segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Estou bem assim

Matilde detestava padrões sociais. Rui ofereceu-lhe flores e ela enfiou-as no caixote do lixo. Não gostava de métodos convencionais de engate. Não ia para a cama quando os outros esperavam que ela fosse. Ria-se das declarações pouco originais, roubadas dos filmes mainstream. Irritava-a a pressão para ser de certa maneira, como se houvesse fórmula única para ser bem sucedida. Pensava nas conquistas contra o uso de peles dos animais, contra a xenofobia e no pouco que significavam em comparação com a liberdade de poder fugir ao estabelecido. Nas poucas vezes que se defendeu nas discussões sobre estilos de vida, deixou todos boquiabertos: "Não será preguiça mental seguir um rumo pré-estabelecido? Ou simples medo de enfrentar o novo?". Insistia na tese de que estava melhor com dois namorados do que só com um. "Eles não reclamam porque estou sempre a esforçar-me por dar o melhor, nada é adquirido". Passava pelo menos uma semana com cada um, mas nunca mais do que um mês. Por vezes, fazia intervalos entre eles, para viajar, tirar cursos de culinária.

domingo, 27 de janeiro de 2008

I've got the power

Deixam escapar palavras e frases que na maior parte das vezes surgem desconexas. Vejo-os a mexer os lábios. Já ouvi dizer: "Não aguento mais isto". Saiu da boca de uma senhora transpirada, quando esta estava prestes a fechar o pequeno estabelecimento de restauração. Enquanto se cruzava comigo na rua, um outro sujeito de cabelo oleoso, cheio de gel, ainda por cima mal espalhado, falou baixinho: "Não está bem. Que horror!". E fiquei na dúvida se aquilo se dirigia às minhas botas velhas e com costuras soltas ou se era uma reacção aos seus pensamentos particulares. Botas? Lembrei-me logo da piada que a Pipoca - chama-se assim por ser viciada em pipocas - contou: "Deixei de usar botas por cima das calças por lhe terem dito que estava, "out", fora de moda. Ao que o namorado respondeu: "Mas claro que são 'out', compraste-as num 'outlet'". Enfim, um pequeno desvio... À medida que somava cenas e mais cenas que têm em comum o facto de incluirem pessoas a fazer desabafos, sem aparente consciência, deduzi: Será que consigo ler o pensamento dos outros? Ou simplesmente fazer com que eles soltem mensagens mecânicas? Terei um poder? Bem, se assim é, o que dirá a pessoa de quem gosto sem dar por isso? (Atenção, ele não sabe que me derreto quando está por perto). Peguei nas pernas e lá fui. Quando fiquei com ele uns minutos a sós, fixei-me na boca dele. Era assim que se activava a reacção. Passado um pouco, ele sussurou baixinho. Não percebi. Dirigi então o olhar com maior magnetismo e o Mário disse: "Apetece-me comer sardas".

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Maldito YouTube

"Na caderneta dos desconhecidos com quem tenho uma empatia estranha, está um homem barrigudo", contava Alice, enquanto caminhava à beira Tejo, para os lados de Belém, num dia fresco cheio de vento. "Barrigudo?", perguntou Carolina. Explicou-lhe que se trata do empregado da pastelaria onde vai dia sim, dia não, tomar café. Corpulento, com cabelo louro farto, que prende com um rabo de cavalo, ele tem qualquer coisa, inclusive, além da forma firme e atenciosa como a atende. Diz que tem a sensação de que ele a vê como uma mulher na casa dos 30 inteligente e apetecível. "Bahh, que estranho!", reagiu Carolina. "Não gosto nada disso!". Alice explicou melhor: "Com o João sou a distraída de quem é preciso tomar conta; com o Rui fui a menina; com o Jacinto, bem, era uma canseira acompanhá-lo com as novidades dos livros e dos discos. Maldito YouTube!...". Nata - foi mesmo assim que os pais a resolveram chamar - interrompeu-a para dizer: "Mas sabes lá como é que esse te vê! Isso é coisa da tua cabeça. Talvez não veja nada, simplesmente és mais uma cliente". Alice barafustou: "Não o posso confirmar, é verdade". Carolina arrumou com a conversa: "Mas barrigudo?". Alice explicou que a barriga não lhe interessa nada, serviu só para dizer que não era propriamente uma pessoa atraente. Isso não vinha para o caso. "O que me atrai é outra coisa". "Mas sabes o que é?", perguntaram as duas ao mesmo tempo. "Acho que descobri agora", disse, em slow motion. "Tem a pele do meu avô".

Quase

Descia a Almirante Reis para curar as mágoas, quando encontrou o mendigo de olhos de azuis lumimosos que costuma ver todos os dias quando vai para o trabalho. Ele estava fora do sítio. Rita estava fora do sítio. Por isso lhe falou. Ele contou-lhe que lhe chamava José, Zé, e que tinha tido uma vida antes de enlouquecer. Agora já estava quase bom, mas ainda não estava completamente bem. Quase? Como sabia ele que estava quase bom, perguntou a Rita olhando-o como deve ser: olho com olho. Ele respondeu-lhe que antes via o mundo como uma ameaça. Exemplo: uma simples folha de árvore podia ter o poder de o atingir e desfazer. Logo ele que nunca gostou de ficção científica. Então, e depois? O mais arrepiante foi quando começou a ouvir mais coisas do que aquelas que as pessoas diziam. Ele sabia disso, mas foi ficando cada vez com mais dificuldade em diferenciar o que tinham dito do que tinha imaginado. A Rita estava estupefacta, não com o que ele contou mas com a maneira lúcida como o fez. Mas porque estava ali? Porque não voltava a ser contabilista ou então outra coisa que conseguisse fazer com a sua formação? Zé riu-se. Estou sempre na hora de expediente na Avenida de Paris, não é? É por lá que me vê sempre. Pois, eu trabalhava ali. Agora fico à porta. Estou quase bom.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Feitiços

Estava muito frio e Sara passou-lhe uma luva. As suas mãos eram compridas e ele alargou-a logo. Por volta das duas da manhã, quando a ia devolver, disse-lhe que não lhe apetecia nada fazê-lo. Queria muito ficar com ela. Sara deu por si a emprestar-lhe a luva com uma condição. Ele tinha de a devolver no concerto de os The Go! Team, no Lux. Foi só isso. Antes de adormecer, Sara levou a sua luva à cara e cheirou-a, inspirando lentamente. Que teria ele feito à outra? E se ele é maluco e a quer para fazer feitiços? Contou: faltam 9 dias para o concerto.

Pássaros

Desilusão. O Zé tinha-a avisado. Carlota estava de rastos. O Hugo não era para ela. Ele via-a com mais uma miúda engraçada. Carlota achava que era capaz de ver como os outros a viam a ela. Com algumas pessoas acontecia de imediato com outras num quadro específico de tensão, por mínima que fosse. Baseava a paixão também na imagem que achavam que tinham dela. Não bastava acharem-na inteligente, exigia o lado atrevido. Hugo gostava tanto da sua companhia como da da Rita, da Clara e da Mariana. O mesmo. Sem mais nada de diferenciador. Achou que poderia ser de outra maneira por ele lhe contar um segredo e pela forma que o fez. Foi a conta gotas e entre várias investidas ao pescoço. Quando descobriu que ele a via com mais uma peça de convívio nocturno, ficou abatida. Viu melhor os poros negros que tinha na cara. Saltaram cá para fora. Ele levou para a cama a namorada do melhor amigo só porque estava com frio naquela noite. Carlota estava muito cansada. Foi o Zé que conseguiu proporcionar-lhe o melhor momento daquele dia nublado. Toma lá um presente.

"Os pássaros querem lá saber

Do alto vão à vida
olhando em frente
mornos lisos compenetradíssimos
corrigindo só de quando em vez com ligeiro acerto
algum encontrão do vento"

Paulo Pais, "Gravador de chamadas"

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O que querias tu sei eu

Joana tinha decidido dizer-lhe sempre o contrário do que achava que ele queria. E não é que finalmente parecia que o Rui tinha reparado nela. Arre, que às vezes é preciso usar um método radical, pensou. Aproveitou o estar com os copos - quatro vodkas mais exactamente - para lhe dizer que ele devia ressonar, que se notava que tinha problemas respiratórios. E ninguém quer ter um namorado que ressone. Noites mal dormidas desfazem um casamento. Seja por causa dos filhos ou por causa da vizinha maluca. É verdade que o Rui aterrou, por segundos, nos olhos dela. Mas não foi ternura que saiu dali. Resolveu desafiá-la. Disse-lhe que lhe tinham contado que também ela ressonava. Joana ficou estática. Pôs as mãos ao alto, como fazia quando brincava aos cowboys, e rendeu-se. Corada e com uma lágrima prontinha a cair, disse-lhe que o que ela queria dizer não era bem isso. Que estava treinada para não dizer claramente o que lhe passava pela cabeça. Ele perguntou-lhe então: O que te está a passar pela cabeça? Ela respondeu: que achava que só provocando-o ganhava a sua atenção. Ele disse-lhe que não gostava que ela fosse tão espalhafatosa. Preferia a versão tranquila, como ela estava naquele dia em que foram passear e deram por eles à beira Tejo a comer salgados. Ela lembrou-se que a Marina já lhe tinha dito que ela ficava diferente quando o via, transformava-se noutra pessoa. Até falava mais alto.

Desequilíbrios

Mudou o caminho que fazia e enfiou-se no jardim. Era denso e havia o receio de ser assaltada, mas naquele dia a hipótese não se apresentava como problema. Andou sem parar até encontrar um lago. Sentou-se então no chão a olhar para a água que pouco se movia e pensou no filme que tinha visto na noite anterior: "Imitação de vida", de Douglas Sirk. A protagonista cedeu nos momentos mais determinantes na sua vida e fê-lo para alcançar resultados a longo prazo, que colocaram em sério risco uma história de amor rara. Com empenho fora do comum, conseguiu chegar onde queria profissionalmente. E na altura certa, puxou para si aquele que desejava ter por perto o resto dos seus dias. Foi por um triz que ele não se deixou levar por outra. Mas o moreno tinha defeitos e o filme também os mostra. Chegou a ser violento com ela. Revelou-se machista em momentos cruciais. Cada vez mais loura, à medida que subia na vida, também percebeu que as qualidades dele eram diametralmente opostas à estupidez. Preocupava-se com ela incondicionalmente. Estava sempre lá quando ela precisava, embora não fosse cachorrinho. Sem sexo e poucos beijos, também por ele ser um pouco desajeitado, certamente, o filme mostrava outra relação de amor tão desequilibrada quanto fantástica. Uma amizade que nasceu na praia num dia à Carcavelos em tarde de domingo, no Verão, tornou-se um elo resistente ao triturar do tempo. Embora uma assumi-se ser a serva, havia mais do que uma relação de vassalagem entre as duas mulheres. Por vezes, durante longos períodos, eram distantes e não falavam de intimidades. Numa só conversa, curta, porém, voltavam ao ponto anterior de empatia total. Facilmente o faziam. Ia pensando nas várias histórias do filme e no que não relacionou de imediato, quando alguém manda uma pedra para o lago. Spalsh. Virou-se, a medo, para ver quem seria. Não estava lá ninguém. Levantou-se e deu por si a dizer em alta voz: gosto mais do filme hoje do que gostei ontem. Ah, a Felismina também é assim: apercebe-se que afinal gosta mais dos namorados depois.