quinta-feira, 30 de maio de 2013

falta

Felismina gostava tanto de aprender. Era uma paixão. Iluminava-se. Depois, na adolescência, começou a compreender, a compreender até ao tutano e não poder mais e aí transformou a paixão em amor de noiva. De tanto querer compreender os outros, para não os julgar e os justificar, esqueceu-se de si e eles esqueceram-se dela também. Ficou invisível, estando visível, sentia-se pouco em toda a parte e toda a parte sentia falta dela.

hirudoid

tinhas uma árvore dentro de casa e um piano no meio do jardim. desconfiei logo. ajudei a deslocar as peças até aos sítios devidos. Disseste que foi isso que mudou a tua vida. eu, eu ganhei as tuas piadas.

vai ou fica

vai
vai, vai
vai, vai, vai,
vai, vai, vai, vai, vai, vai, fica

fica? fico?

vai ou fica?
vai,
vai, vai
vai, vai, vai

fico?
fica



segunda-feira, 27 de maio de 2013

tema original

tive um sonho com banda sonora. um dos temas era bom. dos outros, não me lembro. quis gravá-lo e quase consegui. tinha refrão. era animado. peguei no gravador para o cantarolar. tinha-o na mão e a ele na cabeça, bastava deita-lo fora. mas não saiu. eu tive um sonho com banda sonora.

deboulés

Não estragues uma tranquilidade que tanto demorou a fazer parte.

quieta

matou a culpa, mas ela ressuscitou. Não foi na Páscoa, foi no Corpo de Deus. Voltou a sacudi-la e ela sucumbiu. Desistiu diante de tanto pó. Parece. Está quieta.

iphónicos

Caminhavam pelos passeios, conversando a bom ritmo, de forma encadeada. Não haveria guião de filme mais perfeito a esse nível. Falas vivas, períodos pouco extensos. A vizinha, o pão, o Herberto Helder, as férias no campo, a queda do precipício, a viagem a Israel, ligaram-se espontaneamente. As declarações de amor ficam sempre para depois. Escrevem-nas via iphone. Ao vivo, não se fala delas, não vá o éter desviar-lhes o sentido.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

tristeza

as músicas melancólicas ajudam a sentir tristeza longe de quaisquer postiços e disfarces. é melhor assim. vem delicada em terreno de respeito.

domingo, 19 de maio de 2013

reclicar

quando se tenta dizer o que vai na cabeça sai algum lixo, frases a despropósito. Não tem mal. a melhor música tem algo disso. a melhor amizade também. a perfeição é muito chata. a vida é tão imperfeita.

fazer a praia

Alice gostava de fazer a praia. Ia sempre aos quatro cantos perceber a dimensão e depois ia molhar os pés. Nada superava a sensação de vida de uma água gelada no corpo. Se andasse meio morta, tomava banho. Metia-se lá dentro. Quando saía, sacudia-se que nem uma cadela e ganhava alma nova. Podia não durar muito. Não interessa. Nem sempre o que dura vale a pena. E a pena é muito relativa.

ver-te chegar

Sonhei contigo. Estavas igual. Tinhas os músculos com o desenho de antes e olhavas para o meu pescoço da mesma maneira, inclinando a cabeça. Desviavas o cabelo para passares o dedo. Pedia-te para te afastares. Vai, vai. Tinha de treinar pensar-te na tua ausência. Queria ver-te chegar. Fechava os olhos quando te ias embora. Ficava em pausa e vestia a tua camisola antes de adormecer.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Felismina

Felismina andava à procura dos seus defeitos, perseguia-os. a culpa era tanto dela, que se castigava por dá cá aquela palha. Um dia, certa vez, naquele mês, cansou-se da busca e viu, finalmente, de outra maneira. Não eram defeitos. era só uma perseguição estéril. e o cansaço desapareceu.

beleza

a beleza da sinceridade não se supera. não há vestido nem verso mais marcante. pele em formato palavra. Cheia de sinais, pequenas sardas. Um grão de areia na Adraga, praia escondida entre montanhas. A beleza da sinceridade descobre árvores onde outros vêem jardins.

domingo, 12 de maio de 2013

viagem de comboio

é porque não somos simples que procuramos a simplicidade.

terça-feira, 7 de maio de 2013

cães de louça

A colecção de cães de louça não é bem uma colecção. São cinco, ao todo. Vieram parar cá a casa por acaso. Cada um traz uma história. Nunca se partiu nenhum, talvez por estarem fora dos aposentos reservados à cozinha. O maior foi oferecido aos meus pais no gozo e reencontrado exactamente na véspera da mudança de casa. O que veio de Moscovo foi comprado enquanto decorria um assassinato à porta do apartamento onde estava instalada. Quando cheguei à entrada do prédio, havia um lago de sangue e salpicos em redor. Subi rapidamente as escadas. Energicamente, de dois em dois degraus. Não quis usar o elevador. A meio caminho, um vizinho nitidamente perturbado, de mãos trémulas, fez sinal, levando o dedo à boca, para me calar. Sentada no sofá extra mole da sala retirei o papel vegetal do embrulho do cão e dei por mim a pensar na morte e na sorte que foi ter estado presa uma hora e meia na loja de artesanato. Primeiro, tive um bloqueio e não me conseguia decidir. Tinha planeado uma compra e não duas. Depois não encontrava o cartão visa em lado nenhum.

torradeira Crussel

faço café numa italiana para que o cheiro do café me encha a casa. antes de começar tem de haver uma introdução. não a passo à frente. façam-se torradas a seu tempo.

acordar

não vieram os melros cantar para ao pé da minha janela. acordei sem pássaros

viu

- tia, a mariana diz que se contarmos até 8 duas vezes em frente ao espelho, aparece o nosso namorado.
- isso não faz sentido nenhum. isso não faz sentido nenhum.
- pensei em ti e foi o que lhe disse (gesticula, abre os braços e as palmas da mão, estica os dedos).
- e ela? (a andar em passo lento no jardim fernando pessa)
- que viu o namorado, o rodrigo do 2.º A

casa da lista amarela

Era a primeira vez que passava férias acompanhada de duas amigas. Metiam-se na cama entre as 22 e 23 horas, depois do regresso do café da aldeia. A pedalar, iam de bicicleta, era uma galhofa pegada. O concurso da melhor piada. Bocas sobre colegas de escola, namorados improváveis, professores desajeitados ou segredos das festas de garagem. Interrompiam-se, riam-se muito. Faziam imitações. À terceira noite, conhecerem os amigos do Alfredo, o neto do vizinho da casa azul, que vivia no Porto. Duas noites depois, estavam a combinar um encontro, por volta da meia-noite, no pinhal colado à placa de entrada para a aldeia. Imitando as séries televisivas e os livros da Patricia e dos Sete, os Cinco eram para miúdos, planearam ao detalhe o encontro nocturno. Alguém bateria na janela três vezes e faria depois uma pausa. Dez segundos depois, repetiria os toques e sumiria. Saltariam então da janela em pés de veludo. Assim foi. O coração de Luisa nunca bateu tão forte. Nem na piscina, após as provas de bruços do segundo período. Teve de o apertar ao peito. Para se acalmar, mas também com intenção de abafar o som. Havia pouca claridade na estrada, as árvores ganharam cinzento. Ouvia-se o latido do cão vindo da casa de lista amarela. Não se lembra da temperatura, por isso não estaria frio. Mês de julho. Vestiam apenas camisolas largas, pintadas durante a tarde, depois do banho no tanque, que podiam ser dos irmãos mais velhos, não chegavam aos joelhos. Deram passos largos e saltaram estrada fora. Rodopiaram e dançaram para afastar o medo.