terça-feira, 30 de setembro de 2008

Estou de férias

O amor dá-me tensão. O sangue circula mais rápido, que eu bem sei. As veias transformam-se em auto-estradas. Sem o amor, parece Outono. As folhas caem e vão andando ao sabor do vento. Por vezes, viram-se, outras desfazem-se. Sem o amor, ando calma. Posso ter um pouco de sol, mas nunca o suficiente para me querer despir em casa. O frio também não incomoda e até relaxa. Sem amor, não me preocupo e a preocupação faz-me mal. Sem amor, não tenho horas, compromissos, nem de contar nada de que não me apeteça. Pois é, sem amor nem sequer tenho de ter os pés no chão. Posso andar distraída. Posso desaparecer. Fazer os disparates todos: comer a sobremesa, antes do prato principal e deixar a sopa para o fim. O amor dá trabalho. O amor dá trabalho.

Afinal, era outro

Passaram-se 10 anos, mas é como se fosse ontem. Joana namorou com mais três rapazes e teve outros tantos casos, com pouco mais de três semanas, o limite para se inserirem no pacote dos casos em vez de na gaveta dos namoros. Passaram-se 10 anos, mas Joana fica à toa. Os neurónios dão nós entre si e a sua cabeça deixa de funcionar normalmente. Assim foi daquela vez. Estava com a família mais chegada no restaurante envidraçado, à beira rio, quando a sua prima lhe disse: "Nem vais acreditar em quem está lá fora". Só podia ser ele. E era. Rodeado com gente que ela desconhecia, tanto quanto conseguiu ver enquanto virou ligeiramente a cara a medo de ser vista. Prosseguiu ao seu ritmo a levar garfada atrás de garfada à boca. A perna começou a tremer. "Que estupidez!", pensava. "Vivemos em planetas diferentes, ele casou, eu não, vivemos em cidades distantes, ele teve tuberculose, eu passei pelo receio de poder ter cancro de pele, ele teve um filho, eu tenho um cão de louça e uma bicicleta". A prima deixou-lhe o alerta: "Deve estar com a família dela e com o filho". Gostava de crianças, mas não lhe apetecia ver a dele, sobretudo fazer comentários da praxe à dele. Quando chegou a altura de se levantar da cadeira, respirou fundo e fez força com os pés contra o chão, tal qual lhe ensinaram no Conservatório antes de uma audição. À medida que ia dando um passo atrás do outro, começou a ver tudo em câmara lenta. Foi-se aproximando e espreitou para dentro de um carrinho de bebé. "Olá, está crescido", disse enquanto se dobrava ligeiramente, inclinando-se para ver melhor a criança. Ele levantou-se e foi para a outra ponta da mesa: "Não é esse, é este. Esse não é meu".

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

mama

Estava calor e o ar condicionado não era suficiente para refrescar o carro. Abriram as janelas. A conversa estava bem disposta. As gargalhadas sucederam-se. De repente, estavam a chegar à Ericeira. Bem, tinham-se perdido. Fazer inversão de marcha foi complicado. Acabaram por seguir exactamente o que um carro fez. Mas não sabiam agora qual seria o caminho a tomar. Tinham três hipóteses pela frente. Teresinha queixava-se do calor. Tinha improvisado um leque com um folha de papel e ia dizendo: “Não se está bem em lado nenhum!”. Maria, a condutora, resolveu parar para perguntar a um senhor barrigudo que seguia com a mulher e a filha atrás, cada uma delas devidamente espaçadas por cinco metros de diferença, sobre a estrada mais próxima para a praia de São Julião. No banco de trás, estava Lolita, sempre de olho atento. O indivíduo apareceu do lado da Teresinha. Esta desceu o vidro da janela até ao fim e Maria perguntou: “Por favor, sabe dizer-me qual é o melhor caminho para a praia de São Julião?”. O senhor parecia bloqueado. Não respondeu. Saiu-lhe da boca um som: “Hã? Hã?”. Maria repetiu e ele lá disse, mas sempre com uma cara de espanto a acompanhar. Arrancaram e seguiram. Lolita estava ainda a comentar a família que não andava lado a lado na rua, quando Teresinha solta um grito: “Tenho uma mama de fora!”. Tinha-lhe caída a alça e a camisola. Choraram de tanto rir. Por isso, o pai de família reagiu como reagiu. Teresinha rematou ainda: “Esta estava a morrer de calor".

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Bonito, bonito

A minha avó adorava histórias de pessoas. Sem ter propriamente a paciência que se pede aos psicólogos, ouvia muitas. A mim, ia-me falando de uma ou outra, com o objectivo de eu aprender como eram as coisas. Foi com ela que aprendi que não há pessoas boas, más, bonitas e feias. Mas já lá vou. Uma das histórias que mais me impressionou foi a de uma senhora que batia na mãe que, velhota, se tinha tornado insuportável. Não batia para aleijar, mas dava-lhe uns tabefes. A minha avó contou-me um lado da história logo seguido do outro. Sem intervalo. E como reacção ao meu choque, ainda me disse: "Mas nós não sabemos tudo". Outra que jamais esquecerei é a do senhor que tinha seis filhos da esposa, mais uns quantos da amante, conhecida da esposa e residente na mesma rua, e com quem este fazia abortos a quem precisasse na região. Claro que isto é apenas a síntese mais curta. O que fazia também com gozo, e eu adorava, era levar-me a reparar em pequenos detalhes das visitas: "Percebeste aquilo?". Conclusão: ela via as pessoas e não os bonecos que estas apresentavam. Não me lembro de ela dizer de alguém:"É bonito, é feio". Ela não as via assim. Considerava atributos muito mais interessantes. "Tem um ar saudável; soube apresentar-se; mantém o seu quê de criança; é um trauliteiro; tem energia; vai longe; este promete; esperteza não lhe falta; este sabe; mete-se nos copos ou coisa parecida; deve ter pancada; é amigo a valer; tem cabeça de vento; sempre foi assim; tem fibra; é casmurro; não sabe o que quer", podiam ser frases dela. Não me lembro de outras que seriam mais elaboradas. Mas enquanto isso, lembro-me dela.

Não morreste do coração

Desde que me lembro de ser gente que corri para as urgências do hospital com as crises de saúde da minha avó. De repente, um simples telefonema trocava as voltas à vida da minha família. Ela, apesar de já estar habituada, reagia sempre como se fosse dessa que ia morrer. Despediu-se vezes sem conta. Despedi-me vezes sem conta. Mais ainda sofreu a minha mãe que falava com os médicos e escondia os piores diagnósticos, aguentando sozinha aquela angústia que a incerteza da vida ou morte dá. Quando cresci, fiquei com parte do fardo da minha mama. Por uma questão geográfica passei eu a tratar das idas ao hospital. Transportei-a de carro várias vezes sem saber se se aguentava até lá chegar ou se teria sido melhor esperar pela ambulância. Quando se colocou a hipótese de uma operação ao coração, a minha avó quis, corajosamente, fazê-la. Havia muitos riscos. Foi mais uma despedida. Nunca me esquecerei das suas pernas magras que desapareceram no elevador. Seguiu-se o recobro, cenas de situação limite, com novos furos nos pulmões, sangue a jorrar para garrafões, desfibrilador, a conversa com o cirurgião chefe de que se poderia ter de desistir e desligar a máquina. Mas ela recuperou. Depois, em poucos dias, voltou ao que era no seu melhor. O dia mais feliz da minha vida foi quando saí com ela do hospital. Tenho na minha cabeça a foto que não se tirou: na porta principal dos HUC, eu a empurrá-la na cadeira de rodas e as duas a olharmos para a paisagem como se fossse a mais bela das vistas. O que não é, na verdade. Ao lado, estava o meu namorado que, disse, nessa época, que aquele também tinha sido um dos momentos mais intensos da sua existência. Ele adorava a minha avó. Mas não foi do coração que ela morreu. Viveu mais 10 anos, seguiram-se muitas mais idas às urgências, até que um dia lhe doeu outra coisa. Tinha tirado essa semana para passar umas férias com ela. E ela teve uma dor insuportável na primeira madrugada. Ainda me lembro de pensar enquanto lhe tentava arranjar a melhor posição: "Não pode estar a acontecer, estamos de férias e ela ontem estava tão bem disposta. Não pode ser nada que não se resolva". Como se queixava mais do que era costume e mal se conseguia mexer, chamei uma ambulância. Andou ainda noutra até Coimbra e eu fiz essa viagem com ela. Ainda hoje não posso ver ambulâncias naquele caminho sem me passar. Daquela vez, os médicos disseram que seria uma coisa simples, pois não se tratava do coração, mas do pâncreas. Melhorou, piorou, voltou várias vezes aos cuidados intensivos. Dei-lhe comida na boca seca quando os olhos já não me reconheciam. Despedi-me várias vezes dela. Ainda melhorou e chegou a contar histórias a mim e ao meu irmão a ponto de eu achar que estaríamos a ponto de ver "Nealva 2", como quando foi a operação ao coração. Mas acabou por morrer. Amanhã faz 2 anos e por acaso marcaram-me um electrocardiograma.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Esqueci-me

Uma dor de cabeça maldita. Andava comigo mais coisa menos coisa para aí há uns três dias. Comprei um corrector de olheiras caro. Teve de ser. Mas a dor continuava lá. Quando a Leonor me falou que tinha descoberto na Sara uma paixoneta por ela, ainda me distraí o suficiente para não pensar nela. Ao almoço, mastiguei devagar, para que os maxilares não me atraiçoassem. Muito lentamente. Se o som da dor de cabeça ficasse mais agudo, teria de cortar o cabelo. Talvez fosse isso. Cortar o cabelo poderia ser a solução. Se nenhum comprimido já resultava. Assim fiz. Fui à Ana. Ela é uma cabeleireira experiente. Vai cortar o cabelo que me está a fazer mal. À sua maneira, deu as tesouradas certas. A franja fazia toda a diferença. Deixou-a inclinada de forma a que não se percebesse a sobrancelha mais baixa. Quando me vi ao espelho, achei-me mais arranjada. Gostei da moldura. Ao mostrar-me o que se passava atrás, na nuca, encontrei a tatuagem. Não a via há muito tempo. Tinha-a apagado da minha memória. Passei a mão. Fiz-lhe uma pequena massagem. Tinha-me esquecido dela. Como me podia ter esquecido dela!