segunda-feira, 30 de abril de 2007

Bolos

Quando se passa pela porta não se consegue resistir. É uma tentação. Trava-se o passo e inspira-se, enche-se os pulmões daquele ar que cheira a bolos bem cofeccionados, feitos com bons ingredientes. Justina andou mesmo uns passos para trás. "Não, a vida são dois dias, e não podemos deixar que nos escape o que contenta o nosso nariz", pensou. Conseguia perceber o desenho ondulado em ziguizague daquele agradável perfume que vinha não só da cozinha como dos pastéis expostos. O ziguezague das bandas desenhadas, perceba-se. Aquela pastelaria marca uma manhã. Torna-a diferente. Os empregados são uns cromos, adivinham-se personagens insólitas que podiam ter vida num filme de Pedro Costa. A mais nova tem um dente quase negro no canto da boca, que mostra quando ri, de cinco em cinco segundos, pois acha graça a quase tudo. O senhor mais velho tem um olho muito maior do que outro e está sempre a repetir o que dizem da cozinha: "Mais um prato de carne com fruta, segue, segue". Parece um robot com defeitos exteriores, mas eficiente. Não se consegue imaginá-lo com cara de apaixonado. O mais alto obedece sem nada dizer, parece uma pessoa gelada. Daquelas a quem apetece acender um isqueiro perto do rabo para ver se sempre sente alguma coisa. Ao quadro humano cinzento pálido, sobrepõe-se o cheiro dos bolos e os clientes. As personagens principais são os bolos e os clientes. Eles devoram-nos como se aquele momento fosse irrepetível. Há quem feche os olhos por fracções de segundo. Justina comeu dois bolos e levou um deles na mala, com o embrulho ligeiramente aberto, para que dele pudesse sair um bocadinho do aroma. Enquanto durou, foi bom.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Banho quente

Depois de muita conversa deitada fora, esgotaram-se as palavras. Não conseguiam dizer mais nada. Ele calou-se e olhou para ela à procura de qualquer coisa. Do lado dela, o olhar descaiu em direcção à calçada portuguesa. “Tantos quadradinhos entre pés!”, pensou. Mas não havia mais nada a dizer. A aflição daquele silêncio bloqueou-lhe a acção. Só andava. Ele mantinha-se calado, a seu lado, ligeiramente à sua frente. Do outro lado, estava o Tejo. Quando ela se apercebeu disso – que ele ia um bocadinho de nada à sua frente – acelerou o passo. Ele seguiu-a. Deram por si a correr. Um atrás do outro. Energicamente. De repente, pareciam animais selvagens. Quando ele se deu por rendido, parou, inclinando-se para a frente, levando a cabeça ao encontro dos joelhos. Ela imitou-o. Estavam exaustos, mas aos poucos começaram a falar sem entraves alguns. As palavras voltaram desprendidas. Escorregavam. Deixaram de estar nervosos e o dia acabou com um banho quentinho.