sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

miami vice

Júlia apaixonava-se sempre por quem estava longe. Há dois anos, lembrou-se do Manel, do seu namorado dos 14 anos. Soube, por acaso, que ele estava na Suiça e lá foi ela passar uma semana aos Alpes para o ver sem cabelo e os ombros caídos. Alimentaram uma relação à distância durante nove meses. Alimentou-a ela, como se de um bebé se tratasse, com palavras a cada três horas. A depressão dele não era passageira, e o esforço dela foi em vão. Manel era gótico por dentro. Depois de três meses de luto, voltou ao Facebook e no regresso encontrou um pedido de amizade do Peter. Nem queria acreditar. Vivia nos Estados Unidos, era professor primário e corria. As fotos do perfil mostravam-no a correr nos cenários mais diversos. Sempre a correr e nem sempre com roupa adequada. Algumas t-shirts mais pareciam roupa anterior gasta pelo tempo. Mensagem puxa mensagem. Deram o passo seguinte pelo Skype. Júlia explodia de nervosismo por dentro, as veias latejavam quando se viram pela primeira através da câmara do computador. Viveram um amor curtinho de Verão há muitos anos atrás. Aos 16, 17. Davam-se bem via net e partilhavam tudo, até os cozinhados. Ela mostrava-lhe a sopa que estava a fazer. E o Peter as massas. A alimentação dele era à base de massas. Um dia, o entusiamo descambou para um: "Mostra aí!". Ela não gostou e zangou-se. Cortaram. Desligaram-se da net. Para Júlia, "sexting" era uma coisa bizarra para adolescentes problemáticos. Não ia tirar a camisola para uma câmara. "Ele só queria dormir com aquela imagem na cabeça?". Foi o que ele lhe disse e aquilo não lhe caiu bem. Júlia andou abatida um mês. Mas não é pessoa para se render. Viu uma viagem barata para Miami no dia 1 de Janeiro e comprou-a. Não tinha dinheiro para ela, e era uma loucura o que estava a fazer, sabia-o bem. Mais um pagamento a crédito. Já mandou uma mensagem ao Peter a dizer que ia no dia tal e que ia ficar no sítio X. E ele não respondeu. Não disse nada. Está caladinho. Ela vai na mesma. Vai atravessar o Atlântico. "Não é por causa dele", dizia-me. "Preciso de sair daqui". Esta tarde, Júlia comprou uma camisola nova.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Quentinho

Josefina gosta de sentir o frio na cara e nas mãos. Passam-se coisas fora dela, outras vidas, outras dúvidas. O nariz está gelado, as orelhas para lá caminham. As pontas dos dedos, dos 20 dedos, estão frias. Contraste. Dentro dela está tudo quentinho. Está viva.

Tranca a porta

Mário tinha muitas camadas. Parecia calmo e afinal era um tipo ansioso do tipo controlado. Quando estava sozinho com ele, era uma pessoa diferente da que se via entre amigos. E ninguém suspeitava de nada. Mário tornava-se forte, seguro e sexy, quando só me tinha a mim pela frente. O problema dele era a assistência. Se sentia alguém a observá-lo, comportava-se de forma incoerente. Dava sinais confusos. Olhava sem concentração. E o melhor do Mário ainda estava para vir. Comecei a apreciar a forma como ele falava de certas pessoas. Elogiou o discurso simples e arrojado do empregado da pizzaria. Falou do livro que estava a ler como se fosse a sua casa. Um dia, dei por mim a pensar no quanto gostava da forma como ele funcionava se nunca saíssemos à rua.

sonhos de natal

- Gostas do natal?
- fazes cada pergunta... sabes, tenho uma técnica para dar a volta ao natal.
- hum...
- não o levo muito a sério, como se me tivesse a passar ao lado. está a acontecer, dão-se os preparativos, já comprei uns presentes para os putos, comi ontem um sonho. Está mesmo ali, mas eu não estou disposta para ele. A fraternidade exacerbada e a solidariedade social momentânea não me atingem. são para os outros!
- e as coisas para fazer e as combinações de família?
- vou fazendo, como faço a cama ou levo o carro à inspecção.
- não tens medo que alguma coisa corra mal? o meu problema com o natal é que estou sempre com medo que alguma coisa venha estragar o que é suposto ser o natal...
- tenho, por isso tento desligar.
- e consegues? ou isto não passa de teoria para me chatear?
- não quero pensar muito no natal, não quero pensar muito na dor. Há coisas sobre as quais não se deve pensar muito.

Homem excel

José adorava folhas de cálculo. Duas semanas depois de começarmos a ficar em casa um do outro, levou para o sofá a nossa primeira primeira página excel. Estava metade preenchida e metade por preencher. Ele precisava de saber o quanto achava eu ser o limite a poder pagar por um jantar. Meio a brincar, fui dando palpites. Aproveitei para olhar para a vida que fazia em números. Descobri que gastava muito em prendas, jantares, concertos, e que só poupava nos detergentes. Se são para lavar o chão, para que é preciso marcas gourmet? As tabelas por preencher eram um entretenimento. Estabelecia-se metas para custos a fazer com o fim de semana, com o feriado, o mês. No início, tinha a sua graça. Já tinha tido um namorado que passava horas a jogar "aos países", como lhe chamava, uma espécie de continuação da segunda guerra mundial, mas como novas fronteiras, regimes políticos inventados. O pouco que ele me explicava daquilo era impressionante. Não me podia contar muito por ser um jogo apenas partilhado com o irmão. Um segredo deles. Fui a sua primeira namorada a saber daquele outro planeta. Era uma prova de confiança. Nunca o contei a ninguém. Bem, entretanto o Zé começou a ficar paranóico com os valores das coisas e um dia não aguentei mais. Perguntei-lhe como seria a minha pessoa transformada numa folha de excel e ele, animado, disse-me que já me tinha traçado o perfil. De repente, veio o papel e estava ali reduzida a números. Tinha a minha altura, a minha cintura, a minha copa e costas, tamanho de pernas e braços e os meus seis dedos em cada um dos pés.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

esquece lá isso

Adoro esquecer,
gosto tanto de esquecer
como de lembrar,
e quase esqueci,
estava quase...
Sei que quando te esquecer,
vou festejar,
quero lembrar-me
do esquecimento

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

fora de prazo

Apagou o cigarro na mão e disse-lhe: "Estás a ver? Queima e passa". Ele tinha gostado muito, muito dela. Teve-a na cabeça meses a fio sem dizer palavra a ninguém. A declaração deu-se fora de prazo. Naquela fase, estava noutra dimensão. Dormia com uma namorada divertida e sexy. Andava com dores nos maxilares de tanto rir. Nada daquilo fazia agora sentido. O passado, passou, morreu. Gente que ressuscita nunca a entusiasmou. Traumas da catequese. A morte não tem amigos.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

mais vale um pássaro na perna

Vestia-se como uma senhora entre os 55 e 60 anos, com gosto médio. Nada chocava, nem o tamanho da saia. A meio do joelho. As cores eram sóbrias, e os cabelos médios deixavam ver o pescoço bem desenhado. Pintava o cabelo, claro, mas o novo tom não era ruivo nem castanho, luzia uma cor de chocolate forte. O que destoava era a tatuagem na perna esquerda. Um pequeno pássaro, ligeiramente abaixo do meio da perna. Amélia seguiu-a como fazem os detectives à antiga. E a senhora deixou de o ser, quando se abeirou dela e lhe perguntou: "Desculpe, posso roubar-lhe cinco minutos?". Fez um sorriso e desbloqueou-se a conversa. Contou-lhe ter ficado intrigada com o pássaro estampado ali tão à mão de ver, sendo ela tão discreta. A senhora chamava-se Clara. Clara olhava-a sem medo e quis saber o motivo de tal curiosidade. Amélia explicou-lhe que a saia e os sapatos não tinham que ver com a tatuagem. Clara contou-lhe a história, começando por dizer que morar na Almirante Reis também não tinha estado nas suas previsões. Embora a avenida estivesse a mudar, a impor-se na cidade. Resolveram sentar-se no indiano ali ao pé e pediram chá de jasmim. Clara contou-lhe da tatuagem feita em Nova Iorque. Passaram 20 anos, mais mês menos mês. Foi para lá viver com o Fred. Estavam apaixonados. Passeavam no Central Park. Falou-lhe de várias viagens que fez com ele. Ficando por dizer que era feito do Fred e o significado do pássaro. Desorientou-se a contar o seu passado. Recuava e avançava sem avisar. Por fim, soltou-se: "Um dia o Fred perdeu o emprego e deixou de falar".

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

avental

Transferiu tudo o que sentia pelo Pedro para o Amílcar e nem se apercebeu disso. Era craque em matemática, fazia doutoramento em inteligência artificial, mas não via o mais óbvio. Josefina já não gostava do Pedro e muito menos do Amílcar. Josefina gostava de gostar como gostou do Pedro e o Amílcar estava a jeito. Josefina andava enganada, e nem topava. Desvalorizava o que lhe desagradava do Amílcar e ia andando. Ele cozinhava bem.

és mesmo parva

Josefina tem o dom de ver como as pessoas são em dois minutos. Percebe se são sábias, preguiçosas, pouco espertas e enfadonhas. Tem o dom, mas não o usa. Usou-o em tempos, mas descobriu o quanto aquela percepção lhe complicava o dia-a-dia. Bloqueou-a. Mesmo quando está descontraída e esta funciona automaticamente, procura empurrá-la para o submundo dos pensamentos a evitar. Por isso se faz de parva.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

raio do nariz

Ele tinha um defeito. Tinha sido namorado de uma amiga minha. Não era bem namorado. Tinha sido um caso breve. Coisa do passado, mas preferia não ter sabido. Não ter sabido dos pormenores. Maldita hora em que ela me contou. Estava arrumado, é certo. Nem os conseguia imaginar juntos. Ele é largo e ela quadrada, não encaixariam os braços. Ai, essa mania de imaginar tudo e mais alguma coisa! De resto, a sua companhia prometia horas sem seca. Subia sempre as escadas de casa a correr. Percebi o quanto me estava a agradar quando o nariz me denunciou. Mais uma vez, o nariz. Sempre ele. Pode ser Verão ou Inverno, não interessa. De repente, fica gelado. Ai que há aqui qualquer coisa, o que é que eu faço? Não faço nada. Levo lenços de papel na mala.

depois do verão

Depois do Verão, descansa-se melhor. Antes do Verão éramos adolescentes.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Fica com ela

Ele gosta tanto do cheiro dela que lhe roubou o casaco. Ontem, agarrou-se a ele como se lhe desse um abraço. Faltava tudo, a estrutura fininha e firme dela, mas estava lá qualquer coisa. Estava obcecado com a ideia de voltar a tê-la nos braços. Pensava nisso antes de adormecer. De manhã, só pensava no pequeno almoço. Mas depois do café, pensava no casaco, e se este não lhe faria falta. Ligou-lhe: "Ficou o teu casaco no meu carro, queres que o leve logo?". Lacónica, ela disse: "Ok". Nada mais. Quando ele lhe entregou a casaco, ela vestiu-o de imediato e ele aproximou-se. "Fica-te bem!". "Sabes", disse ela, "não é meu, é da Rita, ela esqueceu-se dele cá em casa e agradou-me tanto o perfume, que não o devolvi".

disse ela

Quando se gosta, repete-se.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Vento, ventania

Nasceu torta mas endireitou-se. Ficou alta, esguia, e à medida que o tempo passava, ia ganhando encanto. Há pessoas assim, dizia o João. Eram essas as pessoas importantes para ele, as que sabiam envelhecer e ficavam a cada dia mais sábias, elegantemente sábias. Na altura, achei ter percebido. Mas não tinha. Andava preocupada com as borbulhas na testa e com um pêlo nas costas do meu namorado. Gostar em crescendo, isso sim me agarra, dizia-me. Falou-me ainda do vento, do seu gosto em procurar locais com vento para namorar. Lembro-me bem. Eram versos soltos para mim, não tinha de lhes fazer a prova dos nove. Eu? Eu atirava-lhe evidências: tu queres que seja assim!

Teresa e Paulo

Teresa e Paulo tinham um ponto em comum. À sua maneira, viviam uma personagem que arranjaram sabe-se lá quando. Um dia Teresa contou-me de um acidente de carro dramático, de um filho nascido sem choro e achei que devia ser por ali. Para os desatentos, Teresa era a pessoa mais animada da freguesia. Sempre achei que era personagem, figura de cera. Havia uma caixa cheia de segredos. Paulo não falava mal de ninguém porque não o sabia fazer e tinha sempre uma piada para contar. Nunca me lembro de o ver em baixo ou em cima. Estava sempre bem disposto, mas da mesma maneira, aplicando o mesmo registo. Teresa foi despedida e nunca mais soube nada dela. Paulo despediu-se antes, por ter desistido, não conseguia aturar tanto desdém, e só esta manhã soube dos motivos. Os dois passaram por mim. Paulo parou ontem. Telefonaram-me a dizer.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Pedacinhos

António gosta de queijo. Havia queijo e ele veio. Falámos de queijo, provámos os queijos, e continuámos. O queijo ficou lá para trás, arrumado, embrulhado, alojado na prateleira arejada. Quando se foi embora, foi-se embora. E eu acabei por voltar aos queijos, a um pedacinho de cada um.

Martices

Agora só preciso de me desabituar a ele.

É isso

-Podes pensar o que quiseres!
- Nunca tinha pensado nisso.
- Nunca me aborreço por estar sempre entretida a pensar.
- Mas posso não dizer o que penso?
- Exacto. A maior liberdade é essa. A grande sorte. Depois se a conjugares com o que fazes, tens a liberdade de acção. No 25 de Abril abriram-te essa possibilidade. Até aí não podias dizer o que pensavas. Havia muita gente de boca calada.
- Não conseguia viver assim, tia!
- Se tivesses nascido nesse tempo, serias como os outros e terias medo. Depois, como tinhas a tal liberdade de pensar, farias a revolução.
- Seria revolucionária! Quero dizer o que penso! Mas não devo dizer tudo o que me passa pela cabeça, não é?
- Eu não digo, sobretudo para não magoar as pessoas, mas sei que posso fazê-lo, percebes?
- Eu antes falava tudo... mesmo que me abram a cabeça não me tiram de lá os pensamentos, mesmo que me abram a cabeça não me os tiram, é isso?
- É isso.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Kelly, a princesa

Kelly faz depilação. Nunca quis emigrar, mas os pais, por ela ser menor, não lhe deixaram outra alternativa. Em Portugal viu-se sem rede de amigos, com dias de céu nublado a que não estava habituada e estranhou tudo. Sentiu-se discriminada por falar brasileiro. Sentiu-se discriminada por ser baixa. E quanto mais bicho do mato se sentia, mais se encolhia. "Foi um ano duro. Não arranjava emprego e comecei a ficar presa em casa, sem fazer nada, só dormia, passava o tempo ao computador e via televisão. Tudo me irritava nos portugueses formais e sisudos. Ninguém se ria com vontade, parecia-me na altura. Não gostava de ninguém, ninguém gostava de mim. Tinha pensamentos negros, punha-me a imaginar acidentes para a vizinhança, distribuía tragédias às pessoas bem arranjadas que via da janela". Foram meses perdidos. Sem uma noite de galhofa com amigos. A vinda da prima, igualmente desamparada, foi a sua sorte. Convenceu-a a estudar à noite, a ir nadar para a piscina. Na escola fez novos amigos, escolheu a dedo os que tinham tão ou mais complexos do que ela. Com as idas à piscina, recuperou um certo bem-estar e confiança. Decidiu-se por uma formação em esteticista e começou a trabalhar. Hoje vê aquele ano com nojo e ao mesmo tempo com contentamento, por ter a certeza de que aquilo passou. "O mais complicado em Portugal é arranjar namorado. Os rapazes aqui têm regras muito definidas para o par que procuram e decididamente não gostam de miúdas baixas. Gabam-me os olhos azuis, e fixam os olhos no decote, sou proporcional, não sou? Depois, reparam na altura e estraga-se tudo". Fez uma pausa. "Meço 1,43cm".

terça-feira, 22 de março de 2011

Amores difíceis

Há quem tenha tendência para os amores difíceis. Não gosto disso. Gostam de se zangar, de se fazer esperar, andam sempre num ringue. Prefiro os fáceis. Tudo corre bem, até correr. Quando não anda, se tropeça, fala-se no assunto e mata-se o amor. Fala-se a mata-se. Se ele não morrer à primeira, faz-se uma viagem. Se não morrer à segunda, bloqueia-se no Facebook. Se não cair à terceira, ai, ai, vai tornar-se um amor um pouco ... difícil.

Sair ou não sair

Estávamos no sofá, quando ele me perguntou: "Queres sair?". Respondi que não me apetecia. E levantei-me. Ia só parar os ponteiros do relógio e já voltava, disse-lhe. Desapareci. No regresso, ele fez um ar desconfiado antes de me perguntar: "Conseguiste parar o ponteiro dos relógios?". "Não, não consegui". "O que foste fazer afinal?". "Fui pôr a máquina a lavar".

Aluga-se

Um dia tive um cão e ele morreu,
um dia tive um namorado e ele morreu.
Percebi que tinha uma maldição,
não posso ter nada.
Em vez de comprar casa, aluguei-a.
Em vez de um companheiro, preferi o amante.
E quando ele se separou da mulher,
não quis ficar com ele.
Não quis que ele morresse.

domingo, 20 de março de 2011

Li na horizontal

- Viste o meu email?
- Desculpa, mal tenho vistos os emails, só os tenho lido na horizontal!
- Na horizontal? Estás a passar-te?
- Ahahahah. Desculpa, estou a conduzir. Na diagonal, queria eu dizer!
- Eu percebi, eu percebi.
- Está tudo bem na horizontal?
- Ahahahaha. Desculpa, estou em contra-mão, perdida algures em Queluz.
- A sério?
- Sim, ai, ai, que não consigo sair daqui!
- Liga-me quando te encontrares, ok?
- Ahahahaha! Ok. Dá-me uns minutos.
Nunca mais ligou

Zona azul

Na piscina, entra noutra dimensão, e por isso não gosta que lhe falem. Está tudo azul, chão, azulejos, tecto e os óculos novos não lhe deixam margem vazia. Fica tudo azul. Mais parece uma versão rudimentar do filme do "Azul" de Krysztof Kieslowski. No outro dia, um dos professores esperou-a à porta. Tinha muitos dentes, dentes muito brancos. Pediu-lhe desculpa e avançou para a pergunta. Queria saber onde ela tinha aprendido a nadar. E Rita gaguejou. Apesar de estar fora da piscina, ainda estava na zona azul. Pensava. Podia ver-se no balão à banda desenhada que pairava sobre a sua cabeça. Respondeu, com a voz a meio gás: “Não tive professor e nado mal crawl”. Ele disse-lhe: “És muito elegante a nadar”. A essa Rita não devolveu resposta. Fez-lhe um adeus tímido e foi-se embora. Dias mais tarde, quando contou o episódio à Júlia, foi bombardeada com perguntas. “Mas era giro?”, “Parecia interessante?”. Depois do inquérito feito a preceito por Júlia, Rita concluiu que ele tinha bom ar, era alto, etc, etc, etc. “Então, não te atraem os africanos?”. “Pelo contrário, acho-os muito bonitos". "Então?". "Simplesmente, não gosto que se metam comigo na piscina. É a minha missa".

sexta-feira, 4 de março de 2011

manhãs

-porque é que eu gosto do quotidiano?
- porque ele é a nossa vida, com as meias quase a romper, a vontade de sair de casa para apanhar ar, a louça por lavar.
- mas é o extraordinário nele que faz sentirmo-nos elevados?
- depende de cada um. Nunca defendi essa ideia de felicidade. Isso são ânimos raros: do amor, da família, das férias. Para mim, a felicidade está numa manhã sem ruídos agudos, apenas sons graves, quase abafados.
- já foste ao otorrino?
- sim, fui. Estava um bocado surda, tinhas razão!
- hehe, vês. Daí o silêncio que dizias ouvir nas manhãs.
- pois é, não é tanto assim. Vou ter de acordar mais cedo.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Chá quente

Rita gosta devagarinho. Vai gostando aos poucos. Disse que era mais ou menos o procedimento de beber um chá. Começa por encostar os lábios e se estiver quente, a escaldar, espera um pouco, para que arrefeça. Sopra e aproveita para aquecer as mãos na chávena de novo. E bebe mais um golo. Um atrás do outro. Vai saboreando. Se gosta, bebe ainda mais pausadamente para que o chá dure e não acabe logo. Nem sempre o ritual corre bem, chegou a queimar a língua pelo meio por se precipitar. No outro dia, entrou-lhe pela porta da padaria portuguesa um amor antigo e tornou-se desastrada em segundos. Entornou o chá. Salpicou a mesa e o vestido novo. Teve a empregada de vir do balcão com um pano absorvente. "Está bem assim?", perguntou-lhe, por fim. Rita disse-lhe que sim, embora a resposta correcta fosse: "Nem por isso". Pediu outro chá.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Frio

Só me sinto despida quando falo de certas coisas

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Foi esta a ordem

Primeiro: brincaram. Segundo, reencontraram-se graças ao Facebook. Terceiro, começaram a trocar mensagens uma vez por semana, duas vezes por semana, três vezes por semana. Seguiu-se o gtalk e o contacto diário. E encontraram-se. Do café, passou a um jantar. E aí entrou pelo meio o telefonema. Ele falou-lhe da falta de jeito para falar ao telefone e foi adiando esse passo. Dizia que era demasiado despachado, que todos o acusavam de secar conversas. Por isso, combinaram fazê-lo com hora marcada. Foi sentadinha no seu banco preferido do jardim Fernando Pessa, ao pé do Forum Lisboa, que atendeu. Era manhã. Não havia ninguém por perto. Falaram. A voz dele soava-lhe outra mas para melhor. Vinha de dentro. E foi aí que ela se deixou levar. Um dia, ele recordou. "O nosso melhor era ao telefone!"

Jeff Bridges, number one

Os Matt Damon, os Jeff Bridges, os Ewan McGregor, os Ethan Hawke, os James Franco têm um charme superior, afirmava em jeito convincente Matilde. "Percebe-se a inteligência e têm uma energia solta, desempoeirada". Rosa preferia o Brad Pitt. Por ser evidentemente giro, e por parecer bem humorado. "Deve dizer piadas a cortar queijo!". As quatro amigas não costumavam falar de rapazes dos filmes como se fossem adolescentes deslumbradas. Nos últimos tempos, as conversas giravam à volta do trabalho, do mau chefe, do incompetente do colega e dos casos amorosos da Maria. Maria tinha agora um outro escritor por perto. E Matilde e Dulce não se cansavam de a avisar: "Ele estará sempre a fazer pesquisa!". Maria sabia disso. Roubavam-lhe sempre alguma cena. Sempre gostou de escritores. Sempre gostou de fotos de escritores. De biografias de escritores. De qualquer modo, não havia motivo para preocupação. Tinha dado fim ao namoro, ainda não tinha era dito a ninguém.

para a Margarida

“Além disso, já não namoramos”, dizia a Margarida. Não estavam juntos, mas ficavam juntos de vez em quando. Não eram namorados. Tinham decidido acabar com aquela relação por motivos claros. Incompatibilidades, resumia a Margarida. Ele fervia em pouca água. "As tuas incoerências, matam-me", barafustava. Ela, por seu lado, irritava-se com a verbalização agressiva dele. Ficava assustada! Margarida chegou a sonhar com os ataques. Ora passeavam descontraídos e dormiam enrolados, ora se zangavam que nem cães. Por vezes, Margarida já não o podia ouvir e ouvir-se. Era dela que também não gostava naquelas discussões. “Por favor, não me digas nada, não me contactes”. E um dia ele obedeceu-lhe. Saiu do Facebook, apagou o número dela do telemóvel. Desapareceu. Ela emagreceu rapidamente durante aquele mês. Perdeu a vontade de cozinhar. Depois disso? Ela foi a casa dele, aceitou a sopa e voltaram ao mesmo.

Linha de pauta

Acordei cedo, andei de bicicleta, pedalei e enfrentei o frio. Senti a pele a ficar rosada sem ser por causa do vinho. Os pulmões estavam a abrir-se e tudo corria bem até ter tropeçado. As mãos não se agarraram ao chão como era devido. Resultado: joelhos esfolados, mãos raspadas pela brita do passeio, três nódoas negras nas coxas. Levantei-me. Olhei para cima. Havia uma nuvem com um nariz saliente a olhar para mim, um avião a rasgar o céu e a deixar rasto, uma linha de pauta de música, como as que desenho quando quero matar tempo, desligar o cérebro, para que descanse. Regressei a casa de bicicleta na mão. Ela inteira, eu acidentada. De volta ao Blackberry, tinha-o deixado em casa, volto à comunicação com os meus. Tinha a mensagem: “Não é dos piores. Nível três. Posso ser operado”.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

dia 13

Os dias 13 são óptimos. Se acontecem à sexta-feira, tanto melhor. Anda toda a gente à procura do azar e eu fico com a sorte. Faço o que não faria noutro dia qualquer por não ter medo da reacção. E por que faço qualquer coisa, acontece sempre qualquer coisa que não teria acontecido se não tivesse feito. Mais vale fazer. Ainda que, por vezes, fazer, queira dizer não fazer exactamente nada. Parece que não fazemos nada, mas estamos a fazer. Acontece sempre um maior número de coisas boas quando fazemos qualquer coisa. Podem não suceder logo, tardar, mas vêm depois. Às vezes, chegam umas a seguir às outras. Ficamos sem saber como lhes dar ordem. É uma fartura. Temos de as sacudir e estender com a roupa.

fatias

Fez-lhe um bolo. Ele comeu três fatias. Repetiu três vezes. Empurrou com o chá. Perguntou-lhe se não ia à quarta. Ele disse-lhe que não. "Três, está bem". "Mais um bocadinho?, insistiu. "Não consigo". Ela comeu a quarta e mostrou-lhe a barriga inchada. Ele mostrou-lhe a tatuagem do braço. Ela mostrou-lhe a cicatriz da perna. Mostraram tudo. E quando ficaram sem nada, comeram a quarta, a quinta, a sexta e veio o sábado e o bolo desapareceu para sempre.

Chuveiro

Pedro sabia o quanto ela gostava de gelados. Pensou nisso e foi comer um gelado de morango à Santini, no Chiado. Pedro sabia o quanto ela gostava de sushi. Deu às pernas e entrou porta dentro do japonês perto do Picoas Plaza. Pedro sabia o quanto ela gostava de andar a pé, de se perder em bairros antigos. E andou, andou até transpirar. Voltou então para casa e perguntou de novo: O que é que ela mais gosta de fazer? Encostar o chuveiro com água quente ao peito, era a resposta. Assim fez. Aproximava-se a meia-noite e perguntou então pela última vez: O que é que ela mais gosta de fazer? Dormir.

Amores à portuguesa

Os americanos estão treinados para dizer o que pensam. E fazem-no a dois, mesmo quando custa fazê-lo. Quando se conhecem são mais directos. Inventaram o "blind date", mas depois fazem tudo às claras. Daí as dúvidas próprias aos raciocínios verdadeiros. Há muitos amigos amantes em Nova Iorque. Noutro lado estão os franceses. Gostam da paixão a ponto de a procurar em cada esquina. Ouvem a música que a atiça e inspiram-se em cada esplanada por onde passam. Levam o Gainsbourg que têm em si para as ruas e para não defraudarem a fama de serem bons amantes, capricham o mais que podem. Fazem por isso. Os portugueses têm dificuldade em expressar o que sentem, por não saberem o que sentem e, muitas vezes, ficam bloqueados. Como os computadores. Quando desbloqueiam, depois de uma garrafa de vinho, pode dar-lhes para a poesia. Outros são trapalhões. De qualquer modo, não são de ir comprar cigarros pela manhã. Gostam de um bom pequeno-almoço.

Calças por estrear

Só acho que fico muito boazona com elas e não quero que gostem de mim por causa das calças.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

para a sobrinha

"Não queiras ser a melhor da turma, tenta ser a segunda ou terceira melhor. Se fores a primeira, vais ser o centro das atenções e haverá sempre quem te fará a vida complicada". Joana dava sinais de que estava a perceber a lição. A tia, por sua vez, nunca tinha pensado bem naquilo que estava a dizer-lhe. Percebeu naquele instante que estava a solidificar um pensamento antigo diante de uma criança de seis anos. Gostou do exercício e continuou. "Joana, sempre que te sentires estranhamente desconfortável com alguém, afasta-te dessa pessoa. Nada de bom virá daí!". Aí, a sobrinha reagiu com perguntas: "Não devo brincar com quem me empurra?". A tia riu-se. "Isso não tem mal nenhum. Empurra também".

para a Amélia

Estava a passar na sua rua, no passeio de sempre, quando encontrou o Mau-da-fita. Levou para casa, deu-lhe banho e comida e deixou-se seduzir pelo seu olhar abandonado. À noite, o Mau-da-fita aninhou-se ao pé do aquecedor, como se fizesse parte da mobília. E nos dias seguintes, viveu em função dele. Os mimos foram tantos, tantos, que o Mau-da-fita engordou e tornou-se pachorrento. Seis meses depois, Amélia contava à Marta a sucessão de erros cometidos. "Estraguei-o com atenção, festas, e Whiskas de primeira. Agora não me larga, vive colado às minhas pernas, em qualquer passo que dou em casa, tenho a sua sombra. Não consigo fazer nada completamente sozinha e estou a passar-me". Marta mostrou-se surpreendida. Também ela tinha um gato, no caso, uma gata, e o dilema da amiga parecia-lhe exagerado. Fez uma pausa e disse-lhe então: "Deixa de fingir. Mostra-lhe o que não te agrada".

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

para a Clara

Clara estava pessimista naquele dia de chuva. Barafustava, barafustava. "O Rui é a gaja desta relação", dizia. As amigas caíram-lhe em cima. "Já reparaste no que disseste?", perguntava a Adélia. "Sei muito bem o que digo. Quem dramatiza e complica tudo é ele. Não podemos estar dois dias sossegados. Falha sempre um detalhe!". Então, gracejava a Maria: "Se ele é a gaja dessa relação, quem és tu?". Riam com o corpo todo. "Eu sou o gajo!"

para o Pedro

O fraquinho da Rita pelo Pedro vinha já da faculdade. Entretanto, tiveram os dois uma relação longa, e uma outra mais curta, e nunca mais a Rita se lembrou do fraquinho ou lá o que seja, que as palavras são sempre insuficientes em matéria de descrição de sentimentos. Isto até um dia. Um dia, um rabisco mudou-lhes a vida. Estavam no msn e escrevia-lhe ela que precisava mesmo de um café para abrir o olho. Uns segundos depois, surgiu o desenho de um café. Ela pestanejou. A seguir, ele desenhou um mon chérie, igual aos chocolates a sério. Só para acompanhar, escreveu. Depois, ela disse-lhe que o seu terceiro desejo era viajar para um país quentinho e um bilhete de avião iluminou rapidamente o ecrã, com o destino traçado e tudo. O encanto começou ali. Aquele foi o seu melhor café do Outono. No Inverno, dormiram juntos.

para a Alice

Alice gostava de estar com o José, apesar da conversa ser fraca. Embora também não pudesse queixar-se de silêncios embaraçosos. Era uma relação de fazeres e de poucas falas. Ele convidou-a para jantar em casa dele e ela convidou-o para jantar em casa dela. Os cozinhados saíram bem. Na última vez, ele tocou piano. Improvisou. E ela retribuiu mostrando-lhe através do Youtube umas músicas nascidas em Brooklyn. Entretanto, voltaram ao garfo, à sobremesa e, embalados, começaram a curtir. Mas eis se não quando Alice pede para pararem. Olha para a porta e diz que tem de ir embora. José encolheu-se. Os braços enfiaram-se para dentro do tronco. Perguntou se se passava alguma coisa, o que é que ele tinha feito que a aborrecesse. Alice respondeu: "Estou sóbria, da outra vez não estava".

domingo, 2 de janeiro de 2011

Ganchos

Josefina abusava dos ganchos no cabelo, mas quase ninguém reparava nisso. Naquela noite, Nuno surpreendeu-a com uma observação a respeito deles: "Tanto gancho no cabelo. O que queres tu segurar?". Nessa noite, Josefina não voltou sozinha para casa. O Nuno acompanhou-a. A viagem de taxi foi substituída por um longo passeio a pé. Por fim, chegaram ao destino. Maria disse-lhe: "Esta é a fábrica de ganchos de que te falei".

Plantar uma árvore

Estava quase a chegar a casa, já na sua rua, quando reparou na escultura de uma árvore, estacionada em frente à porta do prédio número sete. Raios, pensou. Parou. Mexeu-lhe nos ramos e descobriu que parte deles estavam partidos. Só os de cima estavam bem de saúde. Estavam presos por uma rosca ao tronco e mexiam-se à nossa vontade. Olhou então para o relógio e fixou cinco minutos. Estaria abandonada, prontinha para ir para o lixo? Ou alguém a teria deixado no passeio enquanto tinha ido simplesmente buscar o carro? Findo os cinco minutos, deu por si a agarrar nela desajeitadamente. Colocou-a debaixo do ombro e trouxe-a para casa. Foi uma odisseia. Além de pesada, era alta e foi difícil fazê-la entrar pela porta. Teve de a inclinar duas vezes. Levá-la para o escritório também foi custoso. Ganhou uma nódoa negra no braço. Deu um trabalhão. Mas passado 25 minutos, a árvore estava plantada.

Desculpa

Convidei-o para um café. Cheguei mais cedo cinco minutos, escolhi a mesa mais ao canto, sentei-me e comecei a recuperar o que tinha planeado dizer-lhe desde a semana passada. Tinha de lhe dizer que a minha cabeça me tinha atraiçoado. Ficou à solta sem eu querer. Virou-se sem eu fazer por isso, começou a sentir falta de uma camisola de lã quentinha a quem se tinha abraçado no outro dia. Mas isso não lhe podia contar. Essa parte tinha de ficar de fora. Ele chegou em passo lento. E quando me olhou com brilho nos olhos, percebi que ia ser muito difícil dizer-lhe o que tinha de lhe dizer. Andava há dias perturbada, com um amargo boca, como se me quisessem enfiar um pedaço de carne pela goela abaixo, à força, estando eu na minha fase vegetariana. Depois de umas piadas, comecei a parte séria da conversa: "Não sei como te diga isto, nem sei como te explicar, não controlo a minha cabeça. Se a controlasse, ficava contigo. Mas não a controlo e ela foge-me noutras direcções. Não tens culpa. Desculpa". Ele pediu-me para não lhe pedir desculpa. "Isso nunca". Desde aí, nunca mais pedi desculpa a ninguém.

Eu não estou aqui

"Somos o que procuramos", dizia o Manel. Tinha lido aquilo algures e meteu a frase no meio da conversa de café no Vertigo, Chiado, Lisboa, Inverno. Marta estava em desacordo. "Não somos nada o que procuramos, isso é o que queríamos ser". Manel voltava à carga. "Eu sou. Tu podes não ser. Eu sou o que procuro".