segunda-feira, 26 de novembro de 2012

panelas e colheres

Para contrariar as dúvidas férteis, deu-lhe poesia. Da simples, básica. Nada de palavras difíceis para enfeitar as ideias. Baseada no elementar. Na lua, no vento e na claridade. Não resultou. Levou então as dúvidas a dar uma volta. Pegou na bicicleta e pedalou, pedalou, pedalou. Quando parou, ao pé do Tejo, percebeu. As dúvidas desfazem-se na cozinha, cozinhando.

deitar fora

Josefina tinha o vício de procurar a verdade. Era um vício velho. Até o escondia por vergonha. Vestia roupas alternativas e usava sabonetes de mel para disfarçar. Recusava o tema nas conversas de amigos. Entretanto, há uns anos descobriu novo epílogo para o processo. Quando descobria a verdade, deitava-a fora.

mais ou menos

- Está tudo mais ou menos?
- Menos hoje.
- Então?
- já que perguntaste.
- ontem foi de mais?
- hoje vai ser de menos.

fita métrica

Fomos medir a solidão. Josefina, casada, Dulce, divorciada, José, amante, Afonso, solteiro, Jorge, acompanhado. Tinha muitos centímetros. Descuidaram-se. Deixaram de falar na infância e nos medos pequeninos. Deixaram de falar sobre a solidão.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

quadrado

A adoração por triângulos começou na adolescência. Há sempre três lados na versão de uma história. Três dimensões. Há sempre três pessoas numa relação. Uma ex-namorada, uma ex-mulher, uma mãe, um pai, uma amiga, um amigo confidente, dependente ou simplesmente uma das pessoas conta a dobrar. Quatro pessoas são demais.

triângulo

São João da Talha não fica muito longe de Lisboa. Mas parece. Antes de chegar lá, tem de se passar pela desordem urbanística que rodeia a capital. Há rotundas e mais rotundas, faltam direcções em algumas saídas, um labirinto. Ao longe, porém, está sempre o Tejo, imenso. Quando parava o carro, pensava: lá está ele. Certinho. O pavilhão desportivo de São João da Talha fica escondido. Descobri-lo foi difícil. Quase desisti. Um segundo antes de decidir regressar a casa, insisti mais uma vez. Ao longe, eis que se avistou um triângulo gigante de um telhado. E foi só seguir a direcção. À porta, um grande graffiti, onde podia ler-se "não se escreve nas paredes", ilustrado por um dos miúdos de costas a escrever essa mesma frase. Lá dentro, frio. O interior do pavilhão tinha cimento à vista, não o chegaram a pintar. Era preto e branco. Nem eu nem o António tirámos o casaco e sentimos necessidade de esfregar as mangas do casaco com as mãos por várias vezes. Cruzadas, a direita na esquerda, a esquerda na direita. Ora começava ele ora eu. Na segunda parte do jogo, alguém gritou da plateia: Vai à bola Pedro Crivo. Em tempos, foi nome a dar a um filho. Achei que estava a ouvir mal. A equipa de hóquei patins vinha de Coimbra e podia ser ele. Tinha acabado de cumprimentar um dos melhores amigos do Rui, o meu ex-namorado. Na segunda vez, tive a certeza e fixei o miúdo. Era o filho do meu ex-namorado. Contei pelos dedos. Tinha seis anos. Alto, o miúdo. Mais alto do que os colegas, alto como o pai. Se era parecido com ele? Ainda bem que perguntam. É parecido comigo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

ataques de ternura

Há quem tenha ataques de pânico. Josefina tem ataques de ternura. Costumam acontecer quando está céu limpo ou muda os lençóis da cama. Pensando bem, sucedem noutras alturas, são frequentes após a sesta. As condições em que sucedem merecem ser estudadas. Defeito? Falha genética? Que chás se aconselham?

volume

Dulce tem novos vícios: ouvir música baixinho e dividir qualquer problema em dois. Descobriu uma maior capacidade de resolução havendo duas partes isoladas. Resultado: nascem duas respostas e vira-se para uma. Fácil. À outra parte tira-lhe o som.

agente principal

Ia chegando gente e mais gente à Praça Luís de Camões. Sentei-me nas escadas à espera. Treino há anos o exercício de espera. Antes andava sempre com um livro atrás e aproveitava e relia. Reservava as passagens novas para os ambientes caseiros. Hoje em dia, deixo-me ficar a olhar. Assim estava quando um sujeito se aproximou de mim. Perguntou-me se me chamava Dulce, se não o reconhecia. A voz rouca, sumida, era-me familiar, apenas a voz. Depois, rapidamente recuperei a memória. O João foi meu colega do ciclo. Da primária, pelo menos, não me lembro. Disse-me que eu estava igual. Disse-lhe que ele estava diferente, talvez por causa da careca, que desfigura a dimensão do rosto. Na minha memória ele foi o meu protector. Graças ao João, passava de cabeça erguida diante dos miúdos que gostavam de apalpar meninas durante a aula de educação física. Tudo aquilo se passava com a conivência do professor, que ninguém denunciava. Não se falando do assunto era como se ele não existisse. Comigo, aconteceu duas vezes. E parou. Descobri que tendo o João por perto, estava fora do alcance deles. Olhavam, mas não tinham coragem para me tocar. O João só se lembra dos disparates que dizíamos no regresso da escola para a casa. Ontem, fiquei a saber que é agente principal da PSP no comando responsável pela remoção dos cadáveres, em Lisboa, e é pai de duas filhas. Acabei por lhe dizer: "Também estás igual".

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

a meio da manhã

antes que a noite caia e me arrependa por não o ter feito, terminei a carta. Amanhã o pombo correio fará o resto. Vai fazê-la chegar até ti. Como gostava de ser pombo para ver a tua cara quando estiveres a ler a parte do meio. O princípio é directo e não diz nada de extraordinário. Mas no meio, solto-me, transformo-me num pássaro que descobre a janela e parte. Não vou conseguir saber se achas isto ou aquilo. Se sentes ou compreendes. Coisas radicalmente distintas nestas coisas dos amores. Não vou saber o que vai acontecer aquelas palavras. Quem me dera que as comas.

não quis ver

Tinha o casaco preso na escada rolante.
Baixou-se, joelhos no chão, cabeça enfiada
no degrau. Puxões e puxões, sem resultado.
uma e outra vez.
Não olhou para cima,
não queria ver quem o estaria a observar
a fazer aquela figura.
era eu quem o olhava,
Ele não me viu.
não existi.

quem tem medo de se perder

quem tem medo de se perder
não sabe que atrás daquela rua
está um bar pequenino,
discreto,
onde se comem broas caseiras
e se fala do dia em que tudo começou.