terça-feira, 3 de agosto de 2010

A minha praia

Ana reparou naquela figura enquanto ele brincava com uma amiga na praia. José provocava a Maria com frases certeiras, roubou-lhe o livro grosso, a que chamou tijolo, e depois fingiu que se deitava em cima da Maria, sobre o seu corpo, sem sequer lhe tocar. Aquela aproximação física, a forma como o fez, despertou-lhe qualquer coisa no cérebro. Maria ria-se sem parar. Notava-se ali uma amizade sólida e viva. Desde aí, Ana passou a seguir-lhe os passos com discrição. Os mergulhos, como José se atirava às ondas, os comentários ditos durante o jogo de cartas, o que falou acerca do stress diário provocado pelo trabalho. Findo o dia de praia, alguém do grupo sugeriu um jantar numa esplanada famosa em Lisboa, por ser um sítio fresquinho mesmo no pico do Verão. Enfim, Ana e José aproximaram-se. Activou-se um íman. Acabaram a noite a conversar no jardim em obras situado perto da casa dele. As três semanas seguintes incluíram vários encontros. Mas Ana descobriu cedo que ele falava pouco na intimidade, transformando-se ela numa tagarela, que até ela própria desconhecia. Pelos vistos, José só era uma companhia animada quando estava entre amigos. Um dia, não aguentou e disse-lhe: "Acho que não estamos na mesma praia".

Boa continuação

Inadequada. A frase não podia ser mais inadequada. Tal como uma vez foi o "olaréquicu" do Diogo, cantado em plena missa, na cerimónia fúnebre do seu avó. Fez eco na igreja. Ouviram-se risinhos! Agora, estava prestes a fazer-se ao caminho do seu carro, deixando para trás as horas de bloqueio, em que o tempo parou. Desliga sempre do seu quotidiano nos funerais. Desta vez, alguém lhe deu os pêsames por engano, lhe apertou a mão por engano, além de lhe ter dito a frase mais bizarra, dado o quadro triste. Ainda se viam as campas por perto e o senhor barrigudo de camisola colada ao corpo, por causa da transpiração, despediu-se com duas palavras: "Boa continuação".

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Querido mês de Agosto

O seu primo mais indie surpreende a cada fala. Bárbara ouvia-o atentamente mais uma vez. Tinha-o o visto ao longe, de pernas ligeiramente abertas e braços cruzados, observando o pesar de todos os que se despediam do ente querido falecido. A conversa deu-se depois, a uns bons metros do portão de ferro do cemitério. Contou-lhe ele que a última vinda a Portugal - vive em Paris - foi para ajudar o Manel, com quem se dá bem desde miúdo e mantém contacto. Veio para o ajudar, pois um amigo comum telefonou-lhe para lhe dizer que o Manel ameaçava suicidar-se por causa da ideia do divórcio e da separação da filha que isso implicava. Não pensou muito, enfiou-se num avião e veio. Passou uma semana com o Manel. Falaram muito. "E o que aconteceu?", perguntou Bárbara. "O divórcio foi para a frente. E a ex-mulher surpreendeu-o em relação à filha. Fez de tudo para que esta se ressentisse o menos possível".

domingo, 1 de agosto de 2010

Jardim da Celeste

Pedro meteu-se na roda da conversa para dizer à Celeste: "A primeira vez que te vi estavas com os olhos colados ao ecrã da televisão a ver bailado. Perguntei-te então se gostavas de ballet". Elevando os olhos, Celeste mostrou-se mais atenta. Prosseguiu o Pedro: "Disseste que gostavas de ser bailarina". Eram dois miúdos. Passaram 30 anos desde esse episódio. Celeste e Pedro pouco se vêem hoje em dia. A conversa daquele grupo tinha começado por aí. Não tem havido casamentos, encontram-se em velórios. Era o funeral de um vizinho comum lá da aldeia. Celeste contou então que levou o filho para o ballet por causa da oportunidade que não teve. Pedro tem duas filhas gémeas que também andam no ballet: "Mariana tem jeito, tem um bom pezinho, segundo diz a sua professora". Celeste está hoje casada com o namorado de sempre, o tal que era alvo de contestação por parte de toda a família. Ricardo fumava, bebia, gostava de farra. E ela passava muitos fins de semana fora com ele. Havia na aldeia quem a visse como uma vadia. Os anos 80 não poupavam as mulheres mais livres. Mas Celeste sobreviveu aos olhares conservadores sem rancor algum. Via-se isso agora. O seu filho, porém, não aguentou a pressão dos amigos e, aos 13 anos, desistiu do ballet.