domingo, 28 de novembro de 2010

Que se lixem!

A troca de ordem numa fila de Minipreço trouxe aos meus ouvidos uma conversa entre tuas amigas. Ficaram atrás de mim e falavam como se mais ninguém as estivesse a ouvir. Uma delas sugeria à outra participar na edição portuguesa do "The biggest loser". Dizia-lhe que seria a sua oportunidade para perder peso com os métodos e o acompanhamento certos. "Não sei, não gosto dessa exposição!", respondia. E a cada novo argumento, uma resposta de desdém. A miúda de cabelo louro escorrido, com base um número acima do seu tom de pele, o erro de maquilhagem mais comum entre as espanholas, insistia: "Aproveita a oportunidade, vai lá!". A um silêncio, veio juntar-se a explicação. "Ontem fiquei em casa do Rui, mas não sei se devo continuar este caso. Só gosta de mim para a brincadeira! O Hugo tem mais a ver comigo". Seguiram-se risinhos marotos e nova pausa. Nessa altura, a minha cabeça girava automaticamente para poder ver quem falava. Da mesma boca saiu ainda: "Enquanto andar com os dois, com o Rui e o Hugo, não posso participar num programa de televisão, que se lixem os 157 quilos!".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Totós

Felismina sempre gostou de totós. Um dia, em conversa com o Rodrigues, viu-se obrigada a explicar o porquê de tal capricho. Depois de voltas e mais voltas no discurso, pressionada pelo amigo que um dia quis ser psicólogo e que por isso ia praticando com as amigas, deu por si a concluir: "Quando se vai para a cama com alguém pela primeira vez há sempre um certo embaraço, falta à vontade, mas é também isso o motor da ligação". "E então?", perguntava Rodrigues. "Atrai-me esse caminho, essa rua estreita para chegar à intimidade".

Nem a um gato

"Não queria que ele me tivesse contado a verdade, toda a verdade como dizem". As palavras chegavam às frases em atropelo. Arminda falava rápido. "Se ele não tivesse dito tudo o que lhe passava pela cabeça, tinha ficado mais um pouco para ver o que aquilo dava, se crescia, se minguava". Helena interrompeu-a: "Esses são os gajos crianças. Conheço o tipo. Não chegaram a aprender como viver relações de proximidade. Se eu dissesse tudo o que me vem à cabeça, bem, seria bonito!" Arminda concordou. "É capaz de ser isso! Achas normal que alguém te diga que começou, estranhamente, a sentir vontade de conhecer outras pessoas para poder perceber se é contigo que quer ficar?"Helena olhou-a com compaixão. "Claro que não se pode dizer isso a ninguém, nem a um gato!". Arminda estava tramada, pensou, mas não o disse. "O Miguel estava a revelar-se um autista imaturo e o pior estaria para vir", pensou. Arminda, por seu lado, tinha uma ideia fixa. Já a tinha levado com ela para aquele café, convertido, sem darem conta, em lanche ajantarado. "Helena não perceberá os meus dramas, sei disso, mas vai apoiar-me".

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O segredo dos seus olhos

Elisa tinha insistido muito com o Manel para ele ir ver o "O segredo dos seus olhos". O filme estava desde a Idade Média no cinema King e, claro, já se tinha interrogado com os motivos de tanto sucesso. Escolheu o dia em que tudo lhe tinha corrido mal para ceder. Comprou o bilhete, sentou-se, reparou na plateia generosamente mais velha e ficou à espera. Os diálogos eram poupados e certeiros. Mas facilmente percebeu o recado da Elisa... o amor que se fez esperar, as frases finais: "Tens a consciência de que vai ser difícil!". Manel fixou-se, porém, noutra história paralela. Na do homem que morreu, foi morrendo, anos a fio, enquanto vivo. "Será que não se pode dar a volta diante da pior tragédia?", pensava, pensava. Quando chegou a casa, e disse que tinha ido ver o filme, Elisa perguntou: "Gostaste, não gostaste?". "Sim, mas não me apetece falar disso. Não me apetece falar". Manel foi depois à garagem buscar o caixote de fotografias velhas e trocou um noite de internet por um serão de recordações.