segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O mistério da torrada

"Porque não me contaste que afinal ela tem um fundo mau?" Fechando um pouco os olhos e abanando a cabeça, Josefina disse-lhe: "Toda a gente sabe, não há quem não tope". "Mas tu tens factos, é diferente", respondeu Dulce. Josefina disse-lhe que há assuntos que só conta uma vez. Precisa de dizer, deitar para fora, mas, feito isso, não consegue repetir a história. E mais: as temáticas têm amigos determinados. Alguns só a ouvem falar de trabalho. Há um único a quem consegue falar de sexo sem ser de forma abstracta e indo além das massagens. Do que mais a perturba e inquieta dá sinais à Catarina. Para o romance que ainda só corre na sua cabeça, escolhe o João, o mais inteligente e inseguro dos amigos. Tem sempre uma história mais complexa do que a sua. Lazer, beleza e estilo de vida é com a Marta. "Senão estás bem, põe-te bem". As questões profissionais exigem uma conversa a sós com a Paula: mais assertiva e justa é difícil. "Enfim", disse então, "se quiserem contar a minha história terão de falar com uma dúzia de pessoas. É nelas que deixo o meu diário". Pegou então na parte da torrada que sobrava e atirou-a à parede. Estavam na esplanada do café Royal, onde há alguma privacidade para isso. Dulce ficou espantada: "Então, estás a passar-te!" Josefina riu-se: "Só não falem com o Artur, ele sabe que não pode contar de forma alguma a história da torrada".

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Alice no jardim

Deixou para trás à maior velocidade que podia o trabalho. Assim que fechou a porta do prédio, começou e pensar no que tinha pela frente: um jantar amoroso com alguém que ainda não sabia se o era. Amoroso, claro. É um jogo que às vezes custa jogar. Dar ou não o melhor, fingir ser mais meiga do que se é, esconder inseguranças não mexendo muito o corpo. Ultimamente, cada encontro era um teste. No fim, também ela se avaliava. A personagem que saia dali era por vezes tão estranha. Outra das coisas que descobriu recentemente é que perdia um quilo e meio por “date”. Tal era o desgaste. Enquanto subia a Rua do Carmo, pensava que não lhe apetecia nada passar por aquilo tudo. Viu os “borboto” deitar fogo pela boca em acrobacias fraquinhas e sentiu o calor como um sinal de tragédia. Iria transpirar das mãos? Descobrir que preferia sempre dormir com o Rui, apesar deste ter namorada, e de pouco futuro poder esperar dessa relação? Chegou à Praça Luís de Camões e encontrou o Hugo Castro, um ex-namorado. Falou-lhe a correr, com medo que este percebesse que estava nervosa. Logo naquele dia é que ele queria conversa. Teve de ouvir a pergunta que lhe dá urticária: “Estás bem? O que tens feito?”. Tudo conversa na treta. Foi até ao jardim de São Pedro de Alcântara e, já exausta, sentou-se. Com a cidade à sua frente, não resistiu e ficou ali. Quietinha. Quando olhou para o relógio, tinha passado uma hora e faltado ao jantar. Deu-se por vencida. Nem sabe bem com que ocupou a mente naquele período, mas que tinha ficado bem disposta, tinha. Foi apanhar o autocarro e apareceu-lhe uma viatura sem ninguém lá dentro. O motorista sorriu-lhe. Alice riu-se sem mostrar os dentes. Quando estava prestes a chegar à paragem de autocarro onde saia, virou-se para o motorista e perguntou: “Porque é que ninguém mais apanhou o autocarro?”. Ele respondeu: “O autocarro estava fora de serviço, acabava o percurso na paragem seguinte, mas como entrou tão confiante, não me atrevi a dizer nada e esperei que dissesse alguma coisa. Teria de lhe gritar aí para trás para me ouvir!”. Ela disse então que podia ficar ali e saiu.