sexta-feira, 23 de março de 2007

Parlamento

No campo, os enigmas são outros. O tio avô desapareceu sem deixar rasto. O lenhador que ele contratou foi entregar a madeira sozinho, o que nunca tinha acontecido. A irmã de 99 anos insistiu em perguntar por ele, pois, a primeira resposta criou-lhe inquietação. "Ele não estava em casa", respondeu. "A filha também não sabia dele". Logo ele: tão pontual, certinho. Correu até à vizinha para lhe pedir que ligasse à sobrinha. Ela ligou. A filha não sabia dele e estranhou a ausência. Foi averiguar. Morava ao lado dele, tinha essa vantagem. A irmã, de 99 anos, a mais preocupada, aproveitou para pedir um segundo telefonema para a outra sobrinha que vivia longe mas que estava a par de tudo como se morasse no piso de cima. Ela não poderia saber, mas teria uma explicação. Tinha-a quase sempre e isso tranquilizava-a. Pouco depois, o telefone tocou. A vizinha atendeu: "Ah, sim, pois, não costuma ser assim". Assim que pousou o telefone, disse: "Ele não está no parlamento, a filha foi lá ver". Os 99 anos pesaram-lhe então em cima dos pés, ficando quase sem forças. Os ombros caíram. "Podes ligar-me outra vez para a minha sobrinha?". A vizinha disse que sim. Desta vez, falou ela: "Ele não está no parlamento, ninguém sabe dele, teria alguma consulta no hospital?". A sobrinha começou por perguntar: "No parlamento?". Afinal, um banco de uma paragem de autocarro mesmo em frente ao café servia de parlamento. Um grupinho de amigos com uma média de 80 anos passava grande parte do dia no parlamento. Ali, falavam das manchetes dos jornais que estavam em cima da mesa do café, falavam mal do Sócrates, da ministra da Educação, da reforma que não estica, do padre amante da pinga. Discutiam, lançavam graçolas. A melhor piada era repetida, contada ao que estava a chegar. Assim se passava parte do dia. Naquela manhã, o tio avô esteve no parlamento bem cedo. Mas não resistiu a um convite para ir à feira com o compadre, que lhe prometeu uma viagem curta: iam e vinham numa esfregadela de olho. Quando chegou, já era ele o motivo da conversa no parlamento.

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