terça-feira, 26 de março de 2013

melro

Um melro à minha porta,
quase ao pé da estação
bico amarelo
corpo negro
andava ali de um lado
para o outro
de um lado para o outro
de um lado para o outro
levei comigo a sua imagem
descarrego-a aqui

sábado, 23 de março de 2013

frio de março

Passado três meses, arranjou coragem para espreitar a página de Facebook dele. Cumpriu direitinho a auto-imposição. Na última semana foi custoso. Chegou a hora de ver, encarar a desaire e andar noutra direcção. Lá estava ela, a nova namorada. Seguia o padrão. Morena, um pouco ruiva, sardenta, pose insegura mas elegante, perna alta, queixo e nariz bem desenhados. Parecida comigo.

frio de janeiro

Sentou-se à frente dela e colocou as mãos em cima da mesa. Estava frio na esplanada do Museu de Arte Antiga. Ela estremeceu um pouco, mas resistiu a comentar a temperatura do primeiro dia de primavera. Não queria ser vulgar naquele momento. Pressentiu, de imediato, que iam dar-lhe tampa. Falou de coisa nenhuma até mencionar as parecenças com a sua irmã mais velha. Vinham-lhe à cabeça de vez em quando e por isso não conseguia continuar. nem mais um beijo. acabaram-se os bilhetes na bicicleta. As linhas do nariz e do queixo tinham o mesmo desenho, dizia. na cabeça dela fez-se um pensamento tolo. Eça de Queirós, Eça de Queirós: teriam o mesmo pai?

não é

há palavras por inventar e queria trazê-las aqui. Como chamar à empatia fina sentida por um quase desconhecido? não é amor, que sei bem o que isso é. Provei-o cedo, minha cara amiga. Divorciei-me cedo, camarada. não é amor porque esse faz ser mais tolerante do que é costume e aceitar o que por regra faz mal. Fumei por amor, é verdade. Bebi absinto por amor, um dia conto-te essa história. conduzi a 200 Km/hora por amor, meu Deus. há palavras que não servem para o que queremos dizer porque somos mais do que matéria e cinzas. Metafísica? Põe metafísica nisso. o mistério não está no amor. esse, quando está lá, bate forte que nem trovoada em tempo seco algures no alentejano. O mistério está na incerteza. em tudo o resto que não é amor.

antes do amor

antes do som
antes do amor
depois da música
depois do jantar
os primeiros dez minutos
de conversa são sempre
para deitar fora
jogam-se no lixo
em saco limpo
negro, brilhante, a estrear
antes da doença
depois da cura
antes de cozinhar
depois do banho

migalha

era uma migalha na vida dela, dizia. Dedicou-lhe duas horas de conversa.

balão

comeu vento
encheu-se de ar
e voou

osso

Agarrou-se a ele.
Era magro, osso e osso,
conseguiu perceber
o desenho dos
omoplatas.
ainda hoje se lembra disso,
omoplatas