terça-feira, 25 de novembro de 2008

Vizinhas

Vinha do hospital de braço dado com o sobrinho. Quase que a Sara tropeçava neles no segundo degrau. Aconteceu quando Sara se viu obrigada a ir a casa à hora de almoço por causa de uma inundação. Lia, a vizinha, regressava à casa de Alvalade para uma estadia curta. Contou que o médico lhe disse que seria no máximo uma semana. Durante esse tempo, teria de aparecer um dador de coração compatível. Mas Lia não parecia dramatizar o que se estava a passar com ela. Falava dos factos com entusiasmo. No encontro com a vizinha de lado, que se deu logo a seguir - as escadas tinham-se tornado a praça pública - dizia que o que mais a chateou no tempo passado na enfermaria não foi a comida, não foi a falta de humor de certos médicos, mas os outros doentes. "Aquelas provincianas que passam o dia a lamentar-se, que estão sempre a queixar-se das dores deram-me cabo dos nervos". Mariazinha, do segundo esquerdo, concordava, acenando com a cabeça para a frente, enquanto, ao mesmo tempo, lançava um sorriso fechado. Bem, o pormenor romântico da história foi o olhar iluminado do sobrinho. Comportou-se como se estivesse a assistir a uma cena de filme. Não disse nada. Manteve-se como observador não participante mesmo quando foi apresentado como sociólogo que se dedica à investigação. Num quadro normal, Sara teria subido às paredes com a ideia dos provincianos, que são quase sempre, os que gostam de chamar aos outros isso mesmo. Neste caso, não. Pensou que a tolerância teria de ser isso. Fez como o sociólogo giro. Ficou muda. Depois, assim que ele bateu a porta, foi à janela para o ver desaparecer na rua. A esquina comeu-o.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sinto-me com sorte

Reparou que o google dizia "sinto-me com sorte" e pensou que estava a alucinar. Deve ser do xarope forte, composto com ervas de nome esquisito que estava a tomar. Esquisito. Lembrou-se de uma zanga antiga, com um ex-namorado, quando este lhe chamou a atenção que andava a reagir às questões mais difíceis sempre da mesma maneira, dizendo apenas: "Que esquisito". Clicou no sinto-me com sorte para ver o que acontecia e foi encontrar nessa página uma associação chamada UPS. Voltou a fazer enter até descobrir que se tratava de Unidos Pelo Sofá. Faziam parte da associação alguns nomes familiares como José Diogo Quintela, Jacinto Lucas Pires. Hum. Foi procurar o último livro dele e leu a frase que tinha sublinhado: "Subo ao telhado. Se eu amasse alguém, seria assim, por cima da cidade". Voltou à página e procurou contactos. E, sim, tinham sede própria. Ficava na Estefânia. Ligou a uma amiga que morava ali perto para lhe perguntar se a conhecia. Camélia não atendeu. Voltou a insistir e ouviu do outro lado uma voz rouca e encolhida. "Sim, sei o que é, não é nada de especial". Combinaram ir tomar um chá ao UPS. "Daqui a uma hora". Vestiu o seu casaco novo. Olhou-se de lado ao espelho, como faz quando se prepara para algo importante. E lá foi. O portão era grande. Assim que o empurrou, percebeu logo que ia gostar daquele sítio. Parecia um espaço encantado. Sentaram-se com movimentos lentos nos sofás de material gasto e adornado. Virou-se para a Camélia e perguntou: "Porque nunca me falaste disto?". Camélia resmungou: "Sei lá! Isto não tem nada de especial". Foi para casa cabisbaixa. Camélia só tinha queixas para lhe contar. Foram tantas que se cansou com a tareia. Grande chata. Os braços descaíram, o pescoço inclinou-se. Chegou a casa exausta. Ligou o computador e lá estava: sinto-me com sorte. "Estes gajos do google lembram-se de cada uma", pensou.

Vou comprar um cão

Assim que pus um pé no taxi, deixei sair as frase: "Que cão tão branco!". O bicho estava rodeado de três velhotes ao pé do rotunda do Marquês do Pombal. Foi o suficiente para que o taxista começasse a falar do seu rafeiro. "É mais esperto do que muita gente", disse. Perguntou-me se já tive um cão. Respondi-lhe que sim, mas que este morreu. Não fez a pausa que costuma fazer-se depois de alguém dizer que alguém lhe morreu. Apressou-se a contar que o seu rafeiro não faz porcarias em casa e que até sofre com isso, por se conter, até ele chegar. Falava tão animadamente que acabei por trazer à memória os melhores momentos que passei com o meu cão. Ainda disse ao taxista que há quem diga que os cães são tão espertos como as crianças de três anos, um misto de sensibilidade com ingenuidade pura. Abanou a cabeça, dando sinal afirmativo. Os cães sabem ser amigos, prosseguiu. A sua sabedoria ou o que seja que provém da sua genética tem esse dom. Perguntei: "Tem amigos que não sabem ser amigos?". O senhor Zé, como veio a apresentar-se, atirou a resposta certa: "Tenho. São cães de louça".

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Pessoas

Quando estou mais em baixo, contava o Zé, volto a ler Fernando Pessoa. Ele é o guru dos solitários que têm gozo em sê-lo. Josefa via com distância essa realidade. Neste momento, tinha dois filhos, um marido ocupado que a fazia sentir mãe solteira e estava cada vez mais afastada dos amigos de sempre, que continuavam a sair à noite, a frequentar festas. Umas amigas de outros tempos tinham criado um colectivo de djs a que chamaram "Donas de casa aos pratos". Na primeira vez que ouviu o nome, até pensou que estavam a gozar com ela. Pois sempre coleccionou pratos, dos mais retro, aos modelos com mais design. Enfim, disse ao Zé que não sabia o que ler agora que tinha pouco tempo. Nada a animava. E o pior é que a maior parte das narrativas lhe pareciam demasiado fantasiosas. Chegou a dizer que até deu por si a pensar no outro dia se a valorização dos escritores e das suas obras não era uma atitude do século passado. "Porque são eles os heróis do intelecto?", questionou. O Zé acalmou-a. Elogiou as crianças, vivas e espertas, o trabalho onde ainda brilhava. O Zé disse-lhe que ela tinha tanta coisa boa a que se agarrar e fez-lhe ver que ele tinha muito menos motivos para acordar bem disposto. Ela deu-lhe razão. Ele foi lá dentro, fez um embrulho rápido com papel de jornal e deu-lhe um presente: "O rosto e as máscaras", poesia e prosa de Fernando Pessoa. Ela emprestou-lhe a Rita, de quatro anos, para ele passear um dia inteiro.

São Martinho

Sofia estava a chegar aos 35 e sentia-se como sempre lhe disseram que era suposto sentir-se aos 30. A parte de se achar menos incomodada com o estar sozinha a comer castanhas e beber jeropiga em noite de São Martinho era agradável. Ligou-se à net, partilhou o magusto online com o Pedro e bebeu mais do que ele. Como se provou. Contou-lhe pelo gtalk que tinha pena que ele se tivesse virado para a Olga naquela altura. Ela já tinha comprado roupa interior nova. Daquela vez optou pelas bolinhas. Milhares de bolinhas, pintinhas. Atirou-lhe que ele tinha sido burro. Mudando de tom, o Pedro não gostou nada de ouvir aquilo e, entre castanhas, foi contando que a Olga não foi nada de especial, que ele estava numa fase de não querer nada de especial, que ela se sentou ao colo dele e que ele se sentiu quentinho. Do alto dos seus 3o anos, Sofia disse-lhe: "Aconteceu, não aconteceu? Isso é que interessa. É a vida". "Não", corrigiu ele, "é a vidinha". Sofia desligou o gmail triste. De repente, ficou cansada. Pedro ficou online a escrever-lhe para o mail. Entre outras coisas, disse-lhe que o que eles tinham lhe parecia não se encaixar nem na amizade nem no amor. Talvez não haja o nome certo, concluiu. Depois de 2500 caracteres, terminou: "Por isso, não podemos namorar, nem ser amigos".