segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Caixa de fruta

Na escola, quando lhe pediram para se desenhar, fez uma árvore. Arminda optou por um tronco alto, esguio, sem se esquecer das raízes. Deixou-as visíveis. Na altura, a professora fez-lhe um reparo duro e inesquecível. Se ficas, não vais, não passeias, não voas. Arminda nunca tinha pensado no movimento, no que este significava concretamente. Ficou dias entretida com aqueles pensamentos, as aves ganharam o foco da sua atenção, de cima viam o que ela nunca veria, e não pareciam preguiçosas, não paravam quietas. Daí nasceu uma pequena máxima: tudo muda. Daqui a segundos pode ser outra coisa. Basta um vento. Uma caneta Bic laranja. Uma caixa de fruta que lhe entre pela casa adentro.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Helicóptero

Tinha passado mil vezes naquela rua. Rua acima, rua abaixo. Há anos que o fazia. Nunca a tinha visto. Naquela tarde viu-a. A loja era discreta e a porta mal se via. Um helicóptero na montra chamou-lhe a atenção. Entrou. Lá dentro, as prateleiras apresentavam aviões, helicópteros, iates, "um barco do amor", como o da série dos anos oitenta, automóveis. Todos eles funcionavam. O vendedor explicou-lhe: "É uma loja de brinquedos para adultos". Começou então um novo filme dentro do anterior. "Não me posso queixar da crise. Um cliente novo volta sempre". No outro dia, contou, um senhor de uma só vez comprou 20 exemplares de carros, motas e aviões. Tinha tido um incêndio na garagem e antes de pensar nas obras a fazer, veio a correr à loja para reaver os seus modelos de eleição. "Como se pode explicar tal incoerência?", perguntei. "Vou mostrar-lhe", disse. Agarrou no helicóptero e em dois minutos colocou-o a voar. O aparelho parecia real. Levantou voo como fazem os que não são para brincar. As duas pessoas que chegaram entretanto também se calaram. Fez-se silêncio. Todos se focaram nas hélices. Ele já estava fora do chão. Todos nós ficámos com os pés fora do chão. "Está a ver, quando se olha para um helicóptero em voo não se pensa em mais nada. Os adultos precisam disso".

domingo, 12 de dezembro de 2010

Dona teresa

As vistas eram largas naquele apartamento da Avenida Estados Unidos da América. Podia ver-se a cidade em tamanho grande, Lisboa em 360 graus. Do aeroporto, ao Cristo Rei. Sara arquivou aquelas imagens. Pestanejou entre elas, como se de um registo fotográfico se tratasse. Depois de um jantar saboroso, a malta sentou-se na varanda e ninguém se queixou do frio, apesar de se estar num nono andar, em Dezembro. Fumou-se e bebeu-se. Os gins perderam para os vodkas. Primeiro falou-se de adopção. Depois, quando a conversa entrou em desalinho, disseram-se muitos disparates. Pelo meio andou-se de baloiço - havia um na varanda - dançou-se na cozinha. Sara dançou sozinha, retirada, uma música calminha. Também na cozinha, uma das paredes era envidraçada. Sentia-se ali com um pé na rua. E pensou no Pedro. Pensou no quanto ele iria gostar de estar ali. Tinha a certeza disso e se há coisa que a Sara não é, é uma mulher de certezas. Por isso era tão tolerante. No regresso à varanda do convívio, Afonso falava da dona Teresa. Dona Teresa para aqui e dona Teresa para acolá. Duas das pessoas presentes sabiam muito bem quem era a dona Teresa. Para Tomás, tratava-se de uma pessoa insuportável. Não respeitava quem estava a escrever na redacção. Entrava por ali adentro, sem aviso, com o aspirador. Usava-o como se fosse uma arma e começava a disparar. Um incómodo. A melhor história acerca da dona Teresa foi contada pelo Afonso. No ano passado, na altura da passagem de ano, Afonso abraçou-a, e enquanto lhe desejava bom ano, na parte do afastamento dos braços, deu-se um beijo na boca. "Beijaste a dona Teresa?", perguntou Tomás, atónito. "Beijei".

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O terceiro elemento

Madalena tinha uma teoria. Quando há uma ligação entre duas pessoas cria-se uma espécie de terceira entidade. Chegado aqui, ou se sopra e a bola de sabão lá vai. Ou se põe o dedo e ela cai. No início é tudo muito frágil.

Estás a gostar do bolo?

Sem se dar conta disso, Matilde punha as pessoas à prova. Em conversa com o Gonçalo, percebeu que o procedimento vinha dos seus tempos de escuteira, da infância. "Bem, como nunca pensei nisso, assim, objectivamente", disse, usando as palavras de forma espaçada, em ritmo lento. Inspirado, certamente por causa do bolo de maça quentinho, acabadinho de fazer, Gonçalo esticou-se mais um bocadinho, lembrando a Matilde o seu pessimismo preliminar em relação a qualquer novo interesse. "Isto não vai dar em nada. Vou só confirmar que não temos nada a ver um com o outro!", reproduziu, imitando-a na forma de falar. Matilde mudou de assunto: "Estás a gostar do bolo? Tem pouco açúcar?". "Esta óptimo. Posso comer mais uma fatia?". Entretanto, ficou cabisbaixa. E respondeu: "Claro. Ele nem está grande coisa, devia estar um bocadinho mais húmido e ligeiramente mais crocante em cima. Não está grande coisa!"

domingo, 5 de dezembro de 2010

Caiu-lhe a ficha

Joana decidiu que era desta que iria fazer psicoterapia. Não conseguia dar o salto. Enquanto estava com os pés fora do chão, instantaneamente apaixonada, deixava-se levar. Sentia-se capaz de conquistar o Norte de África aos mouros. O seu cérebro parecia dominado por aquele estado de graça e tornava-se mais feminina e sagaz. O problema dava de si, quando chegava a hora de dar o salto. O salto para um namoro. Interpretava qualquer pequena quebra, falta de entusiasmo, como uma desilusão e rapidamente desistia antes de pôr o pára-quedas às costas. Por isso, viveu paixões, viveu. Esgotou-as.

Fala e mata

De há três meses para cá, João começou a sair mais vezes com a Maria. Foram-se aproximando. O sair mais vezes traduz um café de 15 em 15 dias, o que é uma média razoável sabendo nós que viviam os dois em Lisboa. Na outra noite, deu-se um deslize. Maria desequilibrou-se no degrau da porta de sua casa e agarrou o João pelo pescoço. Depois, beijaram-se. As bocas estavam mesmo ali. João correspondeu bem. Foi meigo. Até aqui, nada de extraordinário. No dia seguinte, quando a Maria telefonou, o João disse-lhe que tinham de falar do que se tinha passado. Segundo a Carlota, a quem a Maria ligou a contar e a pedir conselhos, era um péssimo sinal. Se tinham de falar do que aconteceu, seria para matar a história. Depois, o João foi adiando o encontro. Outro mau sinal, apontava a Carlota. Entretanto, passaram-se dois meses. Quando o João encontrou, por acaso, a Maria no café do Maria Matos, não teve alternativa se não ficar mais um pouco para falar com ela. "Então?", perguntou a Maria. "Tudo poderia ser de outra forma, mas sou gay!", disse o João. "Porque não me disseste?". Estava indignada. "Contigo sou gay!". "Comigo?". Com um olhar firme, o João tentou explicar: "Já estive com uma miúda com quem não fui gay!".

Vai tirando a roupa

Catarina guardou as melhores frases. O que de melhor lhe haviam escrito. Algumas delas eram versos soltos. Outras meras manifestações de bem estar. Naquela tarde de pouca luz, resolveu arrumar gavetas e enfiar-se dentro da sua cabeça. Foi à caixinha de cartão pardo e retirou de lá os papelitos. Alguns estavam velhos, encardidos. Quando encontrou a post it, ligou-se de imediato ao seu passado com o Pedro. Numa tarde de inverno, ele havia-lhe escrito: "Tu és o meu aquecedor!". Em tom diferente, se apresentava a observação do Tiago: "Adoro a forma como vais tirando a roupa!". Mário utilizava uma lógica infantil: "Tenho o peito inchado, o coração cresceu". Do António só poderia ter saído uma ideia assim: "Quanto mais gosto de ti, menos gosto de mim". Uma das suas declarações de amor preferidas não aparecia, não aparecia, não aparecia. Era a do Rui. Onde está o pedaço de jornal onde ele escreveu aquilo? Não estava. O Rui tinha-lhe escrito qualquer coisa próxima disto: "Antes um dia bem passado contigo. Sempre antes um dia bem passado contigo."