segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Caixa de fruta

Na escola, quando lhe pediram para se desenhar, fez uma árvore. Arminda optou por um tronco alto, esguio, sem se esquecer das raízes. Deixou-as visíveis. Na altura, a professora fez-lhe um reparo duro e inesquecível. Se ficas, não vais, não passeias, não voas. Arminda nunca tinha pensado no movimento, no que este significava concretamente. Ficou dias entretida com aqueles pensamentos, as aves ganharam o foco da sua atenção, de cima viam o que ela nunca veria, e não pareciam preguiçosas, não paravam quietas. Daí nasceu uma pequena máxima: tudo muda. Daqui a segundos pode ser outra coisa. Basta um vento. Uma caneta Bic laranja. Uma caixa de fruta que lhe entre pela casa adentro.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Helicóptero

Tinha passado mil vezes naquela rua. Rua acima, rua abaixo. Há anos que o fazia. Nunca a tinha visto. Naquela tarde viu-a. A loja era discreta e a porta mal se via. Um helicóptero na montra chamou-lhe a atenção. Entrou. Lá dentro, as prateleiras apresentavam aviões, helicópteros, iates, "um barco do amor", como o da série dos anos oitenta, automóveis. Todos eles funcionavam. O vendedor explicou-lhe: "É uma loja de brinquedos para adultos". Começou então um novo filme dentro do anterior. "Não me posso queixar da crise. Um cliente novo volta sempre". No outro dia, contou, um senhor de uma só vez comprou 20 exemplares de carros, motas e aviões. Tinha tido um incêndio na garagem e antes de pensar nas obras a fazer, veio a correr à loja para reaver os seus modelos de eleição. "Como se pode explicar tal incoerência?", perguntei. "Vou mostrar-lhe", disse. Agarrou no helicóptero e em dois minutos colocou-o a voar. O aparelho parecia real. Levantou voo como fazem os que não são para brincar. As duas pessoas que chegaram entretanto também se calaram. Fez-se silêncio. Todos se focaram nas hélices. Ele já estava fora do chão. Todos nós ficámos com os pés fora do chão. "Está a ver, quando se olha para um helicóptero em voo não se pensa em mais nada. Os adultos precisam disso".

domingo, 12 de dezembro de 2010

Dona teresa

As vistas eram largas naquele apartamento da Avenida Estados Unidos da América. Podia ver-se a cidade em tamanho grande, Lisboa em 360 graus. Do aeroporto, ao Cristo Rei. Sara arquivou aquelas imagens. Pestanejou entre elas, como se de um registo fotográfico se tratasse. Depois de um jantar saboroso, a malta sentou-se na varanda e ninguém se queixou do frio, apesar de se estar num nono andar, em Dezembro. Fumou-se e bebeu-se. Os gins perderam para os vodkas. Primeiro falou-se de adopção. Depois, quando a conversa entrou em desalinho, disseram-se muitos disparates. Pelo meio andou-se de baloiço - havia um na varanda - dançou-se na cozinha. Sara dançou sozinha, retirada, uma música calminha. Também na cozinha, uma das paredes era envidraçada. Sentia-se ali com um pé na rua. E pensou no Pedro. Pensou no quanto ele iria gostar de estar ali. Tinha a certeza disso e se há coisa que a Sara não é, é uma mulher de certezas. Por isso era tão tolerante. No regresso à varanda do convívio, Afonso falava da dona Teresa. Dona Teresa para aqui e dona Teresa para acolá. Duas das pessoas presentes sabiam muito bem quem era a dona Teresa. Para Tomás, tratava-se de uma pessoa insuportável. Não respeitava quem estava a escrever na redacção. Entrava por ali adentro, sem aviso, com o aspirador. Usava-o como se fosse uma arma e começava a disparar. Um incómodo. A melhor história acerca da dona Teresa foi contada pelo Afonso. No ano passado, na altura da passagem de ano, Afonso abraçou-a, e enquanto lhe desejava bom ano, na parte do afastamento dos braços, deu-se um beijo na boca. "Beijaste a dona Teresa?", perguntou Tomás, atónito. "Beijei".

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O terceiro elemento

Madalena tinha uma teoria. Quando há uma ligação entre duas pessoas cria-se uma espécie de terceira entidade. Chegado aqui, ou se sopra e a bola de sabão lá vai. Ou se põe o dedo e ela cai. No início é tudo muito frágil.

Estás a gostar do bolo?

Sem se dar conta disso, Matilde punha as pessoas à prova. Em conversa com o Gonçalo, percebeu que o procedimento vinha dos seus tempos de escuteira, da infância. "Bem, como nunca pensei nisso, assim, objectivamente", disse, usando as palavras de forma espaçada, em ritmo lento. Inspirado, certamente por causa do bolo de maça quentinho, acabadinho de fazer, Gonçalo esticou-se mais um bocadinho, lembrando a Matilde o seu pessimismo preliminar em relação a qualquer novo interesse. "Isto não vai dar em nada. Vou só confirmar que não temos nada a ver um com o outro!", reproduziu, imitando-a na forma de falar. Matilde mudou de assunto: "Estás a gostar do bolo? Tem pouco açúcar?". "Esta óptimo. Posso comer mais uma fatia?". Entretanto, ficou cabisbaixa. E respondeu: "Claro. Ele nem está grande coisa, devia estar um bocadinho mais húmido e ligeiramente mais crocante em cima. Não está grande coisa!"

domingo, 5 de dezembro de 2010

Caiu-lhe a ficha

Joana decidiu que era desta que iria fazer psicoterapia. Não conseguia dar o salto. Enquanto estava com os pés fora do chão, instantaneamente apaixonada, deixava-se levar. Sentia-se capaz de conquistar o Norte de África aos mouros. O seu cérebro parecia dominado por aquele estado de graça e tornava-se mais feminina e sagaz. O problema dava de si, quando chegava a hora de dar o salto. O salto para um namoro. Interpretava qualquer pequena quebra, falta de entusiasmo, como uma desilusão e rapidamente desistia antes de pôr o pára-quedas às costas. Por isso, viveu paixões, viveu. Esgotou-as.

Fala e mata

De há três meses para cá, João começou a sair mais vezes com a Maria. Foram-se aproximando. O sair mais vezes traduz um café de 15 em 15 dias, o que é uma média razoável sabendo nós que viviam os dois em Lisboa. Na outra noite, deu-se um deslize. Maria desequilibrou-se no degrau da porta de sua casa e agarrou o João pelo pescoço. Depois, beijaram-se. As bocas estavam mesmo ali. João correspondeu bem. Foi meigo. Até aqui, nada de extraordinário. No dia seguinte, quando a Maria telefonou, o João disse-lhe que tinham de falar do que se tinha passado. Segundo a Carlota, a quem a Maria ligou a contar e a pedir conselhos, era um péssimo sinal. Se tinham de falar do que aconteceu, seria para matar a história. Depois, o João foi adiando o encontro. Outro mau sinal, apontava a Carlota. Entretanto, passaram-se dois meses. Quando o João encontrou, por acaso, a Maria no café do Maria Matos, não teve alternativa se não ficar mais um pouco para falar com ela. "Então?", perguntou a Maria. "Tudo poderia ser de outra forma, mas sou gay!", disse o João. "Porque não me disseste?". Estava indignada. "Contigo sou gay!". "Comigo?". Com um olhar firme, o João tentou explicar: "Já estive com uma miúda com quem não fui gay!".

Vai tirando a roupa

Catarina guardou as melhores frases. O que de melhor lhe haviam escrito. Algumas delas eram versos soltos. Outras meras manifestações de bem estar. Naquela tarde de pouca luz, resolveu arrumar gavetas e enfiar-se dentro da sua cabeça. Foi à caixinha de cartão pardo e retirou de lá os papelitos. Alguns estavam velhos, encardidos. Quando encontrou a post it, ligou-se de imediato ao seu passado com o Pedro. Numa tarde de inverno, ele havia-lhe escrito: "Tu és o meu aquecedor!". Em tom diferente, se apresentava a observação do Tiago: "Adoro a forma como vais tirando a roupa!". Mário utilizava uma lógica infantil: "Tenho o peito inchado, o coração cresceu". Do António só poderia ter saído uma ideia assim: "Quanto mais gosto de ti, menos gosto de mim". Uma das suas declarações de amor preferidas não aparecia, não aparecia, não aparecia. Era a do Rui. Onde está o pedaço de jornal onde ele escreveu aquilo? Não estava. O Rui tinha-lhe escrito qualquer coisa próxima disto: "Antes um dia bem passado contigo. Sempre antes um dia bem passado contigo."

domingo, 28 de novembro de 2010

Que se lixem!

A troca de ordem numa fila de Minipreço trouxe aos meus ouvidos uma conversa entre tuas amigas. Ficaram atrás de mim e falavam como se mais ninguém as estivesse a ouvir. Uma delas sugeria à outra participar na edição portuguesa do "The biggest loser". Dizia-lhe que seria a sua oportunidade para perder peso com os métodos e o acompanhamento certos. "Não sei, não gosto dessa exposição!", respondia. E a cada novo argumento, uma resposta de desdém. A miúda de cabelo louro escorrido, com base um número acima do seu tom de pele, o erro de maquilhagem mais comum entre as espanholas, insistia: "Aproveita a oportunidade, vai lá!". A um silêncio, veio juntar-se a explicação. "Ontem fiquei em casa do Rui, mas não sei se devo continuar este caso. Só gosta de mim para a brincadeira! O Hugo tem mais a ver comigo". Seguiram-se risinhos marotos e nova pausa. Nessa altura, a minha cabeça girava automaticamente para poder ver quem falava. Da mesma boca saiu ainda: "Enquanto andar com os dois, com o Rui e o Hugo, não posso participar num programa de televisão, que se lixem os 157 quilos!".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Totós

Felismina sempre gostou de totós. Um dia, em conversa com o Rodrigues, viu-se obrigada a explicar o porquê de tal capricho. Depois de voltas e mais voltas no discurso, pressionada pelo amigo que um dia quis ser psicólogo e que por isso ia praticando com as amigas, deu por si a concluir: "Quando se vai para a cama com alguém pela primeira vez há sempre um certo embaraço, falta à vontade, mas é também isso o motor da ligação". "E então?", perguntava Rodrigues. "Atrai-me esse caminho, essa rua estreita para chegar à intimidade".

Nem a um gato

"Não queria que ele me tivesse contado a verdade, toda a verdade como dizem". As palavras chegavam às frases em atropelo. Arminda falava rápido. "Se ele não tivesse dito tudo o que lhe passava pela cabeça, tinha ficado mais um pouco para ver o que aquilo dava, se crescia, se minguava". Helena interrompeu-a: "Esses são os gajos crianças. Conheço o tipo. Não chegaram a aprender como viver relações de proximidade. Se eu dissesse tudo o que me vem à cabeça, bem, seria bonito!" Arminda concordou. "É capaz de ser isso! Achas normal que alguém te diga que começou, estranhamente, a sentir vontade de conhecer outras pessoas para poder perceber se é contigo que quer ficar?"Helena olhou-a com compaixão. "Claro que não se pode dizer isso a ninguém, nem a um gato!". Arminda estava tramada, pensou, mas não o disse. "O Miguel estava a revelar-se um autista imaturo e o pior estaria para vir", pensou. Arminda, por seu lado, tinha uma ideia fixa. Já a tinha levado com ela para aquele café, convertido, sem darem conta, em lanche ajantarado. "Helena não perceberá os meus dramas, sei disso, mas vai apoiar-me".

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O segredo dos seus olhos

Elisa tinha insistido muito com o Manel para ele ir ver o "O segredo dos seus olhos". O filme estava desde a Idade Média no cinema King e, claro, já se tinha interrogado com os motivos de tanto sucesso. Escolheu o dia em que tudo lhe tinha corrido mal para ceder. Comprou o bilhete, sentou-se, reparou na plateia generosamente mais velha e ficou à espera. Os diálogos eram poupados e certeiros. Mas facilmente percebeu o recado da Elisa... o amor que se fez esperar, as frases finais: "Tens a consciência de que vai ser difícil!". Manel fixou-se, porém, noutra história paralela. Na do homem que morreu, foi morrendo, anos a fio, enquanto vivo. "Será que não se pode dar a volta diante da pior tragédia?", pensava, pensava. Quando chegou a casa, e disse que tinha ido ver o filme, Elisa perguntou: "Gostaste, não gostaste?". "Sim, mas não me apetece falar disso. Não me apetece falar". Manel foi depois à garagem buscar o caixote de fotografias velhas e trocou um noite de internet por um serão de recordações.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Cinturinha

Fui à missa, rezei pela alma daquele amor e levei-o ao cemitério. Depois, sem que ninguém visse, entre duas campas limpinhas, deixei cair o cinto. Ficou ali. Ele adorava a minha cintura fina e por isso me tinha oferecido aquele cinto.

Extraterrestre

Teresa tinha um problema. Apesar dos filhos, da casa paga, do emprego de prestígio, não conseguia afastar de si uma certa tristeza. No outro dia, quem reparou nisso foi o seu filho. Na esplanada a pé de casa, Rui disse-lhe: "Mama, tens de sair com os teus amigos. Nós já somos grandes, ficamos com a vizinha no sábado. Tens de te divertir!". O conselho do filho perturbou-a. Não só pelo seu sentido de observação, e isto pela positiva, mas por a declaração trazer ao de cima um seu fracasso. Depois do casamento falhado, deparava-se agora com uma pessoa que não tinha sabido dar a volta à sua vida. Resolveu então fazer alguma coisa. Fez uns telefonemas à moda antiga - ainda não tratava o Facebook como aliado de combinações - e na sexta-feira seguinte tinha um programa a cumprir: jantar de amigos e copos. Lá foi. No dia seguinte, ligou à Rita a contar-lhe o que se tinha passado. "Não gostei nada. Senti-me uma extraterrestre".

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Declaração amigável

Quando se sentia zangada com a vida, entre as muitas coisas que gostava de fazer, estava uma ida à oficina preferida para lavar o carro. Adorava lavagens automáticas. Naquele dia, Josefina estava de ressaca (e ela sabia, tinha concluído de uma conversa com uma amiga, que no dia seguinte era uma condutora mais perigosa do que no dia em que se enchia de copos) e lá foi. Deixou-se levar pelo automatismo da máquina, assistiu com prazer à invasão das gotas de água no pára-brisas, extasiou-se com a sucção do aspirador, e saiu da garagem com o seu volvo mais lavadinho. Poucos minutos depois, ainda estava a escolher o tema número 11, o ideal para a banda sonora daquele momento, quando ouviu um estrondo. Bateram-lhe no carro. Ela estava bem, pensou em primeiro lugar. Quando saiu, veio ao seu encontro uma figura de pijama e chinelos, com uma barba rala. Ele deu-se como culpado. Num ápide, como se percebesse bastante do assunto, apareceu com uma declaração amigável. Preencheram os papéis, trocaram números de telefone e ela não resistiu a perguntar-lhe: "Passa-se alguma coisa de especial, por causa do pijama... dos chinelos?". De repente, como que desarmado, Miguel, entretanto devidamente apresentado, responde: "Ia só passar na rua da minha ex-namorada".

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sumo de laranja

Quando a Alice conheceu o João, ele não podia ter a vida amorosa mais enrolada. O João namorava com a Luísa e tinha dado os primeiros passos em direcção à Carla, que trabalhava com ele. Ela era enfermeira e ele médico e calhou terem de trabalhar juntos em casos difíceis. Nos cuidados intensivos, estão sempre a afastar a morte dos corpos doentes e são levados a olharem-se muitas vezes, a fixarem o olhar. Isso estava a acontecer com frequência. E no outro dia, diante do cansaço do João, a Carla atirou uma frase certeira. "O que nos vale é isto. Parece que estamos a contrariar a natureza das coisas". Daí às risadas para descomprimirem foi um passito. Bem, Alice sabia que estava a entrar num filme cheio de histórias cruzadas e mal resolvidas, embora não soubesse exactamente quais no momento, mas ainda assim, não resistiu ao apelo. O que o João tinha que os outros não tinham era uma sinceridade espremida. Falava como se as palavras fossem sumo. Dizia muito bem o que pensava. Era exacto. E ela gostava da forma como ele pensava. Nunca sentiu a namorada como uma ameaça, contou-me ela. E quando o João lhe falou da Carla, passou-lhe pela cabeça que nascesse dali um caso, hum, um caso de batas e lençóis usados em cenário de hospital. E continuou a sair com ele, só para o ouvir e para se ouvir. E continuou a sair com ele. Ficava nervosa antes dos encontros, mas durante era tomada por uma grande tranquidade. Um dia ele disse-lhe: Arrumei tudo, só estou calmo contigo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Correr a maratona


Susana estava arriada. E Felismina aussi. A conversa matinal fê-las rir. O que as unia naquele momento é que tinham andado as duas, sensivelmente na mesma altura, com dois Pedros. Foram oito e nove meses em que quase não se falaram. Encontraram-se no outro dia numa passadeira e a seguir fez-se esta conversa no msn.
1- bom dia! dormiste bem?
2- Dormi. Sonhei com ele. Um sonho fixe. E tu, como estás?
1- Só tu, no meio da confusão, encontras sempre qualquer coisa... Estou mais ou menos. Emagreci. Essa é a parte boa!
2- Eu estou a tentar aceitar. É a vidinha.
1- Ainda estou muito entupida, mas um pouco melhor... Agora é um dia de cada vez.
2- Não se pode mendigar amor...
1- Exacto
2- O que podemos fazer é tentar dar o melhor de nós: agora se não gostam, paciência!
1- É uma merda, mas é verdade!
2- Talvez não seja mesmo por aí. Podemos estar a ver o que queremos ver...
1- Pode ser, pode ser. às vezes também penso isso.
2- Cometemos erros, sim, cometemos. Fazem parte.
1- às vezes penso se, no meu caso, não foi tudo uma sucessão de equívocos
2- Pois...
1- Ou se fizemos tudo mal.
2- Mas agora é preciso andar para a frente. Custa. Mas é preciso meter na cabeça que se pode tentar de novo. Ter a noção de que o amor pode vir
1- Bem, que energia é essa!
2- Amar até que a morte não nos deixe mais...
1- É o que o meu pai me diz. "Não podes deixar de acreditar!"
2- Vê as coisas pelo lado dos sentimentos, e do que vale mesmo a pena.
1- Não posso estar mais de acordo
2- O resto, peripécias. Estou também a tentar auto-convencer-me, já percebeste... Pensar pelo lado da sabedoria. Ver de longe em vez de sofrer vendo de perto.
1- Nota-se...
2- A vida às vezes é uma merda, mas antes isto que descobrir um cancro nos ovários! ahahah
1- Isso é que não!
2- Ou então no colon. Ter de andar a mostrar o rabo aos médicos, a toda a gente.
1- Isso não era mau!
2- Ahahahah!
1- Enganei-me.
2- Eu percebi!
1- Tu não existes!
2- Sempre achei os rabos cómicos, hehe
1- Eu gosto de rabos.
2- Mas andar a levar com tubos pelo rabo a cima não deve ter piada nenhuma!
1- Não necessariamente pela veia da comédia.
2- ahahahah
1- Estás com uma energia... Não sei se é bom ou mau sinal.
2- É verdade. Sinto-me com forças para correr uma maratona.
1- Ui! Bem, tenho de trabalhar.
2- eu tb

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Nuvem em cima da cabeça

Silvia vivia mais um dilema típico seu: continuar a fazer de parva, de desentendida, para ver o que aquilo dava, ou saltar fora, sem rede. O tempo das conversas soltas na cama deram lugar a monólogos sem direcção. Luís começou a poupar palavras como se economizasse dinheiro em tempo de austeridade económica. E ela resolveu ser entertainer sem plateia. Contava as suas histórias, ao seu ritmo, gracejava se fosse caso disso, e mesmo que ele se mostrasse absolutamente desligado, continuava. Desde o despedimento do Luís que este mudou, e a relação deles foi-se ressentindo. O novo emprego, numa agência de comunicação rendia-lhe mais dinheiro, é certo. Mas o Luís deixou de ser a pessoa animada e criativa da altura em que era jornalista e em que ia para os copos. A Silvia chegava dizer que não percebia como algumas mulheres não gostavam de ver os maridos a chegar tarde a casa. Ela adorava. Ele vinha sempre com vontade de a compensar da ausência e normalmente nessas noites havia boas movimentações na cama. O Luís não abusava na bebida, por isso, esqueçam lá o mau hálito e os suores intensos. Não havia disso. Em pouco tempo o Luís começou a viver como se andasse sempre com um nuvem carregada em cima da cabeça. E a Silvia só conseguia ter bons momentos com ele, quando dessa nuvem caía chuva e ele falava, falava. Em pouco mais de seis meses, Silvia deu por si a pensar se estava para aturar aquilo. Aguentar alguém assim por mais um tempo para ver se alguma coisa mudava, se o Luís, sacudido por alguém, sei lá, por um acontecimento qualquer, voltava ao que era ou deixava pelo menos aquele autismo nível cinco. Ou, ir-se embora para evitar aquela dor que é ver um amor esmorecer, ficar moribundo, em coma, a entrar no forno crematório. Claro que a Silvia tentou alertá-lo para o que se estava a passar. Porém, como é costume nestes casos, ele estava cego, preso aos seus problemas e reduziu o resto e ela, principalmente, a uma ninharia. Luís passou, entretanto, a estar sempre cansado para a brincadeira na cama. E ela foi desistindo de puxar por ele. Ainda assim, sentindo aquela relação a desgastar-se, Silvia continuou o seu show off: contava-lhe os momentos cómicos do seu dia, continuava a mostrar-lhe os novos temas descobertos por acaso no Youtube. De falar pouco, a importar-se pouco com ela, fez-se um percurso rápido. Um dia ela sentiu-o tão desligado, tão pateticamente centrado no seu umbigo, e percebeu: o melhor era ir-se embora. E foi.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A minha praia

Ana reparou naquela figura enquanto ele brincava com uma amiga na praia. José provocava a Maria com frases certeiras, roubou-lhe o livro grosso, a que chamou tijolo, e depois fingiu que se deitava em cima da Maria, sobre o seu corpo, sem sequer lhe tocar. Aquela aproximação física, a forma como o fez, despertou-lhe qualquer coisa no cérebro. Maria ria-se sem parar. Notava-se ali uma amizade sólida e viva. Desde aí, Ana passou a seguir-lhe os passos com discrição. Os mergulhos, como José se atirava às ondas, os comentários ditos durante o jogo de cartas, o que falou acerca do stress diário provocado pelo trabalho. Findo o dia de praia, alguém do grupo sugeriu um jantar numa esplanada famosa em Lisboa, por ser um sítio fresquinho mesmo no pico do Verão. Enfim, Ana e José aproximaram-se. Activou-se um íman. Acabaram a noite a conversar no jardim em obras situado perto da casa dele. As três semanas seguintes incluíram vários encontros. Mas Ana descobriu cedo que ele falava pouco na intimidade, transformando-se ela numa tagarela, que até ela própria desconhecia. Pelos vistos, José só era uma companhia animada quando estava entre amigos. Um dia, não aguentou e disse-lhe: "Acho que não estamos na mesma praia".

Boa continuação

Inadequada. A frase não podia ser mais inadequada. Tal como uma vez foi o "olaréquicu" do Diogo, cantado em plena missa, na cerimónia fúnebre do seu avó. Fez eco na igreja. Ouviram-se risinhos! Agora, estava prestes a fazer-se ao caminho do seu carro, deixando para trás as horas de bloqueio, em que o tempo parou. Desliga sempre do seu quotidiano nos funerais. Desta vez, alguém lhe deu os pêsames por engano, lhe apertou a mão por engano, além de lhe ter dito a frase mais bizarra, dado o quadro triste. Ainda se viam as campas por perto e o senhor barrigudo de camisola colada ao corpo, por causa da transpiração, despediu-se com duas palavras: "Boa continuação".

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Querido mês de Agosto

O seu primo mais indie surpreende a cada fala. Bárbara ouvia-o atentamente mais uma vez. Tinha-o o visto ao longe, de pernas ligeiramente abertas e braços cruzados, observando o pesar de todos os que se despediam do ente querido falecido. A conversa deu-se depois, a uns bons metros do portão de ferro do cemitério. Contou-lhe ele que a última vinda a Portugal - vive em Paris - foi para ajudar o Manel, com quem se dá bem desde miúdo e mantém contacto. Veio para o ajudar, pois um amigo comum telefonou-lhe para lhe dizer que o Manel ameaçava suicidar-se por causa da ideia do divórcio e da separação da filha que isso implicava. Não pensou muito, enfiou-se num avião e veio. Passou uma semana com o Manel. Falaram muito. "E o que aconteceu?", perguntou Bárbara. "O divórcio foi para a frente. E a ex-mulher surpreendeu-o em relação à filha. Fez de tudo para que esta se ressentisse o menos possível".

domingo, 1 de agosto de 2010

Jardim da Celeste

Pedro meteu-se na roda da conversa para dizer à Celeste: "A primeira vez que te vi estavas com os olhos colados ao ecrã da televisão a ver bailado. Perguntei-te então se gostavas de ballet". Elevando os olhos, Celeste mostrou-se mais atenta. Prosseguiu o Pedro: "Disseste que gostavas de ser bailarina". Eram dois miúdos. Passaram 30 anos desde esse episódio. Celeste e Pedro pouco se vêem hoje em dia. A conversa daquele grupo tinha começado por aí. Não tem havido casamentos, encontram-se em velórios. Era o funeral de um vizinho comum lá da aldeia. Celeste contou então que levou o filho para o ballet por causa da oportunidade que não teve. Pedro tem duas filhas gémeas que também andam no ballet: "Mariana tem jeito, tem um bom pezinho, segundo diz a sua professora". Celeste está hoje casada com o namorado de sempre, o tal que era alvo de contestação por parte de toda a família. Ricardo fumava, bebia, gostava de farra. E ela passava muitos fins de semana fora com ele. Havia na aldeia quem a visse como uma vadia. Os anos 80 não poupavam as mulheres mais livres. Mas Celeste sobreviveu aos olhares conservadores sem rancor algum. Via-se isso agora. O seu filho, porém, não aguentou a pressão dos amigos e, aos 13 anos, desistiu do ballet.

sábado, 19 de junho de 2010

That´s life

Na tentativa de encontrar o helicóptero, o miúdo levantou a cabeça (ouvia-se o barulho do aparelho a aproximar-se). De seguida, atirou um beijo para o ar e disse:"Adeus Saramago. É a vida!". A irmã que o levava pela mão deu-lhe uma esticadela e apertou-lhe a mão. Eu estava mesmo ao pé, ou à beirinha como dizem lá em cima. Tinha sete, no máximo oito anos e pouco deve saber da obra e muito menos do homem. Mas disse aquilo. Quando liguei a televisão e vi a chegada do corpo embrulhado no caixão, a cena com o gesto do miúdo impôs-se. Como me disseram no outro dia: as pequenas coisas são as que importam, as grandes são para toda a gente.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O triângulo amoroso

Mário apareceu saltitante na caixa do Multibanco. Cumprimentou a Mafalda e começaram logo a falar interrompendo-se pelo meio um ao outro. Observação número um: eram muitos palradores. Conversaram sobre o Jazz ao centro, em Coimbra, da digressão dele pelos Estados Unidos. Enfim, falaram, falaram. Até se balançaram um pouco quando recordaram a ida a Évora. A viagem foi animada, com o carro cheio de gente e os cds do Hugo de música indie. Rita ouvia atentamente. Entretanto, um grupo de três pessoas aproximou-se e uma delas barafustou: "Mas vão ao multibanco ou só estão a conversar?". A resposta do Mário foi certeira: "Não vamos a lado nenhum".

Cartas com números

"Hoje em dia, abre-se a caixa do correio e só se encontram contas para pagar. Cartas de amor, as ridículas, as especiais que nos faziam subir às nuvens em três segundos, são raras. Pode-se usar a net, é certo, mas não é a mesma coisa. Para uns, pode haver aqui uma evolução. Afinal, no mesmo instante sei que a outra pessoa está a ler o que eu escrevi. A tensão em tempo real, bem explorada, tem um potencial gigantesco", dizia a Ana. "Já me passei com o Zé assim", reagiu prontamente a Dulce. "Ninguém quer saber da tua vida íntima", atirou Maria. Bem dispostas, continuaram a conversa no andar de cima do Bica-me. "Haverá ainda muito por fazer neste domínio. Afinal, ali damos sinal de que estamos vivos para alguém. Os que seleccionam criteriosamente os amigos no facebook ou no gtalk conseguem ter ali uma vida social dupla, ou fortalecer a real, fraquinha que anda pela falta de tempo", prosseguiu a Ana. O mote da conversa tinha sido dado pela Laura. Laura tinha recebido uma carta manuscrita do seu ex-namorado Luís. "Foi uma pena que viesse tarde", começou por contar ela. "Estava a gostar de estar com ele, mas ele ainda não se tinha libertado da ex-namorada e trocou o meu nome pelo dela três vezes". Depois, contou ainda, por azar, a ex-namorada tinha o nome da sua chefe. "Havia muito eco"

domingo, 2 de maio de 2010

Mandar à fava

Maria Cristina é filha de pais divorciados. Ainda hoje quando ouve gritos - tinha oito anos quando estes resolveram pôr cobro à vida em comum - fica perturbada. Não gosta. Em sua casa, fala-se baixo. Prefere o computador à televisão, também por causa do silêncio do Mac. A sua maior fantasia sexual é seduzirem-na enquanto lê um livro. Maria Cristina não consegue ter um namorado por muto tempo. Josefa teve influência contrária. Os pais eram um pouco hippies e sempre se deram bem. Notava-se que a ternura prevalecia nos momentos mais difíceis. O exemplo era positivo. O olhar embevecido que uma vez ou outra viu da mãe para o pai ou no sentido inverso era claro. Não foram feitos um para o outro, não era isso, ninguém o é, mas ficavam muito bem juntos. Bem, Josefa não consegue ter uma relação que avance além dos seis meses, pois o seu patamar de exigência é muito elevado. Dulce, por seu lado, cresceu com os avós maternos. E as suas relações são sempre curtas. Por causa deles. Eles perdem a paciência. É uma mimada. Luísa foi educada por uma tia e está a preparar o discurso para mandar o Tiago à fava. Simplesmente, está farta de se fazer passar por parva.

Bendita traição

Era a apologia da traição. Estava um frio difícil de suportar. As mãos foram parar ao rabito. Ao servirem de almofada, conseguiam manter-se quentes. De resto, a luz na esplanada estava óptima. Brilhante. Bem, voltando à traição, Júlia estava mesmo convencida de que a chave para os seus problemas foi aquela facadinha no namoro de três anos. "Fez-me ver o quão desequilibrada e cómoda era aquela relação. Uma traição é uma prova de fogo. Ou ficas ou vais embora". Ouvia caladinha, enquanto tentava que o frio não me desconcentrasse. Prosseguiu: "Foi óptimo. Em primeiro lugar estão os sentimentos, com tudo o que de misterioso e estranho que às vezes trazem agarrado. Assim fiz. Valeu a pena". E culpa, a sensação de culpa?. Respondeu ela: "Senti-me livre, por causa daquela coragem". Fez-se um silêncio. "Sim, e correu tudo bem". E então? "Fiquei com o Zé". Atirei: "Não tiveste coragem de deixar tudo para trás e tentar com o Pedro?". "Não gostei o suficiente dele para isso; há ali qualquer coisa que não bate certo. Não te sei dizer o que é. Mas quando cheguei a casa, agarrei-me ao Zé, anichei-me nele, e contei-lhe". Contaste? "Contei sem proferir uma palavra, disse-o mentalmente". Fechei o capítulo apenas com a frase audível:"Vou ficar contigo pelo menos até ao Natal". Ele riu-se e eu pulei na cama.

domingo, 21 de março de 2010

Um beijo difícil

Assim se cantava no filme: "Poder ver-te, é poder amar-te, e eu vejo-te em toda a parte, no passeio no café". Revia a obra prima e não me lembrava de ter reparado naqueles versos. Clássicos, claro. Simples também. Como andava a pensar na carta que lhe escreveria, achei que podia ir ali buscar a inspiração. Depois, fui à procura de vistas largas, esplanadas que nos tragam o mundo aos olhos, e juntei um facto só nosso. Tinha vários micro episódios por onde escolher, mas optei pelo beijo difícil. Afinal, não sabia como iria funcionar. O interior da boca tinha uma teia de arames e provavelmente ele nunca teria encontrado um céu da boca assim. Já para não falar nas massas ao interior dos dentes. Quando parámos de nos beijar, ele disse: "Vamos comer o resto do bolo de maça a tua casa?".