segunda-feira, 3 de novembro de 2014

canta por aí

como canta bem aquele papagaio. adoptei-o, mesmo sem nunca o ver. Não importa se é feio. Feio é o que repugna e ele jamais repugnará. Foi banda sonora das noites quentes. adoptei-o mas nunca lhe pus o olho em cima. Como canta bem e enche o beco maior das redondezas. enche a rua, o bairro. não importa se é bonito. canta, afinado, melodias diferentes a cada dia, por vezes deixa notas perdidas, deixando o desfecho por fazer. falta o quanto falta. Imagino-o ternurento.

vai lá

conseguiu colocar a mão inteira dentro da boca. O mundo dentro da boca. as impossíveis que morrem a cada dia que passa, os possíveis que desvanecem, a esperança matemática

domingo, 2 de novembro de 2014

depois de

finalmente, o frio. Finalmente, os dias curtos para os pensamentos compridos. finalmente, as malas e chapéus. finalmente, a dança lenta. finalmente, um copo de vinho do douro como deve ser. finalmente, outra década, cheia de árvores e vistas largas. finalmente, uma certeza de um milímetro.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

novo banco

Preciso tanto de um banco de jardim portátil

o contrário de surda

hoje apetecia-me ser surda. O barulho dos carros entrava-me ouvidos dentro, sentia o trânsito a pulsar dentro de mim e qualquer som de buzina parecia um ataque, sem que me conseguisse defender. A vida de fora veio de enxurrada via canais laterais, ocupando grande parte do espaço mental. Os pequenos vazios estavam a ser invadidos. Os grandes vazios tinham sido substituídos pelos pequenos vazios. A substituição foi-se fazendo nos últimos anos, à medida que fui ouvindo melhor. tenho este problema e não sei como lhe chamar.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

corrida de barco

deixo-te uma folha em branco para nela imaginares um barco de corrida. Coloca-a na banheira e vê para onde vai. estará mal feito se não sair do lugar. o lugar não se quer mal feito.

intenso

só amo o que conheço

alma do sapato

não posso cortar-lhe o salto, insistia o sapateiro. Mas se lhe peço para o fazer pela segunda vez. A alma do sapato não aguenta, explicou. A meio do sapato existe uma estrutura, chamada alma do sapato. cortando o salto, fica espaço em falta. e o vazio fica sem nada. falta-lhe apoio. Ora, esta alma do sapato em particular precisa de um salto. pode ser mais pequeno, mas tem de estar lá. a alma do sapato não cede a vontades do dia.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

café

que belas
são as manhãs
as tardes são agitadas
as manhãs não querem
nada com ninguém
deixam cada um
à sua mercê
só,
em cima dos sapatos
enquanto as
ideias pairam
solteiras
não bailam
mas fazem alongamentos
lentos
até ao café
e assim chega a tarde
voilà

nódoas

a toalha ficou cheia de nódoas
o vinho entornou
a telha caiu
e partiu-se
deu lugar a pedaços
o chão da cozinha
estava manchado
bolas espalmadas
o contrário
do dia imaculado
cheio de vento
das exposições de roupa
pendurada em molas
amarelas
nas varandas
lavada de fresco
a cheirar a novo
a limpeza
antes da
corrida
depois de mim

quinta-feira, 29 de maio de 2014

reconciliação

Divorciei-me de mim. Foi duro. Tive de voltar a correr, pensar como se fosse adulta, cortar no chocolate. No prato, apenas saladas. Aguentei-me uns dias. poucos. Pareceram semanas de sete dias de trabalho de enfiada. Estava na altura de vir ter comigo e assim fiz. Não falamos. Ficamos ali.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

laranjas

Tinha uma atracção por salpicos, pirolitos e afins. Pequenos, mínimos, quase nadas. A sua história preferida inclui uma princesa e uma ervilha. A viagem mais marcante contou com o conhecimento de pessoas novas, uma delas quase sem dentes, apenas um na boca inteira, vendedor de laranjas redondas até mais não. Florival, seu nome, mostrava as gengivas, e não terminava as frases. Perdia-se antes da chegada do predicado. Era um falhado, disse. Assumido. Uns são gays, ele era falhado, atirou enquanto guardava a nota de cinco euros. Chegou a viver no Brasil, ainda passou por Angola. Viu gente de todas as cores. Jantou em mesas cobertas com toalhas chiques e talhares de inox. Deitou-se e adormeceu sendo amado mais de uma dezena de vezes. Este era o seu passado. Não teve descendentes. Foi despegando-se dos outros depois da primeira visão. Hoje vive em Silves e vende laranjas.

domingo, 23 de março de 2014

conserto

era frágil
partia-se com facilidade
bastava uma palavra
num tom áspero
um grão de areia
na língua
mas não se sentia
frágil
por dentro
tinha órgãos
sólidos
eficazes
funcionavam
era frágil
partia-se com facilidade
é certo
ficava em pedaços
soltos
um para cada lado
depois, de repente,
compunha-se
não se colava
somente
de cuspe

quinta-feira, 13 de março de 2014

pirolito

Querer que o bom seja muito bom
não é ser exigente
apenas vibrante
de que servem rotinas?
economizam energia
nada mais
meu amor,
não te afogues nelas
acorda, pirolito
que o oxigénio te tome
o cérebro
vai lá correr, mas mais sozinho

espera

chego antes da hora
sempre foi assim
o prazer da espera
do tempo para me concentrar
de parar antes de arrancar
antes do filho

preto e branco

Com um piano à minha frente
tenho de ouvir
contigo à minha frente
tenho de tocar

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

barriga para baixo

verde pinho na camisola. Combina com as férias no campo. o frio daquela manhã. o tempo perdido na aldeia onde não havia relógios. Os telefones ficaram no carro de barriga para baixo. o pequeno almoço improvisado e à base de marmelada. um puro café de cevada.

outra

deixa-te ir. quando deres por ti, és outra.

elogio da metade

Não sei porque queremos tudo se podemos ter metade. A metade da laranja é sempre melhor que a laranja inteira. Os gomos mais saborosos. O dia é bem vindo dividido por partes. Dormimos numa, funcionamos na outra. Percorrer uma avenida inteira é uma canseira. Fazer Moscovo a pé é uma canseira. Queremos respostas absolutas, quando o que fica se reduz a uma ideia solteira. Obter metade é ganhar a melhor parte.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

bem cozido, sff

tomei banho de chuva e lavei os pés com sopa. também ganhei uma almofada de trigo no dia do meu aniversário. é pequena e pode aquecer-se no micro-ondas. da cozinha ao quarto vai deixando um cheiro a pão acabado de sair do forno.

passagem

antes que a noite caia, levanto-me para ir. não quero ser esmagada pelo temporal. ficar espalmada. fujo para um canto seguro. escondo-me dos relâmpagos. da luz. prefiro o lusco-fusco ao fundo do túnel.