domingo, 30 de setembro de 2012

quente

Trouxe-lhe uma folha seca em formato de coração mal recortado. Não tinha dinheiro para mais aquele mês. O dentista ficou-lhe com a poupança de Agosto. Arminda pegou nela pelo caule e colocou-a no livro "Uma história do amor", de Nicole Krauss. Fez dela um marcador. Arminda transformava as folhas em marcadores de livros em miúda. Conhecia bem a textura, o cheiro que largam. Era frequente Joaquim fazê-la viajar mentalmente até uma zona de conforto qualquer. Tinha esse dom.

desafinado

Alberto era meticuloso no tipo de contacto que estabelecia com amigos novos. Erros do passado fizeram dele um sujeito cauteloso. Quando nos aproximamos muito, arriscamo-nos a descobrir manias estúpidas, falhas graves de carácter, aspectos perversos. Alberto preferia não explorar em demasia certos convívios e evitar chegar a esse ponto. Já tinha o baralho completo. Chegavam-lhe os amigos antigos. Os das suas preocupações. Já lhe davam tantas. No amor, porém, não conseguia travar o processo. Tinha uma curiosidade insaciável. Transportava para os sonhos o possível significado de uma frase atirada para o ar. Enchia-se de felicidade enquanto recordava o olhar deixado à foto da senhora do campo, pendurada no Povo, num segundo, para logo a seguir, questionar as neuroses, os traumas, as incoerências pequenas e grandes, e as mais complexas, as médias. Apaixonava-se pelos deslizes, pelas imperfeições, pelo lado desafinado. Por isso, amava muito mais a Dulce do que o Mário alguma vez gostaria.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

ploc, ploc

cortou as cebolas sem os óculos da piscina.
não se queria proteger desta vez.
cortou, picou, deu as voltas todas.
a cebola desfez-se,
meteu-se na panela,
deu sabor à sopa.
saiu para a mesa 7 uma sopa de lágrimas salgadas.

blá, blá

queria-te no meu silêncio.
não quiseste vir.
Falavas demais.


toc, toc

bateram à porta,
em vez de tocaram à campainha.
- quem é?
- sou a palavra de deus.
- deus não é meu amigo.
- trazemos um recado.
- não estou interessada.
- o mundo vai acabar amanhã.
- eu acabo com ele antes disso.
- deus quer fazer-lhe o almoço.
- almoço?
eis que surge uma nota por baixo da porta
- sou o pedro, trago morfina

separações

em cada separação há uma pequena morte.
algo morre para sempre,
ainda que fique perto de nós.
faça a mesma rua ou coma
o mesmo nestum com mel.
Sei que estará a meter a colher na boca
neste instante.
em cada separação, há um desencontro
um desencontro para sempre.


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Desaparecidos

Não estava ninguém na sala de espera. Um silêncio opaco. Em vez de duas pessoas na recepção, apenas uma, que demorou dois minutos a chegar. "Desculpe, já vou". Uma sensação de vazio. Há dois anos, Maria esperou 40 minutos para que lhe tirassem sangue das veias. Estava a sala repleta. Havia gente nos corredores com requisições verdes presas aos dedos. Ouvia-se falatório de quem se conhecia e de quem se ficou a conhecer naquela manhã, no laboratório de análises. Há dois anos, pairava a desconfiança, o fantasma, mas não sentia ainda a crise na pele. "O que se passa, é da greve do metro?". Abanou a cabeça ligeiramente para a esquerda e para a direita. "Agora é sempre assim. Evita-se o médico, não se fazem análises". O corredor do laboratório, sem quadros, despido, tinha crescido em comprimento. Maria sentou-se. "E os velhotes?". "Desapareceram".

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

vida

- as plantas morreram?
- não me parece que estejam a dormir.
- secaram.
- morreram.

Júpiter

Dois pesos. Ela leve que nem uma pena fina, fina. Ele pesado, chumbo compacto. Assim se encontraram. Se o encontro tivesse sido noutro dia, depois de ele ter tido um sono descansado, o resto da história teria tido outro rumo. mas não foi. Ele estava ansioso e não via a hora de chegar a casa, de se atirar para o sofá. estava dominado por uma inquietação em crescendo, efeito de um acumular de equívocos. um pontapé, atrás de outro pontapé. Estavam difíceis aqueles tempos no trabalho. Ele, desconcentrado. Ela, a pairar. Acabadinha de chegar de férias, Maria respirava devagar e os olhos pouco pestanejavam. a voz, meiga, um pouco arrastada. Resultado: ela percebeu o quanto stressado ele consegue ser. Ele concluiu: habitavam planetas diferentes.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

sesta

dormir à tarde faz de um dia dois.
por isso sou mais velho do que pareço,
por isso tanta tolerância,
por isso tanta compaixão.
Quem dorme pouco,
pode saber muito,
coleccionar sucessos,
mas é muito novo,
num corpo de velho.

intrigas

Na empresa da Josefina ninguém se conhece em carne e osso. Comunicam online, via skype. Há reuniões como em qualquer outra instituição, demasiadas reuniões. Emails que terminam em reticências, fazendo adivinhar um desfecho irónico. Enfim, dois meses bastaram para começarem a emergir intrigas. Josefina recebe emails oficiais do chefe e emails escritos entre parêntesis. Conversa através do gtalk com o Rui, e este manda-lhe presentes noite dentro: um poema ou uma fotografia tirada algures durante as viagens do passado. Josefina foi das primeiras a saber: Dulce vai ser despedida. O motivo? Diferenças inconciliáveis com os seus superiores. Dulce não respondia na hora aos emails. Não estava sempre online. Francisco, seu chefe directo, foi interpretando os atrasos com desconfiança.

a fotografia

O Jorge vive num quarto no Martim Moniz, um quarto com vista e uma pequena varanda, muito arejado, disse mais do que uma vez. Há décadas trabalhou ao pé da Avenida de Paris, foi o local onde trabalhou mais tempo e habituou-se às ruas e aos passeios largos. Os que são da sua geração conhece-os bem. Hoje é pedinte na mesma rua. Escolheu a entrada de um prédio próximo ao pingo doce e ali fica, cumprindo horário, como se trabalhasse no escritório do senhor Rosário, ainda fosse o estafeta de serviço. O dinheiro da pensão dá-lhe para pagar o quarto e comer uma sopa. O que lhe dão os amigos é para os extras, uma bifana, um pastel de bacalhau. É invejado pelos sem abrigo da zona. Fala com quem passa e recebe apertos de mão, além de moedas. Jorge tem família. Uma irmã, em Inglaterra, que não vê há 40 anos. Foi e não voltou. Este verão recebeu uma carta dela. Dizia-lhe que o vinha visitar e que ia trazer o sobrinho, acabado de formar. "Tenho um sobrinho médico", disse, com orgulho, enquanto encostava a mão ao peito. Jorge tem uns belos olhos azuis e apresenta-se aprumadinho. Quando ele desapareceu há um mês, a sua ausência notou-se. Esteve internado, no Santa Maria."Foram muito atenciosos comigo". A irmã, afinal, não veio. "Ela queria vir amparar-me, mas não pôde vir", disse. "Mandou-me uma fotografia".

gramática

As ideias atropelam-se umas às outras,
as palavras encavalitam-se e saem fora do sítio.
estarei cansada?
o cérebro pede folga e poesia,
versos soltos, intuições pouco sólidas, vagas.
Dou-lhe tudo o que me pede.
Devolve-me a minha vida.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

manif

o que sobressai de uma grande manifestação é a condição humana. somos todos iguais dentro da casa de banho e diante da injustiça. quem aprecia famosos, não percebe nada de manifestações.

gato ou cão

- Tia, quando se sabe se se gosta de alguém?
- hum, aí há gato. Conta lá.
- Não há gato, há cão.
- Ahahah.
- Começa por se pensar nessa pessoa.
- A toda a hora?
- No início, não. Vai aumentando de frequência.
- Só à noite, no começo, é isso?
- De noite, há menos ruídos e distracções, por isso a nossa cabeça se reserva a outro tipo de pensamentos. Diria que a poesia tem mais a ver com noites e manhãs.
- Ainda não percebi bem o que é a poesia.
- Leva o seu tempo.

Malditos

Jurar, jurar. Quem mais jura, mais mente, quem enaltece em exagero um aspecto, procura esconder algo se não dizer exactamente o contrário. As palavras traem as ideias em estado puras. Coitadas. Por elas, não seria assim. Fazem-lhes mau uso e lá estão elas a enganar toda a gente. Malditos.

apagador

A dor física é do pior que há. Tira a racionalidade a um filósofo. Perde-se a vista. Engole qualquer preocupação. Bem, por esse lado sobra uma parte boa. Vá lá. Depois da facada, vem a cicatriz, depois da cicatriz, a história para contar. Algumas apagam-se completamente, outras deixam rasto.

o dia a custo zero

Estava no seu dia a custo zero. Almoçar em casa, tarde no jardim, garrafa de água na mão, livro no saco, ao pé da prenda dele. Levou-a com ela. Dava-lhe um certo conforto tê-la por perto. Ninguém apareceu à hora combinada e ela agradeceu às árvores pelos atrasos. Estava tão bem caladinha. Falou demasiado a semana inteira, tinha gasto as 21 mil palavras disponíveis. Estava tudo certo, estava tudo certo, depois de estar tudo errado.

Pata

Enquanto ela falava, falava, os olhos dele acompanhavam cada vírgula. Ela inclinava a cabeça e ele reagia sempre com outro movimento qualquer. A cadela colou-se aos pés da Josefina assim que chegou à esplanada. Estacionou ali de forma familiar. Quando chegou a altura de ele dominar a conversa, Josefina colocou as mãos entre os joelhos, fazendo uma sandes. Assim ficou, ligeiramente inclinada para a frente. Tinha-lhe sido diagnosticado zona, não podia encostar as costas à cadeira. Soprava um vento suave e ela lembrou-se do quanto Miguel gostava de chuva e tempestades, tanto quanto ela se perde de amores pelo vento. Coisas que passam pela cabeça sem que se faça esforço algum. A Pata, o nome da cadela, mexeu-se um pouco. Tocou-lhe na perna. Josefina afagou-lhe o pêlo preto brilhante. Uma e duas vezes. Ou mais. Pedro, o seu dono, gostava de estrelas e sabia tudo sobre elas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

like

- não me deixes um like protocolar
- não o faria.
- porquê?
- ando a estudar as microdecisões e a tentar perceber como elas nos mudam a vida.
- e o que tem isso a ver com um like?
- já te explico. não são as decisões, em grande, que estiveram a marinar, antes de saírem cá para fora, que fazem a diferença. as pequenas já o fizeram. nem nos apercebemos disso.
- e o que tem isso a ver com um like?
- um like pode ser o princípio de uma microdecisão

costureira

as fantasias são feitas exactamente à nossa medida, são os filhos que os filhos não são

colchão pikolin

Apertou a folha na mão
até que se desfizesse
Estava seca
Mariana sabia que
tinha de sair da sua zona de conforto
deixar o bairro
Desfez-se em pedaços
Estaladiços
O seu cérebro estaria espalmado,
naquele instante,
como um colchão.
Mariana apanhou o comboio
da linha de Sintra e
saiu em Cascais.
Quando voltou,
as ideias estavam chocalhadas,
removidas e a decisão tomada
Não era preciso mudar nada por fora,
apenas por dentro





domingo, 9 de setembro de 2012

simples

Há músicas tristes que nos fazem felizes.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

substitutos

Fazia tudo aos pares. Tomava dois cafés seguidos, postava duas músicas de cada vez no facebook, saía sempre com duas pessoas em simultâneo, comia duas peças de fruta de enfiada, optava sempre por duas bolas de gelado. Fazia tudo aos pares, embora preferisse os números ímpares. Nasceu num dia ímpar, teve um filho num dia ímpar, foi operada num dia ímpar, sabia que iria morrer num dia ímpar. Fazia tudo aos pares com medo que alguma das partes falhasse.

Silêncio

José passou um mês, algures na Índia. Não sabia ao que ia. E encontrou um retiro espiritual destinado aos que querem limpar a mente. Durante 30 dias propôs-se conviver com 55 pessoas, abdicando do uso das palavras. Ali eram proibidas. Não podia falar. Apenas conhecia a Maria, a sua melhor amiga, que com ele aceitou a aventura de ir sem destino certo até onde fosse e lhes apetecesse e o dinheiro deixasse. Em dois dias, fez quatro, cinco amigos. A aproximação baseou-se nos olhares meigos e nas escolha do local para fazer as refeições. Dirigiam-se sempre para o mesmo canto. A meio do mês tinha-se habituado. Começou a ser natural escutar o estômago em funções. Passou a ouvir em bom som o que acontecia no interior do seu organismo. E os grupos foram-se solidificando. A dez dias do fim, Maria começou por se encostar ao ombro do Chris na altura da sobremesa. Ficavam colados e quietos. A seis dias do fim, faziam-no nas pausas dos passeios a pé. A três dias do fim, nos intervalos da exibição dos filmes. Mudos, claro. No último dia, abraçaram-se e despediram-se.






Cinco anos

- olá. parabéns!
- olá, olá. Parabéns?
- faz hoje cinco anos que acabámos.
- Só tu, como te foste lembrar disso.
- agora, a esta distância, foi bom ter acontecido, já viste?
- sei lá se foi bom, aconteceu. Fez sentido naquela altura. mas não te dou parabéns. que parvoíce.
- estás a chamar-me parva?
- estou
- ainda bem que acabámos.
- ainda bem que és parva
(caiu a ligação)
- caiu a chamada. Não és nada parva. eu é que sou parvo.
- somos dois parvos.
- vou desligar, ok?
- não consigo ser eu a desligar, já sabes.