com a ideia dos provincianos, que são quase sempre, os que gostam de chamar aos outros isso mesmo. Neste caso, não. Pensou que a tolerância teria de ser isso. Fez como o sociólogo giro. Ficou muda. Depois, assim que ele bateu a porta, foi à janela para o ver desaparecer na rua. A esquina comeu-o.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sinto-me com sorte

Reparou que o google dizia "sinto-me com sorte" e pensou que estava a alucinar. Deve ser do xarope forte, composto com ervas de nome esquisito que estava a tomar. Esquisito. Lembrou-se de uma zanga antiga, com um ex-namorado, quando este lhe chamou a atenção que andava a reagir às questões mais difíceis sempre da mesma maneira, dizendo apenas: "Que esquisito". Clicou no sinto-me com sorte para ver o que acontecia e foi encontrar nessa página uma associação chamada UPS. Voltou a fazer enter até descobrir que se tratava de Unidos Pelo Sofá. Faziam parte da associação alguns nomes familiares como José Diogo Quintela, Jacinto Lucas Pires. Hum. Foi procurar o último livro dele e leu a frase que tinha sublinhado: "Subo ao telhado. Se eu amasse alguém, seria assim, por cima da cidade". Voltou à página e procurou contactos. E, sim, tinham sede própria. Ficava na Estefânia. Ligou a uma amiga que morava ali perto para lhe perguntar se a conhecia. Camélia não atendeu. Voltou a insistir e ouviu do outro lado uma voz rouca e encolhida. "Sim, sei o que é, não é nada de especial". Combinaram ir tomar um chá ao UPS. "Daqui a uma hora". Vestiu o seu casaco novo. Olhou-se de lado ao espelho, como faz quando se prepara para algo importante. E lá foi. O portão era grande. Assim que o empurrou, percebeu logo que ia gostar daquele sítio. Parecia um espaço encantado. Sentaram-se com movimentos lentos nos sofás de material gasto e adornado. Virou-se para a Camélia e perguntou: "Porque nunca me falaste disto?". Camélia resmungou: "Sei lá! Isto não tem nada de especial". Foi para casa cabisbaixa. Camélia só tinha queixas para lhe contar. Foram tantas que se cansou com a tareia. Grande chata. Os braços descaíram, o pescoço inclinou-se. Chegou a casa exausta. Ligou o computador e lá estava: sinto-me com sorte. "Estes gajos do google lembram-se de cada uma", pensou.

Vou comprar um cão

Assim que pus um pé no taxi, deixei sair as frase: "Que cão tão branco!". O bicho estava rodeado de três velhotes ao pé do rotunda do Marquês do Pombal. Foi o suficiente para que o taxista começasse a falar do seu rafeiro. "É mais esperto do que muita gente", disse. Perguntou-me se já tive um cão. Respondi-lhe que sim, mas que este morreu. Não fez a pausa que costuma fazer-se depois de alguém dizer que alguém lhe morreu. Apressou-se a contar que o seu rafeiro não faz porcarias em casa e que até sofre com isso, por se conter, até ele chegar. Falava tão animadamente que acabei por trazer à memória os melhores momentos que passei com o meu cão. Ainda disse ao taxista que há quem diga que os cães são tão espertos como as crianças de três anos, um misto de sensibilidade com ingenuidade pura. Abanou a cabeça, dando sinal afirmativo. Os cães sabem ser amigos, prosseguiu. A sua sabedoria ou o que seja que provém da sua genética tem esse dom. Perguntei: "Tem amigos que não sabem ser amigos?". O senhor Zé, como veio a apresentar-se, atirou a resposta certa: "Tenho. São cães de louça".

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Pessoas

Quando estou mais em baixo, contava o Zé, volto a ler Fernando Pessoa. Ele é o guru dos solitários que têm gozo em sê-lo. Josefa via com distância essa realidade. Neste momento, tinha dois filhos, um marido ocupado que a fazia sentir mãe solteira e estava cada vez mais afastada dos amigos de sempre, que continuavam a sair à noite, a frequentar festas. Umas amigas de outros tempos tinham criado um colectivo de djs a que chamaram "Donas de casa aos pratos". Na primeira vez que ouviu o nome, até pensou que estavam a gozar com ela. Pois sempre coleccionou pratos, dos mais retro, aos modelos com mais design. Enfim, disse ao Zé que não sabia o que ler agora que tinha pouco tempo. Nada a animava. E o pior é que a maior parte das narrativas lhe pareciam demasiado fantasiosas. Chegou a dizer que até deu por si a pensar no outro dia se a valorização dos escritores e das suas obras não era uma atitude do século passado. "Porque são eles os heróis do intelecto?", questionou. O Zé acalmou-a. Elogiou as crianças, vivas e espertas, o trabalho onde ainda brilhava. O Zé disse-lhe que ela tinha tanta coisa boa a que se agarrar e fez-lhe ver que ele tinha muito menos motivos para acordar bem disposto. Ela deu-lhe razão. Ele foi lá dentro, fez um embrulho rápido com papel de jornal e deu-lhe um presente: "O rosto e as máscaras", poesia e prosa de Fernando Pessoa. Ela emprestou-lhe a Rita, de quatro anos, para ele passear um dia inteiro.

São Martinho

Sofia estava a chegar aos 35 e sentia-se como sempre lhe disseram que era suposto sentir-se aos 30. A parte de se achar menos incomodada com o estar sozinha a comer castanhas e beber jeropiga em noite de São Martinho era agradável. Ligou-se à net, partilhou o magusto online com o Pedro e bebeu mais do que ele. Como se provou. Contou-lhe pelo gtalk que tinha pena que ele se tivesse virado para a Olga naquela altura. Ela já tinha comprado roupa interior nova. Daquela vez optou pelas bolinhas. Milhares de bolinhas, pintinhas. Atirou-lhe que ele tinha sido burro. Mudando de tom, o Pedro não gostou nada de ouvir aquilo e, entre castanhas, foi contando que a Olga não foi nada de especial, que ele estava numa fase de não querer nada de especial, que ela se sentou ao colo dele e que ele se sentiu quentinho. Do alto dos seus 3o anos, Sofia disse-lhe: "Aconteceu, não aconteceu? Isso é que interessa. É a vida". "Não", corrigiu ele, "é a vidinha". Sofia desligou o gmail triste. De repente, ficou cansada. Pedro ficou online a escrever-lhe para o mail. Entre outras coisas, disse-lhe que o que eles tinham lhe parecia não se encaixar nem na amizade nem no amor. Talvez não haja o nome certo, concluiu. Depois de 2500 caracteres, terminou: "Por isso, não podemos namorar, nem ser amigos".

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Estou de férias

O amor dá-me tensão. O sangue circula mais rápido, que eu bem sei. As veias transformam-se em auto-estradas. Sem o amor, parece Outono. As folhas caem e vão andando ao sabor do vento. Por vezes, viram-se, outras desfazem-se. Sem o amor, ando calma. Posso ter um pouco de sol, mas nunca o suficiente para me querer despir em casa. O frio também não incomoda e até relaxa. Sem amor, não me preocupo e a preocupação faz-me mal. Sem amor, não tenho horas, compromissos, nem de contar nada de que não me apeteça. Pois é, sem amor nem sequer tenho de ter os pés no chão. Posso andar distraída. Posso desaparecer. Fazer os disparates todos: comer a sobremesa, antes do prato principal e deixar a sopa para o fim. O amor dá trabalho. O amor dá trabalho.

Afinal, era outro

Passaram-se 10 anos, mas é como se fosse ontem. Joana namorou com mais três rapazes e teve outros tantos casos, com pouco mais de três semanas, o limite para se inserirem no pacote dos casos em vez de na gaveta dos namoros. Passaram-se 10 anos, mas Joana fica à toa. Os neurónios dão nós entre si e a sua cabeça deixa de funcionar normalmente. Assim foi daquela vez. Estava com a família mais chegada no restaurante envidraçado, à beira rio, quando a sua prima lhe disse: "Nem vais acreditar em quem está lá fora". Só podia ser ele. E era. Rodeado com gente que ela desconhecia, tanto quanto conseguiu ver enquanto virou ligeiramente a cara a medo de ser vista. Prosseguiu ao seu ritmo a levar garfada atrás de garfada à boca. A perna começou a tremer. "Que estupidez!", pensava. "Vivemos em planetas diferentes, ele casou, eu não, vivemos em cidades distantes, ele teve tuberculose, eu passei pelo receio de poder ter cancro de pele, ele teve um filho, eu tenho um cão de louça e uma bicicleta". A prima deixou-lhe o alerta: "Deve estar com a família dela e com o filho". Gostava de crianças, mas não lhe apetecia ver a dele, sobretudo fazer comentários da praxe à dele. Quando chegou a altura de se levantar da cadeira, respirou fundo e fez força com os pés contra o chão, tal qual lhe ensinaram no Conservatório antes de uma audição. À medida que ia dando um passo atrás do outro, começou a ver tudo em câmara lenta. Foi-se aproximando e espreitou para dentro de um carrinho de bebé. "Olá, está crescido", disse enquanto se dobrava ligeiramente, inclinando-se para ver melhor a criança. Ele levantou-se e foi para a outra ponta da mesa: "Não é esse, é este. Esse não é meu".

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

mama

Estava calor e o ar condicionado não era suficiente para refrescar o carro. Abriram as janelas. A conversa estava bem disposta. As gargalhadas sucederam-se. De repente, estavam a chegar à Ericeira. Bem, tinham-se perdido. Fazer inversão de marcha foi complicado. Acabaram por seguir exactamente o que um carro fez. Mas não sabiam agora qual seria o caminho a tomar. Tinham três hipóteses pela frente. Teresinha queixava-se do calor. Tinha improvisado um leque com um folha de papel e ia dizendo: “Não se está bem em lado nenhum!”. Maria, a condutora, resolveu parar para perguntar a um senhor barrigudo que seguia com a mulher e a filha atrás, cada uma delas devidamente espaçadas por cinco metros de diferença, sobre a estrada mais próxima para a praia de São Julião. No banco de trás, estava Lolita, sempre de olho atento. O indivíduo apareceu do lado da Teresinha. Esta desceu o vidro da janela até ao fim e Maria perguntou: “Por favor, sabe dizer-me qual é o melhor caminho para a praia de São Julião?”. O senhor parecia bloqueado. Não respondeu. Saiu-lhe da boca um som: “Hã? Hã?”. Maria repetiu e ele lá disse, mas sempre com uma cara de espanto a acompanhar. Arrancaram e seguiram. Lolita estava ainda a comentar a família que não andava lado a lado na rua, quando Teresinha solta um grito: “Tenho uma mama de fora!”. Tinha-lhe caída a alça e a camisola. Choraram de tanto rir. Por isso, o pai de família reagiu como reagiu. Teresinha rematou ainda: “Esta estava a morrer de calor".

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Bonito, bonito

A minha avó adorava histórias de pessoas. Sem ter propriamente a paciência que se pede aos psicólogos, ouvia muitas. A mim, ia-me falando de uma ou outra, com o objectivo de eu aprender como eram as coisas. Foi com ela que aprendi que não há pessoas boas, más, bonitas e feias. Mas já lá vou. Uma das histórias que mais me impressionou foi a de uma senhora que batia na mãe que, velhota, se tinha tornado insuportável. Não batia para aleijar, mas dava-lhe uns tabefes. A minha avó contou-me um lado da história logo seguido do outro. Sem intervalo. E como reacção ao meu choque, ainda me disse: "Mas nós não sabemos tudo". Outra que jamais esquecerei é a do senhor que tinha seis filhos da esposa, mais uns quantos da amante, conhecida da esposa e residente na mesma rua, e com quem este fazia abortos a quem precisasse na região. Claro que isto é apenas a síntese mais curta. O que fazia também com gozo, e eu adorava, era levar-me a reparar em pequenos detalhes das visitas: "Percebeste aquilo?". Conclusão: ela via as pessoas e não os bonecos que estas apresentavam. Não me lembro de ela dizer de alguém:"É bonito, é feio". Ela não as via assim. Considerava atributos muito mais interessantes. "Tem um ar saudável; soube apresentar-se; mantém o seu quê de criança; é um trauliteiro; tem energia; vai longe; este promete; esperteza não lhe falta; este sabe; mete-se nos copos ou coisa parecida; deve ter pancada; é amigo a valer; tem cabeça de vento; sempre foi assim; tem fibra; é casmurro; não sabe o que quer", podiam ser frases dela. Não me lembro de outras que seriam mais elaboradas. Mas enquanto isso, lembro-me dela.

Não morreste do coração

Desde que me lembro de ser gente que corri para as urgências do hospital com as crises de saúde da minha avó. De repente, um simples telefonema trocava as voltas à vida da minha família. Ela, apesar de já estar habituada, reagia sempre como se fosse dessa que ia morrer. Despediu-se vezes sem conta. Despedi-me vezes sem conta. Mais ainda sofreu a minha mãe que falava com os médicos e escondia os piores diagnósticos, aguentando sozinha aquela angústia que a incerteza da vida ou morte dá. Quando cresci, fiquei com parte do fardo da minha mama. Por uma questão geográfica passei eu a tratar das idas ao hospital. Transportei-a de carro várias vezes sem saber se se aguentava até lá chegar ou se teria sido melhor esperar pela ambulância. Quando se colocou a hipótese de uma operação ao coração, a minha avó quis, corajosamente, fazê-la. Havia muitos riscos. Foi mais uma despedida. Nunca me esquecerei das suas pernas magras que desapareceram no elevador. Seguiu-se o recobro, cenas de situação limite, com novos furos nos pulmões, sangue a jorrar para garrafões, desfibrilador, a conversa com o cirurgião chefe de que se poderia ter de desistir e desligar a máquina. Mas ela recuperou. Depois, em poucos dias, voltou ao que era no seu melhor. O dia mais feliz da minha vida foi quando saí com ela do hospital. Tenho na minha cabeça a foto que não se tirou: na porta principal dos HUC, eu a empurrá-la na cadeira de rodas e as duas a olharmos para a paisagem como se fossse a mais bela das vistas. O que não é, na verdade. Ao lado, estava o meu namorado que, disse, nessa época, que aquele também tinha sido um dos momentos mais intensos da sua existência. Ele adorava a minha avó. Mas não foi do coração que ela morreu. Viveu mais 10 anos, seguiram-se muitas mais idas às urgências, até que um dia lhe doeu outra coisa. Tinha tirado essa semana para passar umas férias com ela. E ela teve uma dor insuportável na primeira madrugada. Ainda me lembro de pensar enquanto lhe tentava arranjar a melhor posição: "Não pode estar a acontecer, estamos de férias e ela ontem estava tão bem disposta. Não pode ser nada que não se resolva". Como se queixava mais do que era costume e mal se conseguia mexer, chamei uma ambulância. Andou ainda noutra até Coimbra e eu fiz essa viagem com ela. Ainda hoje não posso ver ambulâncias naquele caminho sem me passar. Daquela vez, os médicos disseram que seria uma coisa simples, pois não se tratava do coração, mas do pâncreas. Melhorou, piorou, voltou várias vezes aos cuidados intensivos. Dei-lhe comida na boca seca quando os olhos já não me reconheciam. Despedi-me várias vezes dela. Ainda melhorou e chegou a contar histórias a mim e ao meu irmão a ponto de eu achar que estaríamos a ponto de ver "Nealva 2", como quando foi a operação ao coração. Mas acabou por morrer. Amanhã faz 2 anos e por acaso marcaram-me um electrocardiograma.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Esqueci-me

Uma dor de cabeça maldita. Andava comigo mais coisa menos coisa para aí há uns três dias. Comprei um corrector de olheiras caro. Teve de ser. Mas a dor continuava lá. Quando a Leonor me falou que tinha descoberto na Sara uma paixoneta por ela, ainda me distraí o suficiente para não pensar nela. Ao almoço, mastiguei devagar, para que os maxilares não me atraiçoassem. Muito lentamente. Se o som da dor de cabeça ficasse mais agudo, teria de cortar o cabelo. Talvez fosse isso. Cortar o cabelo poderia ser a solução. Se nenhum comprimido já resultava. Assim fiz. Fui à Ana. Ela é uma cabeleireira experiente. Vai cortar o cabelo que me está a fazer mal. À sua maneira, deu as tesouradas certas. A franja fazia toda a diferença. Deixou-a inclinada de forma a que não se percebesse a sobrancelha mais baixa. Quando me vi ao espelho, achei-me mais arranjada. Gostei da moldura. Ao mostrar-me o que se passava atrás, na nuca, encontrei a tatuagem. Não a via há muito tempo. Tinha-a apagado da minha memória. Passei a mão. Fiz-lhe uma pequena massagem. Tinha-me esquecido dela. Como me podia ter esquecido dela!

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Vem bandido

A mensagem estava estampada no parabrisas, presa na escova limpa vidros:
"Hoje eu nem dormi
a tentar a entender
entre o que eu sinto
e o que eu te digo
o que é feito de nós
e o que vai ser".
Lucília conhecia os versos. Artur roubou-os ao Manel Cruz. Estão em "Foge foge bandido".
Retribuiu.
Passou a tarde a martelar em frases e escreveu esta:
"Se estou dentro da tua cabeça, vais ter de me aturar.
Levo smarties. Durmo contigo esta noite".
Deixou-a no carro que achava ser dele.
Mas ele nunca a leu. Ele não estava à espera dela. Estava a cortar as unhas.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Que nervos

Sempre que estava por perto o Tomás, ficava desajeitada. Parecia tolinha. Com os nervos, não dizia nada de interessante, as piadas pareciam gastas. As mãos transpiravam e o nariz começava a pingar a conta gotas. Naquele dia, aconteceu pior. Disse-lhe à descarada que estava com saudades dele. Tomás franziu o sobrolho, mostrando a sua estranheza. Ela calou-se desde aí. Naquela noite não disse mais nada. Quando este lhe ofereceu boleia, ela recusou, dizendo que estava à espera de um amigo noutro sítio. Tomás insistiu em ficar com ela até que o amigo chegasse. Ela recusou com firmeza. Ao afastar-se dele, foi pensando que não seria assim tão grave ter-lhe respondido que tinha saudades dele, quando este lhe perguntou como ela estava. No semáforo, quase ao pé da esplanada nova do Teatro Dona Maria, um carro apitou e uma voz saiu pela janela. Era o Tomás, que se ia embora. Ela disse-lhe adeus, mexendo ligeiramente a mão. E ficou a olhar enquanto ele desaparecia do campo de visão. Tornou-se pequeno e desapareceu. Depois, caiu-lhe a tristeza em cima. Sentiu-se espalmadinha no chão. Uma bolacha belga. As pernas ficaram cansadas e sentaram-se. Esperou que o concerto de jazz começasse, em pleno Rossio. Mas às primeiras notas, saiu. Foi-se embora.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Saltar à corda

Gosto das cidades por serem mais democráticas. As pessoas misturam-se e a rua principal não é uma passarelle como acontece na minha terra pequena e conservadora. Elsa justificava desta maneira a sua relação com o sapateiro do seu bairro. Na sua vila, seria impensável encontrar um sapateiro que adorasse documentários a ponto de os fazer. Em Lisboa, nunca se sentiu uma mulher sozinha, mas uma rapariga de 30 anos que prefere ir ao cinema sem companhia para poder afastar-se das trivialidades dos outros. Se for à sexta-feira, o fim-de-semana começa mais cedo. Duas horas depois, já esta noutra. Quando chegava a casa e não tinha com quem falar, pensava que tinha de aproveitar aqueles momentos. Pois eles iriam acabar. O que temos acaba sempre. Pode apenas gastar-se, mas muda. Desde que está com o Rui nunca mais saltou à corda na sala. Não é que não o possa fazer. Mas não fica bem nesta fase. É preciso estabelecer marcos. Agora anda de bicicleta. Sozinha, pela manhã, enquanto ele ainda dorme. Antes que este acorde, já está outra vez enfiada na cama e de banho tomado.

O ensaio

João, Dulce e Gabriela eram amigas inseparavéis até que uma delas partiu para Lisboa. Sem a Dulce, a João não tinha conversa suficiente para aguentar a amizade com a Gabi. João era uma pessoa repetitiva, previsível: uma seca a maior parte das vezes. Aquela amizade funcionava apenas a três. Isto para contar que, aos 14 anos, as três amigas tiveram uma experiência rara. À noite não havia grande coisa para fazer naquele meio pequeno por onde passava um rio. O cinema mais próximo era a 4o quilómetros. O convívio surgia como solução. Havendo gente nova por ali, os primos de amigos, essa era a novidade. Combinavam num café mas passavam lá dentro pouco tempo. Apenas enquanto se juntavam. Eram oito naquela noite de luar. Foram para o pontão, sentavam-se por lá, enquanto falavam. Dulce ficou ao pé do Zé, o amigo que a tinha livrado dos apalpões no ciclo. João encostou-se à Gabi, na tentativa de passar despercebida. Mas os lugares foram mudando à medida que Ricky foi manipulando a conversa. Ricky pôs toda a gente a falar do primeiro beijo. Provocando as meninas, conseguiu arrancar-lhes que pouco sabiam do assunto. Gabi ficou curiosa. Mudou-se de tema, falou-se da roupa esburacada de Madonna, mas o isco fez seu efeito. Quando o Ricky se sentou ao lado da Gabi, esta perguntou-lhe, a medo, se os beijos a sério sabem a alguma coisa. Ricky disse-lhe que podia perguntar à Dulce e à João. À João? Também já tinha beijado a João! Acenou que sim com a cabeça. Só ela se mantinha burra na matéria. Apenas tinha encostado os lábios ao Filipe. Mais tarde, quando tocou as 23.30 horas, o sino da Igreja deu bem conta disso, enquanto se despedia, Ricky abraçou-a e pediu-lhe que ficasse mais um pouco. Gabi ficou. Muito concentrada, deu por si a dar-lhe um beijo a sério. Achou aquilo muito estranho. Era molhado e não tinha sabor nenhum. Foi para casa a pensar se com o Filipe também não saberia a nada. Mal dormiu nessa noite. Uma ideia não lhe saia da cabeça: convencer o Filipe a ir ao pontão com ela. Conhecia ali um clareira com uma vista para o rio onde apetecia passar a noite. O beijo a sério aconteceu no dia seguinte. O outro foi uma brincadeira.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Uma esquina

Com as férias, as ruas ficam quase desertas e sobressaem os que ficam. Hoje encontrei muitos perdidos na cidade. São loucos, mais ou menos atordoados, não sei bem. São os que não puderam ir de férias. Ficaram. Lembrei-me do que o Zé dizia depois de um dia de banco no hospital: "Leva-me a um sítio bonito que não aguento tanta miséria". Eu levava-o. Era assim que cada encontro se fazia. Ele conhecia mais uma esplanada, um canto da cidade, um café, uma galeria, um restaurante, uma parede graffitada, uma rua, um beco, uma loja de discos baratos, uma feira de antiguidades, um elevador, uma esquina, um pátio interior. Eu esforçava-me por ter sempre algo novo para lhe mostrar. Até que, aos poucos, se foi tornando mais difícil fazer-lhe a vontade. Resolvi então começar a mostrar-lhe pessoas. Fiz-lhe a proposta. Ele reagiu mal. Não queria amigos novos, porque estava farto de pessoas, de falar com elas, de as atender, de as tentar salvar. Não queria nada disso. Ficou muito irritado. "Quero lugares", disse. Foi nessa altura que lhe coloquei a questão: "E eu?" Ele respondeu: "Tu não contas".

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Dormiu comigo sem querer

Passou a semana a pensar em dois sonhos. Num deles, a vizinha loura e de olhos azuis, bem sublinhados com lápis preto, com mais de 88 anos, já lhe tinha perdido a conta, era uma espécie de Lara Croft idosa que queria resolver um problema no Metro do Areeiro. Para isso, vestida à guerreira, andava no túnel, no meio daquele escuridão. Naquele sonho, a minha pessoa tentava demovê-la a não fazer o que era mais arriscado. Uma tarefa difícil, porque ela não se importava de morrer. Noutro sonho, Hugo meteu-lhe a mão pela axila tocando-lhe ao de leve no início da mama quase sem querer. O gesto atingiu-a como um flecha, distribuindo-se velozmente o sangue até chegar a todas as extremidades. Às mãos, só não chegou ao dedo mindinho, que, infeliz, se sentiu rejeitado. Em três tempos ficou dormente. Acordei deste sonho sem sentir a mão. Tinha-a pressionado com a almofada. E a pensar como tinha levado o Hugo a dormir comigo nessa noite se só me dirigiu uma frase nesta vida. Do outro sonho, foi fácil tirar conclusões... Cansada, estou exausta. O sonho deu-me conta do desgaste que é estar sempre a evitar que certos acontecimentos aconteçam.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Uma peça de fruta

Hugo disse-me que gostava do meu cabelo. Gostar do cabelo de alguém em detrimento do sorriso franco, do modo de alguém de se mexer, da voz, da pele, é uma novidade para mim. "Gosta do meu cabelo, bem, estou tramada". Pareceu-me tão superficial. Fiz o que qualquer rapariga normal faria. Fui a uma loja de cosmética e comprei um bom creme, uma máscara cara e um shampoo de marca francesa. Tinha de me cuidar, não fosse por aí que o namoro ficasse sem graça. Ele provou-me que adorava cabelos. Dava as voltas que fossem precisas na cama para conseguir ficar com o meu cabelo na sua cara. Dormia assim. Deixei crescer o cabelo, não tinha grandes preocupações com a depilação, e comecei a poupar na maquilhagem. Ia apenas usando a que tinha. Na festa de despedida do António, falou, porém, das maças do rosto de uma amiga comum. Não me lembro de lhe ouvir observações do género durante esse tempo todo. Era daqueles que poupava elogios. Um elogio era um óscar. Perguntei-lhe. Respondeu-se sem demora: "Gosto de cabelo porque eu não tenho cabelo, haa!. Gosto das maças do rosto da tua amiga porque estou com fome: apetece-me uma peça de fruta".

Vais partir naquela estrada

Aprender qualquer coisa numa série como Nip Tuck. Foi exactamente o que disse a Carolina. No meio daquela extravagância de sexo e overdose de quebra preconceitos, uma conversa bem escrita marcou o dia de Carolina, que, por sinal, passava uma fase morna na sua vida, sem grandes avanços pessoais, sem nada que mereça ser recordado, mas também limpa de fantasmas perturbadores a tomarem-lhe o pensamento. Carolina contou que uma das personagens ao deparar-se com o assumir da sexualidade do marido, que era gay, ficou muito preocupada com ela própria. A senhora já sabia que o marido era homossexual, embora fingisse não o saber. Mas a história era mais enrolada. Ela sempre teve namorados gays. Foi um atrás do outro. Ela gostava do género e eles também se apaixonavam por ela. Tentou interessar-se por homens com outras características, mas cedo desanimava. Faltava verdade naqueles relacionamentos. O seu marido ia agora experimentar os homens que até aí faziam parte das suas fantasias. E ela? Não se imaginava com mulheres nem com os namorados das suas amigas. Ela não tinha alternativa. E apenas uma certeza: Eles vão sempre embora.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Dona slow

Um slow tem o poder de nos fazer cair nos braços de alguém. Empurra-nos. É verdade. Na adolescência, nas festas de garagem, as minhas amigas esperavam ansiosamente pela pausa para a cerveja e para... os slows. Eu não era diferente. Falava-se pouco, mas percebiam-se pormenores naturais. Alguns rapazes eram logo eliminados pela selecção natural do slow: se não encaixavam num ou noutro pormenor, além da altura, já explico porquê, interrompia-se a dança. Havia sempre desculpas. Rodava-se de braços em braços até acertar. Era giro de ver. Eu, normalmente, já sabia com quem queria dançar os slows. E entre as surpresas que tive, lembro-me da do Filipe alto. À partida, aquela dupla tinha tudo para não funcionar. Um metro e noventa não é o mais adequado para 1,70. Afinal, 20 centímetros nos separavam da forma de ver Mundo. Mas o Filipe resolvia tudo só para me agradar. No primeiro slow que dançamos, puxou-me para cima e fez-me ficar sem os pés no chão. Foi tão atabalhodo quanto divertido. Dancei, depois, muitos outros a ouvir-lhe a batida do coração, que não era lá muito certa, diga-se. No último slow que dançamos já lhe senti a barriga. Fazia barulhos. Foi no casamento dele.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Dançar

Notei uns sinais de interesse quando estavamos na mala do carro. É verdade. Mal nos conhecíamos e tivemos de partilhar espaço no 'comercial' do Rui. Ele segurava-se para não cair. Não estava à-vontade. Eu seguia cada gesto. Antes da viagem, também tinha havido uma ligação suspeita, por causa de uma frase que ele disse. Foi aquele raciocínio que deu início à história de amor. Antes disso não havia nada. Ele não existia para ela. O que ele disse, afinal, era que não trocava os seus domingos tristes por nada. Precisava deles, para se sentir coerente, menos capitalista, menos fútil, menos palerma, mais estúpido, mais humilde, mais medroso, mais racional. Deduziu ela. Na segunda, era melhor voltar a dançar.

Graffiti

Encontravam-se no bar inglês, no Cais do Sodré. Começavam por falar a cinco à hora, pausadamente. Numa tarde, ficaram ali retidos até o rabo doer. Tinham sempre conversa. Assunto puxava assunto. Eram férteis em palavras, ideias. Naquele microcosmos funcionavam bem. Frente a frente funcionavam bem. Na rua, pelo contrário, funcionavam mal. Ele andava mais acelerado que ela. Felismina tinha de dar uns pulinhos para o acompanhar. Em andamento, Artur falava mais baixo e com a banda sonora da cidade, tornava-se difícil ouvi-lo como deve ser. Era um desgaste passear com ele. Beijá-lo, então, uma trapalhada. Longe de paredes, ele não conseguia concentrar-se. Ela começou então a encostá-lo às paredes quando não lhe apetecia esperar. No início, fizeram muitos prédios e muros de graffiti.

domingo, 11 de maio de 2008

Viciada

Não podia ir ter com a Rita, Joana, Sónia e Mário. Tinha de ir à piscina. "Vou lá cinco minutos e volto outra", chegou a dizer. Estava viciada. Nem os dias de ressaca a impediam de rumar até lá. A coisa ficou de tal maneira que já não conseguia dormir profundamente se não tivesse ido dar umas braçadas. Nos outros dias, lutava contra as insónias e quase nunca ganhava. Perdia. Derrotada, inventava tragédias, o que de pior lhe podia acontecer. Enfim, foi ganhando umas pernas torneadas, uns braços firmes e um peito redondo. Agora só faltava arranjar alguém a quem mostrar a escultura. Mas havia um problema. À medida que ia ficando em forma, parecia estar mais autista. Foi Josefina quem lhe chamou a atenção para o que se estava a passar. Disse-lhe apenas:"Oh Margarida ainda ficas com um rabo de peixe".

terça-feira, 22 de abril de 2008

Um barco

Rui ofereceu-me um barco minúsculo que passei a usar como amuleto. Quando nos conhecemos, estávamos fartos da vida que tínhamos, o que me levou a pensar que a faísca teria sido motivada pela circunstância. Um dia falei-lhe que gostava de ter um barco no Tejo. Ele disse-me que tinha um na banheira que o acompanhava desde pequeno. Quando tinha 5 anos, sonhava ir com ele a África levar gelatina aos meninos que passavam fome. Aos 15, imaginava o barco a chegar ao Japão, onde iria comprar o último modelo de computador Toshiba. Aos 18, estar lá em festa com todas as miúdas que lhe agradavam nessa altura, incluindo a vizinha do terceiro esquerdo que tinha uma voz de rádio. Aos 25, sonhava ir para Nova Iorque passar uma temporada sem horários. Aos 35, conseguir remar contra a maré para deixar aquele emprego. Agora, aos 36, criava tempestades no banho de imersão para ver como a embarcação se safava. Enfim, julgo que o conquistei quando lhe disse que ele me fazia sentir em viagem. Ele não tinha essa noção, mas comigo tinha esse efeito. "Mas viagem como? Para onde?", perguntou, naquela tarde em que estavam os dois a aturar uma ressaca. Nunca antes tinha pensado nisso. Mas que me provocava aquela sensação de gozo própria da viagem, ai provocava. Bem, talvez fosse a sua imaginação. Talvez a sua imaginação gostasse da minha.

domingo, 13 de abril de 2008

Adivinha lá

Conhecer ou não conhecer, eis a questão. Mas se nem eu me conheço. Criei uma imagem mais ou menos ajustada do que sou com o que acho que transparece, mas, às vezes, parece que não sou nada disso. Sou tão igual a tanta gente. Apetece-me viver com menos palavras. Ditas, sim, claro. Preferia que nos percebessemos melhor por nos olharmos, pela captação de uma energia, uma força. Não gosto nada de pessoas pouco expressivas. Estamos todos um bocado com os médicos do século XXI que são tão irritantes. Nada sabem, até verem resultados de exames. Antes não se fazia nada disso, e eles adivinhavam. Antes é que era bom ir à consulta. Agora é um atrofio. Deixam-te à nora: pode ser tudo, de uma virose (explicação mais usual) a cancro. Alice desabafava assim com Rita, por estar desorientada. O que não estava a funcionar bem com o Francisco? Ele queria conhecê-la, estava sempre a arranjar maneira de saber mais qualquer coisa. E para ela isso era um cansaço. Tinha ali um inspector. Alice preferia um olhar de agrado, magnético, que a levasse a outra galáctica, que lhe provocasse um reacção física não comandada. Preferia que ele alinhasse numa vida solta. Rui não era assim. Rui revelou-se o monstro das certezas.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Banco da frente

Tinha-se tornado um hábito. À frente ia sempre a cadela, por causa do pêlo que tinha deixado das viagens anteriores. No banco de trás do carro, ia a esposa. Foi assim durante 12 anos. Quem os via passar estranhava, mas eles viam o quadro com normalidade. Aos poucos, Tony começou a falar mais com a cadela do que com a Alzira. Ela estava noutra. Foi-se dedicando mais às amigas e parecia divertir-se com elas. Com ele, já nem os solavancos em cima da máquina de lavar a roupa eram por aí além. O que era excitante há uns anos, deixou de o ser. A máquina foi-se tornando mais lenta e barulhenta, deixando de dar o compasso certo. Ele distraia-se pelo meio e chegava a falar das formigas numa pausa curta para respirar. Enfim, as paredes ganharam humidade e ele deixou de deslizar tão bem dentro dela. Com a cadela, a relação foi ganhando pontos. Como ela não lhe respondia nem o punha em causa, ele contava-lhe tudo, até os sonhos mais tolos e os medos mais pequeninos. Nas alturas de tomar decisões, pedia-lhe para ela ladrar. Se o fazia com pausas era por que não. Se não parava e era uniforme no latir, a resposta era afirmativa. Hoje Tony está separado de Zulmira e com menos 20 quilos. Perdeu a barriga e está outra pessoa. Quando a decisão foi tomada, a Jolie latiu durante 10 minutos sem parar. Pois é: Zulmira foi à vida e a cadela ficou. O lugar da frente continua a ser seu.

Almofada

Casa e cama são fundamentais. Lembrou-se do que a mãe lhe dizia: "Sempre na horizontal". Basicamente era isso. Sempre teve uma predilecção especial por estar deitada, mas não era propriamente para dormir. Bastava ter os pés fora do chão. O gosto foi crescendo de tal forma, que transformou o escritório numa cama gigante. Parecia um recreio de criança, mas com ar de escritório confortável. Quem o descobria, quando ia lá casa, desconfiava logo de comportamentos fetichistas. Mas não era nada disso. Era ali que descontraía e só por um vez, quase por engano, mais exactamente por lapso, é que deixou alguém encolher-se ao seu lado em cima do colchão. Entre computadores, mesas de som e uma pilha de discos vinil gastos pelo tempo, embora fossem compras recentes, arranjou espaço para mais uma almofada. Dormiram sob vigília, na expectativa de um gesto ligeiramente mais intrometido. Ele não tomou a iniciativa e ela deu graças no dia seguinte por ter sido simplesmente assim. Matias disse-lhe de manhã: "O dia vai ser mau, a noite foi tão tranquila". Choveu muito nessa manhã.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O meu bairro

Abri a janela e vi-me lá fora no meu bairro. A andar por ali e acolá, entre a costureira e a lavandaria, a correr para apanhar o comboio, e deixar o cão encostar-se ao poste para fazer o seu xixi. Que cheiro! A tropeçar na pedra solta das obras. A levar com o sinal "proibido estacionar" na testa. Ele sempre esteve ali, eu é que fui contra ele. Com passo largo para voltar para o sofá confortável. Para o quentinho, para o pijama, para o silêncio quebrado apenas pelo som da televisão da vizinha surda. Era uma rapariga com energia, imparável. Com as mãos na mala procurava a chave. Não a encontrei. Onde teria caído? A bolacha estava dura! Não a podia ter comido. Era demasiado grande. Ficaria engasgada. Ups, claro, deixei-a com o Rui. Ele quis ir tirar uns anúncios de empregos da net. Esqueci-me. Fui-me embora do bairro sem entrar em casa. Por causa dele, vou apanhar frio. Ok: vou fechar a janela.

Um bilhete

"Se o que eu quero não me dás, se o que te dou não chega, ou voltamos ao princípio, ou esquecemos o que queremos". Foi com um bilhete deixado no carro que ele resumiu o que se passava. Francisco sofria, afinal. Alice não sabia. Achava que disfarçava o seu mal estar até um dia. Vamos lá arrastar isto até ao trambolhão, disse à amiga Josefa, a quem desabafa estas coisas. Ela percebia-a melhor do que qualquer outra pessoa. Só ela, pelo menos, se concentrava realmente no que ela dizia. Parecia às vezes um exercício para decifrar incoerências. Alice era esperta, rápida de raciocínio, mas tinha um defeito que é muito vulgar: ver sempre o que se passa apenas à sua maneira. Outra versão da história parecia-lhe um disparate. Era teimosa. E vivia inquieta por fazer sempre o mesmo caminho, apesar de nada fazer para o alterar. Josefa fez-lhe ver que ela não mudava de corte por ter medo de descobrir outra pessoa até aí escondida entre cabelos longos e lisos. Que ela gostava de se fazer desentendida para se servir do conhecimento que tinha como uma arma. Que era muito orgulhosa, sim, mesmo muito. Jamais diria ao avô que não tinha aquele namorado fantástico que a estava sempre a gabar. O avô achava que não poderia ser de outra maneira. De tanto inventar à volta do namorado que ela ou o avô queriam ter, Francisco tornou-se cada vez mais uma metáfora.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O mistério da torrada

"Porque não me contaste que afinal ela tem um fundo mau?" Fechando um pouco os olhos e abanando a cabeça, Josefina disse-lhe: "Toda a gente sabe, não há quem não tope". "Mas tu tens factos, é diferente", respondeu Dulce. Josefina disse-lhe que há assuntos que só conta uma vez. Precisa de dizer, deitar para fora, mas, feito isso, não consegue repetir a história. E mais: as temáticas têm amigos determinados. Alguns só a ouvem falar de trabalho. Há um único a quem consegue falar de sexo sem ser de forma abstracta e indo além das massagens. Do que mais a perturba e inquieta dá sinais à Catarina. Para o romance que ainda só corre na sua cabeça, escolhe o João, o mais inteligente e inseguro dos amigos. Tem sempre uma história mais complexa do que a sua. Lazer, beleza e estilo de vida é com a Marta. "Senão estás bem, põe-te bem". As questões profissionais exigem uma conversa a sós com a Paula: mais assertiva e justa é difícil. "Enfim", disse então, "se quiserem contar a minha história terão de falar com uma dúzia de pessoas. É nelas que deixo o meu diário". Pegou então na parte da torrada que sobrava e atirou-a à parede. Estavam na esplanada do café Royal, onde há alguma privacidade para isso. Dulce ficou espantada: "Então, estás a passar-te!" Josefina riu-se: "Só não falem com o Artur, ele sabe que não pode contar de forma alguma a história da torrada".

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Alice no jardim

Deixou para trás à maior velocidade que podia o trabalho. Assim que fechou a porta do prédio, começou e pensar no que tinha pela frente: um jantar amoroso com alguém que ainda não sabia se o era. Amoroso, claro. É um jogo que às vezes custa jogar. Dar ou não o melhor, fingir ser mais meiga do que se é, esconder inseguranças não mexendo muito o corpo. Ultimamente, cada encontro era um teste. No fim, também ela se avaliava. A personagem que saia dali era por vezes tão estranha. Outra das coisas que descobriu recentemente é que perdia um quilo e meio por “date”. Tal era o desgaste. Enquanto subia a Rua do Carmo, pensava que não lhe apetecia nada passar por aquilo tudo. Viu os “borboto” deitar fogo pela boca em acrobacias fraquinhas e sentiu o calor como um sinal de tragédia. Iria transpirar das mãos? Descobrir que preferia sempre dormir com o Rui, apesar deste ter namorada, e de pouco futuro poder esperar dessa relação? Chegou à Praça Luís de Camões e encontrou o Hugo Castro, um ex-namorado. Falou-lhe a correr, com medo que este percebesse que estava nervosa. Logo naquele dia é que ele queria conversa. Teve de ouvir a pergunta que lhe dá urticária: “Estás bem? O que tens feito?”. Tudo conversa na treta. Foi até ao jardim de São Pedro de Alcântara e, já exausta, sentou-se. Com a cidade à sua frente, não resistiu e ficou ali. Quietinha. Quando olhou para o relógio, tinha passado uma hora e faltado ao jantar. Deu-se por vencida. Nem sabe bem com que ocupou a mente naquele período, mas que tinha ficado bem disposta, tinha. Foi apanhar o autocarro e apareceu-lhe uma viatura sem ninguém lá dentro. O motorista sorriu-lhe. Alice riu-se sem mostrar os dentes. Quando estava prestes a chegar à paragem de autocarro onde saia, virou-se para o motorista e perguntou: “Porque é que ninguém mais apanhou o autocarro?”. Ele respondeu: “O autocarro estava fora de serviço, acabava o percurso na paragem seguinte, mas como entrou tão confiante, não me atrevi a dizer nada e esperei que dissesse alguma coisa. Teria de lhe gritar aí para trás para me ouvir!”. Ela disse então que podia ficar ali e saiu.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Estou bem assim

Matilde detestava padrões sociais. Rui ofereceu-lhe flores e ela enfiou-as no caixote do lixo. Não gostava de métodos convencionais de engate. Não ia para a cama quando os outros esperavam que ela fosse. Ria-se das declarações pouco originais, roubadas dos filmes mainstream. Irritava-a a pressão para ser de certa maneira, como se houvesse fórmula única para ser bem sucedida. Pensava nas conquistas contra o uso de peles dos animais, contra a xenofobia e no pouco que significavam em comparação com a liberdade de poder fugir ao estabelecido. Nas poucas vezes que se defendeu nas discussões sobre estilos de vida, deixou todos boquiabertos: "Não será preguiça mental seguir um rumo pré-estabelecido? Ou simples medo de enfrentar o novo?". Insistia na tese de que estava melhor com dois namorados do que só com um. "Eles não reclamam porque estou sempre a esforçar-me por dar o melhor, nada é adquirido". Passava pelo menos uma semana com cada um, mas nunca mais do que um mês. Por vezes, fazia intervalos entre eles, para viajar, tirar cursos de culinária.

domingo, 27 de janeiro de 2008

I've got the power

Deixam escapar palavras e frases que na maior parte das vezes surgem desconexas. Vejo-os a mexer os lábios. Já ouvi dizer: "Não aguento mais isto". Saiu da boca de uma senhora transpirada, quando esta estava prestes a fechar o pequeno estabelecimento de restauração. Enquanto se cruzava comigo na rua, um outro sujeito de cabelo oleoso, cheio de gel, ainda por cima mal espalhado, falou baixinho: "Não está bem. Que horror!". E fiquei na dúvida se aquilo se dirigia às minhas botas velhas e com costuras soltas ou se era uma reacção aos seus pensamentos particulares. Botas? Lembrei-me logo da piada que a Pipoca - chama-se assim por ser viciada em pipocas - contou: "Deixei de usar botas por cima das calças por lhe terem dito que estava, "out", fora de moda. Ao que o namorado respondeu: "Mas claro que são 'out', compraste-as num 'outlet'". Enfim, um pequeno desvio... À medida que somava cenas e mais cenas que têm em comum o facto de incluirem pessoas a fazer desabafos, sem aparente consciência, deduzi: Será que consigo ler o pensamento dos outros? Ou simplesmente fazer com que eles soltem mensagens mecânicas? Terei um poder? Bem, se assim é, o que dirá a pessoa de quem gosto sem dar por isso? (Atenção, ele não sabe que me derreto quando está por perto). Peguei nas pernas e lá fui. Quando fiquei com ele uns minutos a sós, fixei-me na boca dele. Era assim que se activava a reacção. Passado um pouco, ele sussurou baixinho. Não percebi. Dirigi então o olhar com maior magnetismo e o Mário disse: "Apetece-me comer sardas".

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Maldito YouTube

"Na caderneta dos desconhecidos com quem tenho uma empatia estranha, está um homem barrigudo", contava Alice, enquanto caminhava à beira Tejo, para os lados de Belém, num dia fresco cheio de vento. "Barrigudo?", perguntou Carolina. Explicou-lhe que se trata do empregado da pastelaria onde vai dia sim, dia não, tomar café. Corpulento, com cabelo louro farto, que prende com um rabo de cavalo, ele tem qualquer coisa, inclusive, além da forma firme e atenciosa como a atende. Diz que tem a sensação de que ele a vê como uma mulher na casa dos 30 inteligente e apetecível. "Bahh, que estranho!", reagiu Carolina. "Não gosto nada disso!". Alice explicou melhor: "Com o João sou a distraída de quem é preciso tomar conta; com o Rui fui a menina; com o Jacinto, bem, era uma canseira acompanhá-lo com as novidades dos livros e dos discos. Maldito YouTube!...". Nata - foi mesmo assim que os pais a resolveram chamar - interrompeu-a para dizer: "Mas sabes lá como é que esse te vê! Isso é coisa da tua cabeça. Talvez não veja nada, simplesmente és mais uma cliente". Alice barafustou: "Não o posso confirmar, é verdade". Carolina arrumou com a conversa: "Mas barrigudo?". Alice explicou que a barriga não lhe interessa nada, serviu só para dizer que não era propriamente uma pessoa atraente. Isso não vinha para o caso. "O que me atrai é outra coisa". "Mas sabes o que é?", perguntaram as duas ao mesmo tempo. "Acho que descobri agora", disse, em slow motion. "Tem a pele do meu avô".

Quase

Descia a Almirante Reis para curar as mágoas, quando encontrou o mendigo de olhos de azuis lumimosos que costuma ver todos os dias quando vai para o trabalho. Ele estava fora do sítio. Rita estava fora do sítio. Por isso lhe falou. Ele contou-lhe que lhe chamava José, Zé, e que tinha tido uma vida antes de enlouquecer. Agora já estava quase bom, mas ainda não estava completamente bem. Quase? Como sabia ele que estava quase bom, perguntou a Rita olhando-o como deve ser: olho com olho. Ele respondeu-lhe que antes via o mundo como uma ameaça. Exemplo: uma simples folha de árvore podia ter o poder de o atingir e desfazer. Logo ele que nunca gostou de ficção científica. Então, e depois? O mais arrepiante foi quando começou a ouvir mais coisas do que aquelas que as pessoas diziam. Ele sabia disso, mas foi ficando cada vez com mais dificuldade em diferenciar o que tinham dito do que tinha imaginado. A Rita estava estupefacta, não com o que ele contou mas com a maneira lúcida como o fez. Mas porque estava ali? Porque não voltava a ser contabilista ou então outra coisa que conseguisse fazer com a sua formação? Zé riu-se. Estou sempre na hora de expediente na Avenida de Paris, não é? É por lá que me vê sempre. Pois, eu trabalhava ali. Agora fico à porta. Estou quase bom.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Feitiços

Estava muito frio e Sara passou-lhe uma luva. As suas mãos eram compridas e ele alargou-a logo. Por volta das duas da manhã, quando a ia devolver, disse-lhe que não lhe apetecia nada fazê-lo. Queria muito ficar com ela. Sara deu por si a emprestar-lhe a luva com uma condição. Ele tinha de a devolver no concerto de os The Go! Team, no Lux. Foi só isso. Antes de adormecer, Sara levou a sua luva à cara e cheirou-a, inspirando lentamente. Que teria ele feito à outra? E se ele é maluco e a quer para fazer feitiços? Contou: faltam 9 dias para o concerto.

Pássaros

Desilusão. O Zé tinha-a avisado. Carlota estava de rastos. O Hugo não era para ela. Ele via-a com mais uma miúda engraçada. Carlota achava que era capaz de ver como os outros a viam a ela. Com algumas pessoas acontecia de imediato com outras num quadro específico de tensão, por mínima que fosse. Baseava a paixão também na imagem que achavam que tinham dela. Não bastava acharem-na inteligente, exigia o lado atrevido. Hugo gostava tanto da sua companhia como da da Rita, da Clara e da Mariana. O mesmo. Sem mais nada de diferenciador. Achou que poderia ser de outra maneira por ele lhe contar um segredo e pela forma que o fez. Foi a conta gotas e entre várias investidas ao pescoço. Quando descobriu que ele a via com mais uma peça de convívio nocturno, ficou abatida. Viu melhor os poros negros que tinha na cara. Saltaram cá para fora. Ele levou para a cama a namorada do melhor amigo só porque estava com frio naquela noite. Carlota estava muito cansada. Foi o Zé que conseguiu proporcionar-lhe o melhor momento daquele dia nublado. Toma lá um presente.

"Os pássaros querem lá saber

Do alto vão à vida
olhando em frente
mornos lisos compenetradíssimos
corrigindo só de quando em vez com ligeiro acerto
algum encontrão do vento"

Paulo Pais, "Gravador de chamadas"

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O que querias tu sei eu

Joana tinha decidido dizer-lhe sempre o contrário do que achava que ele queria. E não é que finalmente parecia que o Rui tinha reparado nela. Arre, que às vezes é preciso usar um método radical, pensou. Aproveitou o estar com os copos - quatro vodkas mais exactamente - para lhe dizer que ele devia ressonar, que se notava que tinha problemas respiratórios. E ninguém quer ter um namorado que ressone. Noites mal dormidas desfazem um casamento. Seja por causa dos filhos ou por causa da vizinha maluca. É verdade que o Rui aterrou, por segundos, nos olhos dela. Mas não foi ternura que saiu dali. Resolveu desafiá-la. Disse-lhe que lhe tinham contado que também ela ressonava. Joana ficou estática. Pôs as mãos ao alto, como fazia quando brincava aos cowboys, e rendeu-se. Corada e com uma lágrima prontinha a cair, disse-lhe que o que ela queria dizer não era bem isso. Que estava treinada para não dizer claramente o que lhe passava pela cabeça. Ele perguntou-lhe então: O que te está a passar pela cabeça? Ela respondeu: que achava que só provocando-o ganhava a sua atenção. Ele disse-lhe que não gostava que ela fosse tão espalhafatosa. Preferia a versão tranquila, como ela estava naquele dia em que foram passear e deram por eles à beira Tejo a comer salgados. Ela lembrou-se que a Marina já lhe tinha dito que ela ficava diferente quando o via, transformava-se noutra pessoa. Até falava mais alto.

Desequilíbrios

Mudou o caminho que fazia e enfiou-se no jardim. Era denso e havia o receio de ser assaltada, mas naquele dia a hipótese não se apresentava como problema. Andou sem parar até encontrar um lago. Sentou-se então no chão a olhar para a água que pouco se movia e pensou no filme que tinha visto na noite anterior: "Imitação de vida", de Douglas Sirk. A protagonista cedeu nos momentos mais determinantes na sua vida e fê-lo para alcançar resultados a longo prazo, que colocaram em sério risco uma história de amor rara. Com empenho fora do comum, conseguiu chegar onde queria profissionalmente. E na altura certa, puxou para si aquele que desejava ter por perto o resto dos seus dias. Foi por um triz que ele não se deixou levar por outra. Mas o moreno tinha defeitos e o filme também os mostra. Chegou a ser violento com ela. Revelou-se machista em momentos cruciais. Cada vez mais loura, à medida que subia na vida, também percebeu que as qualidades dele eram diametralmente opostas à estupidez. Preocupava-se com ela incondicionalmente. Estava sempre lá quando ela precisava, embora não fosse cachorrinho. Sem sexo e poucos beijos, também por ele ser um pouco desajeitado, certamente, o filme mostrava outra relação de amor tão desequilibrada quanto fantástica. Uma amizade que nasceu na praia num dia à Carcavelos em tarde de domingo, no Verão, tornou-se um elo resistente ao triturar do tempo. Embora uma assumi-se ser a serva, havia mais do que uma relação de vassalagem entre as duas mulheres. Por vezes, durante longos períodos, eram distantes e não falavam de intimidades. Numa só conversa, curta, porém, voltavam ao ponto anterior de empatia total. Facilmente o faziam. Ia pensando nas várias histórias do filme e no que não relacionou de imediato, quando alguém manda uma pedra para o lago. Spalsh. Virou-se, a medo, para ver quem seria. Não estava lá ninguém. Levantou-se e deu por si a dizer em alta voz: gosto mais do filme hoje do que gostei ontem. Ah, a Felismina também é assim: apercebe-se que afinal gosta mais dos namorados depois.