sábado, 31 de outubro de 2009

Também vooo

Cheguei atrasada ao aeroporto. Sabem porquê? Tinha-me esquecido do passaporte. Tive de o ir buscar a casa a correr. Foi tudo tão rápido e intenso, como se todo o percurso tivesse sido feito em cinema 3D. Houve um autocarro que quase engoliu o taxi ou o passava a ferro. Brutal. Quando finalmente me sentei a fazer tempo para o embarque, respirei fundo. Preparada para mergulhar no meu exercício mental preferido, a saber, o que de melhor me aconteceu naquele dia (eram 23 horas), eis senão quando sou interrompida muito ao de leve, por uma voz ao telemóvel que dizia a alguém: "Parto daqui a 40 minutos para Moçambique. Sim, sim, telefono quando chegar". Tinha o meu destino. Olhei. Quando me sentei no avião, sentou-se ao meu lado. Perguntei-lhe se íamos ao mesmo. Viagem de trabalho? Sim, sim. E sim também para a melhor viagem longa, melhor companhia para viagem longa. Acabámos por passar 10 dias juntos. Quando nos despedíamos, para qualquer coisa básica que fosse, do tipo ir comprar cigarros, o coração encolhia. Depois, ele voltava e o músculo apanhava o ritmo. Tínhamos de partilhar quarto com outros dois colegas de trabalho, portanto, só nos restava ficar a falar no bar no hotel, embalados pela música kitsch do pianista de serviço. Nunca dormi tão pouco na minha vida. Passava pelas brasas de dia: cinco minutos no ombro dele, outros cinco na casa da banho, uns minutos no banho.

A minha bicicleta é melhor do que a tua

Às vezes sinto-me fernando pessoa, entre dúvidas e versos tristes. Às vezes, finjo ser psiquiatra da minha pessoa, levo-me para o meu sofá e deixo que os desabafos se soltem à vontade, ainda que não abra a boca. Por momentos, naquela tarde cheguei a pensar: um dia lavaria as mãos contigo. A primeira vez que o te o vi fazer, fiquei encantada. Curvaste-te sobre o lavatório e lavaste-as bem, com firmeza, de forma despachada, durante o tempo certo. Passei o resto da noite a pensar em como eras diferente do meu ex-namorado. Quanto mais pensava nisso, mais me apetecia convidar-te para irmos a Amsterdão. No paraíso das bicicletas, iríamos dar-nos bem. Por isso te convidei. Mas disseste que não podias. Só ouvi o não. Não ouvi o resto. Fui com o Mário.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Defeitos

Disse à Carolina que tinha medo das pessoas normais. Ela riu-se e desvalorizou. No sábado seguinte, no Clara Clara, esplanada do jardim da Feira da Ladra, veio ter comigo para me dizer, que sim, que tinha razão. Afinal, dos que conhecemos as falhas podemos esperar menos surpresas, são mais ou menos previsíveis. Atirou-me, no entanto, uma frase curiosa: todos temos defeitos. Fiquei a pensar nos meus traumas conscientes, nas reacções descontroladas e desproporcionais que tenho diante de determinados obstáculos. Do pavor de acordar sem reconhecer onde estou. É mesmo isso, dizia para mim. Passei o resto da tarde a escrever as falhas das pessoas que conhecia e à medida que o fazia, ficava maior o apego por elas. E o exercício relaxou-me. Afinal, os defeitos podem não ser muito importantes. São normais.

Adormecer

"Onde te vi despir, regresso agora, para adormecer ou chorar". A frase está ao pé do Liceu Camões, em Lisboa, por baixo do muro de fundo azul, nem escuro nem claro, que fica na lateral, quando se sobe. Aparece logo depois do veterinário, à esquerda. Está pintada com um desenho de letra redondinho. Entra como um verso na nossa mente enquanto o nosso olhar se desvia, sem ordem, para o prédio da frente. Deverá dirigir-se a alguém que ali mora. Já lá está há um mês. Ontem resolvi procurar as personagens deste epílogo e colei então um papel na porta do prédio. "Procura-se destinatário da frase: "Onde te vi despedir, regresso agora para adormecer ou chorar". Deixei o contacto. Já me mandaram um email.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Começar ao contrário

O mais normal é conhecer alguém a partir do círculo de amigos. Começar aí uma empatia que pode crescer para contornos amorosos. Luísa, porém, nunca teve essa experiência. Com o António, por exemplo, começou ao contrário. "Ao contrário?", perguntou, visivelmente interessada na resposta, Alice. "Sim", disse, abanando a cabeça de cima para baixo, enquanto fazia um sorriso Mona Lisa."Conheci-o na Gulbenkian. Ele pediu-me uma caneta e acabei por lhe emprestar uma das minhas bic de estimação, das amarelas de escrita fina. Depois, ele mandou-me um mail porque descobriu que eu era jornalista, e os endereços estão lá, a par da assinatura. Durante seis meses, fomos trocando dicas de concertos e sobretudo sugestões acerca dos restaurantes e esplanadas mais agradáveis da cidade. Não eram, no início, contactos muito frequentes, mas foram-se tornando. Até aqui tudo muito leve, dentro de uma linha clara de amizade. Até que um dia ele me disse que estava a pensar mudar-se. Ia deixar Lisboa. Ia partir. Aquilo mexeu comigo. E ele começou a irritar-me. O que me ia dizendo, parecia-me tão desligado, pois não implicava em nada a existência da minha pessoa. Estava como que a reclamar por ele não se preocupar comigo, vejo agora. Sei que a preocupação é o primeiro sinal de se gostar honestamente de alguém. Esforçava-me para falar calmamente com ele, como amiga, mas descobri, de repente, que estava chateada com o facto de ele partir, de ele se ir embora. Combinei um jantar. Bem, só ao terceiro convite consegui que ele não o desmarcasse. O encontro foi feito de conversas banais e alguma risota. O vinho maduro tinto ajudou. Quando, a caminho de casa, veio à conversa a despedida, discutimos. Finalmente. Foi um alívio. Em síntese, disse-lhe que tinha começado a gostar mais dele do que era suposto. Ele disse-me que eu sempre tinha dado sinais de querer ficar pela amizade. Por fim, ele disse-me que também não valia a pena. Se estavam a discutir, não valia a pena preocuparam-se um com o outro. Aquilo atingiu-me como um raio". E então, então, ele foi embora?, interrompeu a Alice. "Claro. Mas só se aguentou três meses fora, quando voltou de Londres, acabámos por nos encontrar na Praça Luís de Camões. Andamos desde aí. Já lá vão três anos. Cada vez nos entendemos melhor. Estranhamente, agora que o conto, é a minha relação mais tranquila".

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Uma aventura

Olhou para cima, para a janela, mais uma vez antes de se lançar na aventura. Conseguiu que alguém lhe abrisse a porta de baixo para chegar às escadas. Cada degrau que fazia era um grande passo. Estava obstinada. Tinha de ir lá e mandar vir com ele. Falar, falar, falar. Assim foi. Ele abriu a porta e nem teve tempo para dizer o que quer que fosse. Ela já estava a discutir sem a participação dele. Tinha um jeito engraçado de dialogar. Fingia ser ele e respondia ao que tinha acabado de dizer. Ele estava estático. Mantinha-se silencioso. Ela ia explodindo como podia, bracejando, batendo com o pé. Assim se consumiram 22 minutos da vida deles. Até que ela se sentou. "Estou cansada", disse. Ele pôs-se ao seu ao lado, olhou para baixo e começou a dizer que não estava a perceber nada. Josefina pediu-lhe, entretanto, um copo de água. Bebeu-o e saiu porta fora, deixando-a aberta. Ele fechou-a. Em sistema piloto automático - David costumava dizer que de vez em quando funcionava em piloto automático - foi até à janela, abriu-a e deu por si a despejar o copo de água que tinha na mão. O líquido fez uma curva para lhe acertar em cheio. Parecia comandado. Ele viu Josefina de cabelo molhado a afastar-se. Josefina não se virou nem nada. Naquele momento, David pensou: como ela ficava tão bonita de cabelo a pingar. Pensou nos banhos deles. A ideia durou 5 segundos mas caiu. Gostaria muito mais dela se ela fosse muda, passou-lhe pela cabeça.