quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

para a sobrinha

"Não queiras ser a melhor da turma, tenta ser a segunda ou terceira melhor. Se fores a primeira, vais ser o centro das atenções e haverá sempre quem te fará a vida complicada". Joana dava sinais de que estava a perceber a lição. A tia, por sua vez, nunca tinha pensado bem naquilo que estava a dizer-lhe. Percebeu naquele instante que estava a solidificar um pensamento antigo diante de uma criança de seis anos. Gostou do exercício e continuou. "Joana, sempre que te sentires estranhamente desconfortável com alguém, afasta-te dessa pessoa. Nada de bom virá daí!". Aí, a sobrinha reagiu com perguntas: "Não devo brincar com quem me empurra?". A tia riu-se. "Isso não tem mal nenhum. Empurra também".

para a Amélia

Estava a passar na sua rua, no passeio de sempre, quando encontrou o Mau-da-fita. Levou para casa, deu-lhe banho e comida e deixou-se seduzir pelo seu olhar abandonado. À noite, o Mau-da-fita aninhou-se ao pé do aquecedor, como se fizesse parte da mobília. E nos dias seguintes, viveu em função dele. Os mimos foram tantos, tantos, que o Mau-da-fita engordou e tornou-se pachorrento. Seis meses depois, Amélia contava à Marta a sucessão de erros cometidos. "Estraguei-o com atenção, festas, e Whiskas de primeira. Agora não me larga, vive colado às minhas pernas, em qualquer passo que dou em casa, tenho a sua sombra. Não consigo fazer nada completamente sozinha e estou a passar-me". Marta mostrou-se surpreendida. Também ela tinha um gato, no caso, uma gata, e o dilema da amiga parecia-lhe exagerado. Fez uma pausa e disse-lhe então: "Deixa de fingir. Mostra-lhe o que não te agrada".

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

para a Clara

Clara estava pessimista naquele dia de chuva. Barafustava, barafustava. "O Rui é a gaja desta relação", dizia. As amigas caíram-lhe em cima. "Já reparaste no que disseste?", perguntava a Adélia. "Sei muito bem o que digo. Quem dramatiza e complica tudo é ele. Não podemos estar dois dias sossegados. Falha sempre um detalhe!". Então, gracejava a Maria: "Se ele é a gaja dessa relação, quem és tu?". Riam com o corpo todo. "Eu sou o gajo!"

para o Pedro

O fraquinho da Rita pelo Pedro vinha já da faculdade. Entretanto, tiveram os dois uma relação longa, e uma outra mais curta, e nunca mais a Rita se lembrou do fraquinho ou lá o que seja, que as palavras são sempre insuficientes em matéria de descrição de sentimentos. Isto até um dia. Um dia, um rabisco mudou-lhes a vida. Estavam no msn e escrevia-lhe ela que precisava mesmo de um café para abrir o olho. Uns segundos depois, surgiu o desenho de um café. Ela pestanejou. A seguir, ele desenhou um mon chérie, igual aos chocolates a sério. Só para acompanhar, escreveu. Depois, ela disse-lhe que o seu terceiro desejo era viajar para um país quentinho e um bilhete de avião iluminou rapidamente o ecrã, com o destino traçado e tudo. O encanto começou ali. Aquele foi o seu melhor café do Outono. No Inverno, dormiram juntos.

para a Alice

Alice gostava de estar com o José, apesar da conversa ser fraca. Embora também não pudesse queixar-se de silêncios embaraçosos. Era uma relação de fazeres e de poucas falas. Ele convidou-a para jantar em casa dele e ela convidou-o para jantar em casa dela. Os cozinhados saíram bem. Na última vez, ele tocou piano. Improvisou. E ela retribuiu mostrando-lhe através do Youtube umas músicas nascidas em Brooklyn. Entretanto, voltaram ao garfo, à sobremesa e, embalados, começaram a curtir. Mas eis se não quando Alice pede para pararem. Olha para a porta e diz que tem de ir embora. José encolheu-se. Os braços enfiaram-se para dentro do tronco. Perguntou se se passava alguma coisa, o que é que ele tinha feito que a aborrecesse. Alice respondeu: "Estou sóbria, da outra vez não estava".

domingo, 2 de janeiro de 2011

Ganchos

Josefina abusava dos ganchos no cabelo, mas quase ninguém reparava nisso. Naquela noite, Nuno surpreendeu-a com uma observação a respeito deles: "Tanto gancho no cabelo. O que queres tu segurar?". Nessa noite, Josefina não voltou sozinha para casa. O Nuno acompanhou-a. A viagem de taxi foi substituída por um longo passeio a pé. Por fim, chegaram ao destino. Maria disse-lhe: "Esta é a fábrica de ganchos de que te falei".

Plantar uma árvore

Estava quase a chegar a casa, já na sua rua, quando reparou na escultura de uma árvore, estacionada em frente à porta do prédio número sete. Raios, pensou. Parou. Mexeu-lhe nos ramos e descobriu que parte deles estavam partidos. Só os de cima estavam bem de saúde. Estavam presos por uma rosca ao tronco e mexiam-se à nossa vontade. Olhou então para o relógio e fixou cinco minutos. Estaria abandonada, prontinha para ir para o lixo? Ou alguém a teria deixado no passeio enquanto tinha ido simplesmente buscar o carro? Findo os cinco minutos, deu por si a agarrar nela desajeitadamente. Colocou-a debaixo do ombro e trouxe-a para casa. Foi uma odisseia. Além de pesada, era alta e foi difícil fazê-la entrar pela porta. Teve de a inclinar duas vezes. Levá-la para o escritório também foi custoso. Ganhou uma nódoa negra no braço. Deu um trabalhão. Mas passado 25 minutos, a árvore estava plantada.

Desculpa

Convidei-o para um café. Cheguei mais cedo cinco minutos, escolhi a mesa mais ao canto, sentei-me e comecei a recuperar o que tinha planeado dizer-lhe desde a semana passada. Tinha de lhe dizer que a minha cabeça me tinha atraiçoado. Ficou à solta sem eu querer. Virou-se sem eu fazer por isso, começou a sentir falta de uma camisola de lã quentinha a quem se tinha abraçado no outro dia. Mas isso não lhe podia contar. Essa parte tinha de ficar de fora. Ele chegou em passo lento. E quando me olhou com brilho nos olhos, percebi que ia ser muito difícil dizer-lhe o que tinha de lhe dizer. Andava há dias perturbada, com um amargo boca, como se me quisessem enfiar um pedaço de carne pela goela abaixo, à força, estando eu na minha fase vegetariana. Depois de umas piadas, comecei a parte séria da conversa: "Não sei como te diga isto, nem sei como te explicar, não controlo a minha cabeça. Se a controlasse, ficava contigo. Mas não a controlo e ela foge-me noutras direcções. Não tens culpa. Desculpa". Ele pediu-me para não lhe pedir desculpa. "Isso nunca". Desde aí, nunca mais pedi desculpa a ninguém.

Eu não estou aqui

"Somos o que procuramos", dizia o Manel. Tinha lido aquilo algures e meteu a frase no meio da conversa de café no Vertigo, Chiado, Lisboa, Inverno. Marta estava em desacordo. "Não somos nada o que procuramos, isso é o que queríamos ser". Manel voltava à carga. "Eu sou. Tu podes não ser. Eu sou o que procuro".