terça-feira, 26 de junho de 2007

Campo e cidade

Descobri pessoas depressivas no campo. Nunca tal me tinha passado pela cabeça. Sempre associei a tristeza e a rude destruição da vontade à cidade, a uma vida sem paragens para o sono, marcada pelos excessos da noite, do namorado ou namorada, do trabalho. Cada vez mais por causa do trabalho - 12 horas por dia com cabeça metida na secretária não faz bem a ninguém-, ou então, por falta dele - desemprego que nem sequer permite um subsídio que pague os cafés. No campo, a perdição é outra. Não se passam acontecimentos vistosos para além das saídas de estranhos da casa da vizinha. Nasceu um gato novo, mas, de resto, sucede-se a ordem regular da natureza. Os que chegam da cidade deliciam-se com a música dos pássaros, dos galos, das árvores em dia de vento, mas Clara sonha com um concerto de rock. Lembrei-me do que a Helena me disse: "Sabes que li que os proprietários de casas de turismo rural são todos, todos, citadinos. Curioso, não é?". Dei por mim a pensar que a prevenção talvez esteja em alternar campo e cidade. Decidi telefonar à Clara e oferecer-lhe o meu bilhete para o Superbock SuperRock. Eu vou para o campo pedalar.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Beleza portuguesa

Quando o Rui lhe tocou ao de leve no braço, lembrou-se da cena do filme “Virgens Suicidas” de Sofia Copolla. Quem nunca teve uma assim, que alimenta duas semanas de paixão inebriada, perdeu uma das dádivas desta vida. Quando o Rui lhe passou os dedos pelo pescoço escondido pelo cabelo, Josefa não sabia se queria deitar-se com ele. Tinha 30 anos, um namorado obsessivo para apagar da cabeça. Um ex-namorado, desculpem o engano. Não tinha ainda o espaço disponível para receber informação de natureza tão matizada. Às vezes acordava a pensar que ainda tinha de dizer ao Rui qualquer coisa sem importância, mas que fazia sentido dizer-lhe. Agora não contava as estórias de sempre a ninguém. Engoli-as. Por vezes, dava por si a falar sozinha. Tinha de corrigir esse hábito. Se o Rui tivesse avançado de outra forma, sem esse modelo tão estabelecido de sedução, talvez o contacto tivesse outro resultado. Mas engate, ou lá o que é, estereotipado, criava-lhe repulsa. E isso acontece-lhe nos casos mais comuns do dia-a-dia. Na piscina, odeia que a olhem quando sai pela escada. Mesmo enquanto faz uma pausa entre “piscinas” fica incomodada quando uns olhos de lobo que a querem comer a observam enquanto trincam o lábio. Por isso põe o seu andar mais desajeitado. No outro dia, deu por si a pensar, enquanto deixava a piscina para trás e procurava a chave do carro, que devia ser difícil levar a vida sendo muito bonita. Implicaria estar sempre a ser perseguida, desejada pelos homens, cobiçada pelas mulheres, desejada pelas raparigas e pelos rapazes. Daria em doida. Faria uma plástica para ficar menos atraente.

sábado, 9 de junho de 2007

Ricardo, o que lhe fizeste tu?

Várias amigas da Maria já tinham sonhado com Ricardo Araújo Pereira. Sim, esse, minhas amigas. Maria sempre se riu e riu até não mais poder com essas histórias. Mas aconteceu-lhe a ela viver um episódio com Ricardo Araújo Pereira que parecia sonho. Parecia. Foi assim: Era jornalista, tinha de o entrevistar, e lá foi. Um pouco nervosa porque sabendo tratar-se de um humorista que podia sair dali uma conversa arrebatadora ou completamente non sense, de que o seu editor não acharia graça nenhuma. Ele atrasou-se mas foi logo educado, simpático e muito normal. Podia ser o encontro com o senhor do café que ganhou a lotaria com os números que lhe disse a filha de três anos. Ricardo era um rapaz normal. Nem uma graça, um trocadilho lhe deixou para contar aos colegas. Nada disso. Deu-lhe foi uma seca com a conversa sobre a dor de dentes do siso. Como já tinha sofrido do mesmo, Maria contou-lhe alguns truques. Metade da hora e meia que passaram juntos, falou-se de quê? Exactamente: dentes. Ele tem-nos bonitos mas reles, frágeis, sensíveis aos gelados. Maria tem-nos amarelados mas resistintes o suficiente para elevar uma cadeira. Palavra puxa palavra e Maria deu por si a contar-lhe os sonhos que as amigas tiveram com ele. Então, é que foi! Que lhe fizeste tu, Ricardo, para ela contar o que não devia? Estamos todas chateadas com a Maria.

Pouca terra, pouca terra

Sempre desejei conhecer alguém muito interessante num comboio. Tão interessante, de ter vontade de levar na mala para casa. Um dia sonhei que me casava num comboio. Numa das carruagens comia-se, noutra dançava-se, noutra esticava-se as pernas em confortáveis sofás que se moldavam às exigências da nossa coluna. O copo de água demorava o tempo da viagem. Ele estava vestido de revisor e dizia-me sempre a mesma coisa: "O seu bilhete, se faz favor". Acordei com barulho do "pouca terra, pouca terra". E com a sensação de estar o cansaço a substituir a boa disposição da festa. Queria que a folia acabasse, mas o comboio não parava. Foi essa inquietação que me despertou. O comboio nunca mais reduzia a marcha. Pelo contrário, ia acelerando, acelerando.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Taxi driver

Ritinha gostava de andar de taxi. Só na quinta-feira passada percebeu porquê. É um risco, uma viagem na montanha russa. Tanto pode sair dali um senhor simpático que conte uma história de vida bem melhor do que o argumento do filme em exibição no cinema da esquina ou então um potencial serial killer pior do que o de Santa Comba Dão, que enche os noticiários. Ritinha apanhou daquela vez umas costas largas que suportavam um cabelo louro oxigenado. Quando o taxi parou, ouviu então a sua voz: "Eu não travava. É apenas um drogado que deve ter caído para cima do carro". Ritinha não cheirava o hálito dele, mas temia-o só de imaginar. Fez uma careta quando pensou nisso. Ainda lhe disse que se deveria chamar a ambulância. Mas o taxista arruinou-lhe o argumento. "Qual quê, nem como os cães páro. Para quê? Para ter de pagar aos donos!". Viu-se um jovem colado ao passeio. Ritinha ficou com medo. A marcha prosseguiu. Quando saiu do carro não resistiu ir ver como era a cara do senhor. Olhou e viu um cão de dentes afiados com pose de taxista. Que gania.