segunda-feira, 28 de março de 2011

Kelly, a princesa

Kelly faz depilação. Nunca quis emigrar, mas os pais, por ela ser menor, não lhe deixaram outra alternativa. Em Portugal viu-se sem rede de amigos, com dias de céu nublado a que não estava habituada e estranhou tudo. Sentiu-se discriminada por falar brasileiro. Sentiu-se discriminada por ser baixa. E quanto mais bicho do mato se sentia, mais se encolhia. "Foi um ano duro. Não arranjava emprego e comecei a ficar presa em casa, sem fazer nada, só dormia, passava o tempo ao computador e via televisão. Tudo me irritava nos portugueses formais e sisudos. Ninguém se ria com vontade, parecia-me na altura. Não gostava de ninguém, ninguém gostava de mim. Tinha pensamentos negros, punha-me a imaginar acidentes para a vizinhança, distribuía tragédias às pessoas bem arranjadas que via da janela". Foram meses perdidos. Sem uma noite de galhofa com amigos. A vinda da prima, igualmente desamparada, foi a sua sorte. Convenceu-a a estudar à noite, a ir nadar para a piscina. Na escola fez novos amigos, escolheu a dedo os que tinham tão ou mais complexos do que ela. Com as idas à piscina, recuperou um certo bem-estar e confiança. Decidiu-se por uma formação em esteticista e começou a trabalhar. Hoje vê aquele ano com nojo e ao mesmo tempo com contentamento, por ter a certeza de que aquilo passou. "O mais complicado em Portugal é arranjar namorado. Os rapazes aqui têm regras muito definidas para o par que procuram e decididamente não gostam de miúdas baixas. Gabam-me os olhos azuis, e fixam os olhos no decote, sou proporcional, não sou? Depois, reparam na altura e estraga-se tudo". Fez uma pausa. "Meço 1,43cm".

terça-feira, 22 de março de 2011

Amores difíceis

Há quem tenha tendência para os amores difíceis. Não gosto disso. Gostam de se zangar, de se fazer esperar, andam sempre num ringue. Prefiro os fáceis. Tudo corre bem, até correr. Quando não anda, se tropeça, fala-se no assunto e mata-se o amor. Fala-se a mata-se. Se ele não morrer à primeira, faz-se uma viagem. Se não morrer à segunda, bloqueia-se no Facebook. Se não cair à terceira, ai, ai, vai tornar-se um amor um pouco ... difícil.

Sair ou não sair

Estávamos no sofá, quando ele me perguntou: "Queres sair?". Respondi que não me apetecia. E levantei-me. Ia só parar os ponteiros do relógio e já voltava, disse-lhe. Desapareci. No regresso, ele fez um ar desconfiado antes de me perguntar: "Conseguiste parar o ponteiro dos relógios?". "Não, não consegui". "O que foste fazer afinal?". "Fui pôr a máquina a lavar".

Aluga-se

Um dia tive um cão e ele morreu,
um dia tive um namorado e ele morreu.
Percebi que tinha uma maldição,
não posso ter nada.
Em vez de comprar casa, aluguei-a.
Em vez de um companheiro, preferi o amante.
E quando ele se separou da mulher,
não quis ficar com ele.
Não quis que ele morresse.

domingo, 20 de março de 2011

Li na horizontal

- Viste o meu email?
- Desculpa, mal tenho vistos os emails, só os tenho lido na horizontal!
- Na horizontal? Estás a passar-te?
- Ahahahah. Desculpa, estou a conduzir. Na diagonal, queria eu dizer!
- Eu percebi, eu percebi.
- Está tudo bem na horizontal?
- Ahahahaha. Desculpa, estou em contra-mão, perdida algures em Queluz.
- A sério?
- Sim, ai, ai, que não consigo sair daqui!
- Liga-me quando te encontrares, ok?
- Ahahahaha! Ok. Dá-me uns minutos.
Nunca mais ligou

Zona azul

Na piscina, entra noutra dimensão, e por isso não gosta que lhe falem. Está tudo azul, chão, azulejos, tecto e os óculos novos não lhe deixam margem vazia. Fica tudo azul. Mais parece uma versão rudimentar do filme do "Azul" de Krysztof Kieslowski. No outro dia, um dos professores esperou-a à porta. Tinha muitos dentes, dentes muito brancos. Pediu-lhe desculpa e avançou para a pergunta. Queria saber onde ela tinha aprendido a nadar. E Rita gaguejou. Apesar de estar fora da piscina, ainda estava na zona azul. Pensava. Podia ver-se no balão à banda desenhada que pairava sobre a sua cabeça. Respondeu, com a voz a meio gás: “Não tive professor e nado mal crawl”. Ele disse-lhe: “És muito elegante a nadar”. A essa Rita não devolveu resposta. Fez-lhe um adeus tímido e foi-se embora. Dias mais tarde, quando contou o episódio à Júlia, foi bombardeada com perguntas. “Mas era giro?”, “Parecia interessante?”. Depois do inquérito feito a preceito por Júlia, Rita concluiu que ele tinha bom ar, era alto, etc, etc, etc. “Então, não te atraem os africanos?”. “Pelo contrário, acho-os muito bonitos". "Então?". "Simplesmente, não gosto que se metam comigo na piscina. É a minha missa".

sexta-feira, 4 de março de 2011

manhãs

-porque é que eu gosto do quotidiano?
- porque ele é a nossa vida, com as meias quase a romper, a vontade de sair de casa para apanhar ar, a louça por lavar.
- mas é o extraordinário nele que faz sentirmo-nos elevados?
- depende de cada um. Nunca defendi essa ideia de felicidade. Isso são ânimos raros: do amor, da família, das férias. Para mim, a felicidade está numa manhã sem ruídos agudos, apenas sons graves, quase abafados.
- já foste ao otorrino?
- sim, fui. Estava um bocado surda, tinhas razão!
- hehe, vês. Daí o silêncio que dizias ouvir nas manhãs.
- pois é, não é tanto assim. Vou ter de acordar mais cedo.