sábado, 22 de dezembro de 2012

nevoeiro

o nevoeiro, um consolo
pode ser ou não ser
pode

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

uma razão

Esplanada na Pollux.
- Já percebi porque é que o Philip Roth não ganha o Nobel.
- Então, diz lá.
- Entendi o encanto supremo da poesia do Ruy Belo.
- Conta, conta.
- estou a recolher dados para provar a minha teoria.
- diz lá.
- há sempre uma razão, mesmo que possa ser parva.

ir

vai emigrar da sua vida

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

fumo

Josefina voltou a pensar nele. Nada é mais forte que o pensamento

loop

nos dias compridos, os pensamentos ficam presos
a dois ou três pontos chave
e repetem-se
nos dias comprimidos
deseja-se um fim
rápido sem intervalos
nos dias compridos
queremos exactamente o contrário
do que temos
um chá picante
um gelado derretido

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

princesas e princesas

A minha sobrinha foi ver a Companhia Nacional de Bailado três dias antes de mim. O meu sobrinho, três anos, também através da escola, viu "A Bela Adormecida" esta semana. A minha sobrinha falou da leveza dos bailarinos e da aparição, a certa altura, da bruxa má, vestida de vermelho. Imitou-a a lançar o feitiço. Ele viu princesas e princesas a saltar e a girar, a andar à volta, nas palavras dele. E gostou. Ficou sério ao dizê-lo. Havia sinal de respeito naquela afirmação. Ela interrompeu a conversa para dar nota do que a tinha comovido. A dada altura, uma bailarina desequilibrou-se. Na descrição dela, uma queda aparatosa. Foi rápida a levantar-se e prosseguiu, mas tinha caído. Maria ainda não se recompôs.

palpitações

quando estamos atrapalhados, somos todos meninos

domingo, 16 de dezembro de 2012

risca

A minha gata chamava-se risca
e era muito chata
Não me largava
Assim que punha os pés em casa da minha avó,
passava, basicamente, o tempo a fugir dela
Era mais manhosa que os gatos dos outros
Tinha esperteza de cão
nem sempre era fácil enganá-la
um dia, ladrou-me


a, b ou c

Durante 15 dias, comunicaram por opções. O jogo era divertido: a, b ou c. Até surgir d: jantar. Dulce teria preferido uma tasca de tamanho reduzido. Mas chovia que deus a dava. Dava jeito ser em casa. A casa não deixa entrar água. Josefina telefonou a uma amiga para lhe contar a aventura em que se ia meter e, o mais importante, o endereço da casa do Joseph. Bairro Santa Catarina. "Aponta, não confio na tua fraca memória". Se desaparecesse do mapa, chegariam facilmente ao assassino, chegou a dizer-lhe. Neste momento já se riam. Não havia motivos para grandes preocupações, Joseph era delicado e meigo. Não fazia mal a uma aranha. Mais atencioso ao vivo do que online. Josefina, porém, tinha esse hábito antigo de dizer sempre a alguém para onde ia. Há sempre alguém que sabe onde ela está.

amor

transformou-se na imagem dos olhos dele. muito mais bonita. inteira

cheiro a café

um garfo atravessado no pescoço
quis tirá-lo à força
não conseguiu
concentrou-se para abafar
a dor
conseguiu
pensou nas manhãs
quando se enfiava
na cama do avô
enquanto a avó fazia
o pequeno almoço
ficavam frente a frente
no quentinho dos lençóis
com as mãos juntas esticadas
tosta mista
debaixo da face
a dizer disparates
a inventar piadas

torneira

Foi à cozinha
beber um copo de água
e saltaram chamas do lava louças
vinham do ralo
deu um salto para trás
e um salto para a frente
para fechar a torneira
ficou pálida
assim que abria a torneira
voltavam as chamas
sonhou
foi à cozinha
beber um copo de água
e bebeu um copo de leite

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

na palma da mão

Josefina escreveu duas frases distintas em cada uma das palmas da mão e pediu-lhe para escolher: direita ou esquerda? Ele disse esquerda. Josefina virou o punho e abriu os dedos devagar. As pálpebras dele caíram. oh. Ela agarrou-se a ele. Sem reagir, ele manteve os braços quedos. "Ainda não sei".

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

baldes


o pai de uma amiga 
quis suas cinzas espalhadas
pela praia
assim foi, planaram e caíram
esqueceu-se da infância
das férias e da gritaria
entre primos
a areia pertence
aos bolos das crianças

algodão

Fui ver o mar
fui saber de mim
diante dele olhamos para trás
por dentro da retina
vemos quem somos
como nenhum outro espelho mostra
entorpecemos
ficamos em roupa interior
gasta pelo tempo


domingo, 9 de dezembro de 2012

culpa

deixou de se culpar. Foi um avanço gigante.

almoço

- vamos almoçar?
- duas sugestões.
- vamos almoçar a dois sítios?
- ahaha. De enfiada, se quiseres.
- ok. É a primeira vez.

teclar

Teclar
teclar
foi assim o dia todo
doem-me as pontas dos dedos
estou cansada
tac, tac, tac
abafado
não páro enquanto
não terminar
vai mudar o ritmo
dos dias
ficar mais acelerado pelas manhãs
pouco importa
andava lenta, a passo de caracol
ainda bem que não desisti
não me distraí
continuei
continuei
a teclar
teclar
estou indo

um ponto

Corria, desviava-se agilmente das pessoas à sua frente, e corria, sem parar. Depois dos degraus, na plataforma de cima, a vista. Os comboios que se aproximavam e ganhavam tamanho e os que partiam e perdiam. Ficava a vê-los desaparecerem num ponto. Entretanto, ouviu o seu nome e voltou. Fez o caminho inverso. O avô esperava-a. Não se zangava. Confiava. Voltava direitinha. A estação da Pampilhosa era assim na sua infância. Muito movimentada. Uma cidade de linhas férreas, onde se cruzavam centenas de desconhecidos e ouvia de cinco em cinco minutos informações de chegadas e partidas. Todos partiam.

o meu primeiro diário

Os emails permitem esse exercício fantástico que é mandar mensagens para nós próprios em meio segundo. Eu cá mando de tudo. Dicas de livros, músicas, álbuns, ideias para artigos, versos desgarrados, receitas, declarações de amor, conselhos de amigos, ruas a descobrir, coisas a evitar. Foi aí que dei por mim a pensar que estava a fazer dos emails que envio para mim própria uma espécie de diário, ainda que desorganizado, substituição de uma agenda de papel, que também tenho, igualmente repleta de rabiscos indecifráveis. Foi aí que decidi que vou oferecer diários às minhas sobrinhas. Vou encaderná-los e arranjar separadores para os capítulos aqui descritos. Obra caseira. Papéis lindos. Também tive os meus diários, um atrás do outro, quando era miúda. Não escrevia grandes prosas, um, dois parágrafos, fazia desenhos, colava recortes e dava-lhe legendas, guardava lembranças, sinais de interesses amorosos, mas lembro-me de olhar para eles e de achar que estava diante da caixa dos meus pensamentos mais preciosos. 





Pássaros

Há quem goste de animais como se fossem pessoas. De pessoas como se fossem objectos. De objectos como se fossem animais. E quem não saiba tratar de plantas. Devem ser abanadas para facilitar o processo de fotossíntese? Assim faço. Faço-o há muito tempo. Abro a janela e a cortina para que possam receber banhos de sol nos dias luminosos e abano as suas folhas e ramos de vez em quando. Mas não sei onde fui buscar a ideia. Pensando bem, saltou do mesmo sítio da dos apreciadores de aves. Quem gosta muito de pássaros, tem desejos acima da média.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

se cá nevasse

tenho saudades da neve
de lhe tocar, fazer bolas
de a ver desfazer a seguir
do frio firme que a acompanha.
das palmas das mãos a racharem
de conseguir ter certezas:
se estou quente no peito,
estou viva da silva.
A luz dos raios de sol reflectida na neve
enche-me de futuro.
Tenho saudades do que é raro.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

emails

- Escreveste-me pela primeira vez um email além do subject.
- não tinha reparado nisso. desculpa.
- foi preciso mandar-te um poema.
- pois foi.

ego grande, ego pequeno

Quando alguém de ego grande encontra alguém de ego pequeno é uma desgraça. Um engole o outro. Se alguém de ego médio encontra alguém de ego médio, entediam-se. Um ego grande nunca se interessa por um ego maior do que o seu. Um ego pequeno está sempre com medo de se deixar levar por um ego mínimo. Na luta de egos, aconselha-se discussão. Quanto mais viva for, mais perto ficam um do outro.

braços

Josefina tem fixação por braços. Uns braços bonitos são uma ponte. E atravessar pontes sempre foi a melhor parte das viagens longas de carro que fazia em família. Avisavam-na: "Vem lá uma ponte". Preparava-se para o momento. Abria até meio a janela do automóvel, inclinava a cabeça para a direita e deixava-se ficar. Foi assim enquanto vivia com os pais. Depois, depois, cresceu e substituiu as pontes por braços.

invisível

Chega a casa, abre a janela. Substitui os cigarros por um copo de vinho. Pega no copo. A música começa a tocar. Um embalo calmo. Simone abana-se e fecha os olhos. Viaja até ao pequeno almoço do outro dia. Esplanada da Senhora do Monte, na Graça. Estava frio, o nariz congelou e pingou. Ele falou sem parar. 80% contra 20%. Passou o tempo a limpar o nariz. Ouviu, ouviu. Simone esteve mais uma vez invisível. Só não é invisível quando chega a casa.

perfeitos

-Tem amores perfeitos?
- só amarelos.
- Hum, dessa cor não gosto.
de outra vez, nova florista.
- Tem amores perfeitos?
- estão esgotados, menina.
- desde quando?
- setembro. agora não se vendem.
- posso fazer uma encomenda?
- claro, passe na próxima semana.
na quinta-feira seguinte.
- já chegaram os amores perfeitos?
- vieram, têm duas cores.
-oh, deixe-me ver.
- então?
- de duas cores, nem pensar.
30 dias depois
- a da bicicleta não ficou de ir buscar os amores perfeitos?
(esqueci-me dos amores perfeitos na Almirante Reis)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

panelas e colheres

Para contrariar as dúvidas férteis, deu-lhe poesia. Da simples, básica. Nada de palavras difíceis para enfeitar as ideias. Baseada no elementar. Na lua, no vento e na claridade. Não resultou. Levou então as dúvidas a dar uma volta. Pegou na bicicleta e pedalou, pedalou, pedalou. Quando parou, ao pé do Tejo, percebeu. As dúvidas desfazem-se na cozinha, cozinhando.

deitar fora

Josefina tinha o vício de procurar a verdade. Era um vício velho. Até o escondia por vergonha. Vestia roupas alternativas e usava sabonetes de mel para disfarçar. Recusava o tema nas conversas de amigos. Entretanto, há uns anos descobriu novo epílogo para o processo. Quando descobria a verdade, deitava-a fora.

mais ou menos

- Está tudo mais ou menos?
- Menos hoje.
- Então?
- já que perguntaste.
- ontem foi de mais?
- hoje vai ser de menos.

fita métrica

Fomos medir a solidão. Josefina, casada, Dulce, divorciada, José, amante, Afonso, solteiro, Jorge, acompanhado. Tinha muitos centímetros. Descuidaram-se. Deixaram de falar na infância e nos medos pequeninos. Deixaram de falar sobre a solidão.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

quadrado

A adoração por triângulos começou na adolescência. Há sempre três lados na versão de uma história. Três dimensões. Há sempre três pessoas numa relação. Uma ex-namorada, uma ex-mulher, uma mãe, um pai, uma amiga, um amigo confidente, dependente ou simplesmente uma das pessoas conta a dobrar. Quatro pessoas são demais.

triângulo

São João da Talha não fica muito longe de Lisboa. Mas parece. Antes de chegar lá, tem de se passar pela desordem urbanística que rodeia a capital. Há rotundas e mais rotundas, faltam direcções em algumas saídas, um labirinto. Ao longe, porém, está sempre o Tejo, imenso. Quando parava o carro, pensava: lá está ele. Certinho. O pavilhão desportivo de São João da Talha fica escondido. Descobri-lo foi difícil. Quase desisti. Um segundo antes de decidir regressar a casa, insisti mais uma vez. Ao longe, eis que se avistou um triângulo gigante de um telhado. E foi só seguir a direcção. À porta, um grande graffiti, onde podia ler-se "não se escreve nas paredes", ilustrado por um dos miúdos de costas a escrever essa mesma frase. Lá dentro, frio. O interior do pavilhão tinha cimento à vista, não o chegaram a pintar. Era preto e branco. Nem eu nem o António tirámos o casaco e sentimos necessidade de esfregar as mangas do casaco com as mãos por várias vezes. Cruzadas, a direita na esquerda, a esquerda na direita. Ora começava ele ora eu. Na segunda parte do jogo, alguém gritou da plateia: Vai à bola Pedro Crivo. Em tempos, foi nome a dar a um filho. Achei que estava a ouvir mal. A equipa de hóquei patins vinha de Coimbra e podia ser ele. Tinha acabado de cumprimentar um dos melhores amigos do Rui, o meu ex-namorado. Na segunda vez, tive a certeza e fixei o miúdo. Era o filho do meu ex-namorado. Contei pelos dedos. Tinha seis anos. Alto, o miúdo. Mais alto do que os colegas, alto como o pai. Se era parecido com ele? Ainda bem que perguntam. É parecido comigo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

ataques de ternura

Há quem tenha ataques de pânico. Josefina tem ataques de ternura. Costumam acontecer quando está céu limpo ou muda os lençóis da cama. Pensando bem, sucedem noutras alturas, são frequentes após a sesta. As condições em que sucedem merecem ser estudadas. Defeito? Falha genética? Que chás se aconselham?

volume

Dulce tem novos vícios: ouvir música baixinho e dividir qualquer problema em dois. Descobriu uma maior capacidade de resolução havendo duas partes isoladas. Resultado: nascem duas respostas e vira-se para uma. Fácil. À outra parte tira-lhe o som.

agente principal

Ia chegando gente e mais gente à Praça Luís de Camões. Sentei-me nas escadas à espera. Treino há anos o exercício de espera. Antes andava sempre com um livro atrás e aproveitava e relia. Reservava as passagens novas para os ambientes caseiros. Hoje em dia, deixo-me ficar a olhar. Assim estava quando um sujeito se aproximou de mim. Perguntou-me se me chamava Dulce, se não o reconhecia. A voz rouca, sumida, era-me familiar, apenas a voz. Depois, rapidamente recuperei a memória. O João foi meu colega do ciclo. Da primária, pelo menos, não me lembro. Disse-me que eu estava igual. Disse-lhe que ele estava diferente, talvez por causa da careca, que desfigura a dimensão do rosto. Na minha memória ele foi o meu protector. Graças ao João, passava de cabeça erguida diante dos miúdos que gostavam de apalpar meninas durante a aula de educação física. Tudo aquilo se passava com a conivência do professor, que ninguém denunciava. Não se falando do assunto era como se ele não existisse. Comigo, aconteceu duas vezes. E parou. Descobri que tendo o João por perto, estava fora do alcance deles. Olhavam, mas não tinham coragem para me tocar. O João só se lembra dos disparates que dizíamos no regresso da escola para a casa. Ontem, fiquei a saber que é agente principal da PSP no comando responsável pela remoção dos cadáveres, em Lisboa, e é pai de duas filhas. Acabei por lhe dizer: "Também estás igual".

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

a meio da manhã

antes que a noite caia e me arrependa por não o ter feito, terminei a carta. Amanhã o pombo correio fará o resto. Vai fazê-la chegar até ti. Como gostava de ser pombo para ver a tua cara quando estiveres a ler a parte do meio. O princípio é directo e não diz nada de extraordinário. Mas no meio, solto-me, transformo-me num pássaro que descobre a janela e parte. Não vou conseguir saber se achas isto ou aquilo. Se sentes ou compreendes. Coisas radicalmente distintas nestas coisas dos amores. Não vou saber o que vai acontecer aquelas palavras. Quem me dera que as comas.

não quis ver

Tinha o casaco preso na escada rolante.
Baixou-se, joelhos no chão, cabeça enfiada
no degrau. Puxões e puxões, sem resultado.
uma e outra vez.
Não olhou para cima,
não queria ver quem o estaria a observar
a fazer aquela figura.
era eu quem o olhava,
Ele não me viu.
não existi.

quem tem medo de se perder

quem tem medo de se perder
não sabe que atrás daquela rua
está um bar pequenino,
discreto,
onde se comem broas caseiras
e se fala do dia em que tudo começou.


domingo, 7 de outubro de 2012

viarco

Começaram as aulas,
cadernos novos, cheiro a cartão,
lápis viarco.
passagem de ano é em setembro.
2013 já rola
e ando tão só à procura
do melhor
lugar
na sala

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

deixou cair os braços pelos ombros dela abaixo.
ela sentiu um peso sem peso em cima da sua pele.
eram leves.
nasceu um quente físico entre a barriga e o peito.
Abraçaram-se, sem deixar folga nenhuma.
Já estavam de camisolas de lã.
ainda fina.
eram vestes baratas
mas naquele momento
viraram caxemira.
ele ficou gago e disse-lhe
uma frase comum,
que ela esqueceu em dois minutos.
No taxi, continuou a digerir a informação.
Afinal, ele conhecia as músicas de cor
que ela conhecia.
Afinal, ele sabia tanto
do que ela sabia.
afinal, podemos saber o mesmo
e não saber da mesma maneira

terça-feira, 2 de outubro de 2012

instagram

- Se não queres ser minha amiga no Instagram, não me chateio.
Gostava era de saber o motivo.
- Não fui lá!
- Não fujas à questão. Andas a postar fotos em camisa de dormir,
rendeste-te?
- Ahahaha. O meu entendimento de sexy não deve coincidir
 com o teu... suspeito.
- Então?
- Para mim, os talhos são pornográficos.
Mudo de passeio, mal avisto um nas proximidades.

domingo, 30 de setembro de 2012

quente

Trouxe-lhe uma folha seca em formato de coração mal recortado. Não tinha dinheiro para mais aquele mês. O dentista ficou-lhe com a poupança de Agosto. Arminda pegou nela pelo caule e colocou-a no livro "Uma história do amor", de Nicole Krauss. Fez dela um marcador. Arminda transformava as folhas em marcadores de livros em miúda. Conhecia bem a textura, o cheiro que largam. Era frequente Joaquim fazê-la viajar mentalmente até uma zona de conforto qualquer. Tinha esse dom.

desafinado

Alberto era meticuloso no tipo de contacto que estabelecia com amigos novos. Erros do passado fizeram dele um sujeito cauteloso. Quando nos aproximamos muito, arriscamo-nos a descobrir manias estúpidas, falhas graves de carácter, aspectos perversos. Alberto preferia não explorar em demasia certos convívios e evitar chegar a esse ponto. Já tinha o baralho completo. Chegavam-lhe os amigos antigos. Os das suas preocupações. Já lhe davam tantas. No amor, porém, não conseguia travar o processo. Tinha uma curiosidade insaciável. Transportava para os sonhos o possível significado de uma frase atirada para o ar. Enchia-se de felicidade enquanto recordava o olhar deixado à foto da senhora do campo, pendurada no Povo, num segundo, para logo a seguir, questionar as neuroses, os traumas, as incoerências pequenas e grandes, e as mais complexas, as médias. Apaixonava-se pelos deslizes, pelas imperfeições, pelo lado desafinado. Por isso, amava muito mais a Dulce do que o Mário alguma vez gostaria.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

ploc, ploc

cortou as cebolas sem os óculos da piscina.
não se queria proteger desta vez.
cortou, picou, deu as voltas todas.
a cebola desfez-se,
meteu-se na panela,
deu sabor à sopa.
saiu para a mesa 7 uma sopa de lágrimas salgadas.

blá, blá

queria-te no meu silêncio.
não quiseste vir.
Falavas demais.


toc, toc

bateram à porta,
em vez de tocaram à campainha.
- quem é?
- sou a palavra de deus.
- deus não é meu amigo.
- trazemos um recado.
- não estou interessada.
- o mundo vai acabar amanhã.
- eu acabo com ele antes disso.
- deus quer fazer-lhe o almoço.
- almoço?
eis que surge uma nota por baixo da porta
- sou o pedro, trago morfina

separações

em cada separação há uma pequena morte.
algo morre para sempre,
ainda que fique perto de nós.
faça a mesma rua ou coma
o mesmo nestum com mel.
Sei que estará a meter a colher na boca
neste instante.
em cada separação, há um desencontro
um desencontro para sempre.


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Desaparecidos

Não estava ninguém na sala de espera. Um silêncio opaco. Em vez de duas pessoas na recepção, apenas uma, que demorou dois minutos a chegar. "Desculpe, já vou". Uma sensação de vazio. Há dois anos, Maria esperou 40 minutos para que lhe tirassem sangue das veias. Estava a sala repleta. Havia gente nos corredores com requisições verdes presas aos dedos. Ouvia-se falatório de quem se conhecia e de quem se ficou a conhecer naquela manhã, no laboratório de análises. Há dois anos, pairava a desconfiança, o fantasma, mas não sentia ainda a crise na pele. "O que se passa, é da greve do metro?". Abanou a cabeça ligeiramente para a esquerda e para a direita. "Agora é sempre assim. Evita-se o médico, não se fazem análises". O corredor do laboratório, sem quadros, despido, tinha crescido em comprimento. Maria sentou-se. "E os velhotes?". "Desapareceram".

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

vida

- as plantas morreram?
- não me parece que estejam a dormir.
- secaram.
- morreram.

Júpiter

Dois pesos. Ela leve que nem uma pena fina, fina. Ele pesado, chumbo compacto. Assim se encontraram. Se o encontro tivesse sido noutro dia, depois de ele ter tido um sono descansado, o resto da história teria tido outro rumo. mas não foi. Ele estava ansioso e não via a hora de chegar a casa, de se atirar para o sofá. estava dominado por uma inquietação em crescendo, efeito de um acumular de equívocos. um pontapé, atrás de outro pontapé. Estavam difíceis aqueles tempos no trabalho. Ele, desconcentrado. Ela, a pairar. Acabadinha de chegar de férias, Maria respirava devagar e os olhos pouco pestanejavam. a voz, meiga, um pouco arrastada. Resultado: ela percebeu o quanto stressado ele consegue ser. Ele concluiu: habitavam planetas diferentes.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

sesta

dormir à tarde faz de um dia dois.
por isso sou mais velho do que pareço,
por isso tanta tolerância,
por isso tanta compaixão.
Quem dorme pouco,
pode saber muito,
coleccionar sucessos,
mas é muito novo,
num corpo de velho.

intrigas

Na empresa da Josefina ninguém se conhece em carne e osso. Comunicam online, via skype. Há reuniões como em qualquer outra instituição, demasiadas reuniões. Emails que terminam em reticências, fazendo adivinhar um desfecho irónico. Enfim, dois meses bastaram para começarem a emergir intrigas. Josefina recebe emails oficiais do chefe e emails escritos entre parêntesis. Conversa através do gtalk com o Rui, e este manda-lhe presentes noite dentro: um poema ou uma fotografia tirada algures durante as viagens do passado. Josefina foi das primeiras a saber: Dulce vai ser despedida. O motivo? Diferenças inconciliáveis com os seus superiores. Dulce não respondia na hora aos emails. Não estava sempre online. Francisco, seu chefe directo, foi interpretando os atrasos com desconfiança.

a fotografia

O Jorge vive num quarto no Martim Moniz, um quarto com vista e uma pequena varanda, muito arejado, disse mais do que uma vez. Há décadas trabalhou ao pé da Avenida de Paris, foi o local onde trabalhou mais tempo e habituou-se às ruas e aos passeios largos. Os que são da sua geração conhece-os bem. Hoje é pedinte na mesma rua. Escolheu a entrada de um prédio próximo ao pingo doce e ali fica, cumprindo horário, como se trabalhasse no escritório do senhor Rosário, ainda fosse o estafeta de serviço. O dinheiro da pensão dá-lhe para pagar o quarto e comer uma sopa. O que lhe dão os amigos é para os extras, uma bifana, um pastel de bacalhau. É invejado pelos sem abrigo da zona. Fala com quem passa e recebe apertos de mão, além de moedas. Jorge tem família. Uma irmã, em Inglaterra, que não vê há 40 anos. Foi e não voltou. Este verão recebeu uma carta dela. Dizia-lhe que o vinha visitar e que ia trazer o sobrinho, acabado de formar. "Tenho um sobrinho médico", disse, com orgulho, enquanto encostava a mão ao peito. Jorge tem uns belos olhos azuis e apresenta-se aprumadinho. Quando ele desapareceu há um mês, a sua ausência notou-se. Esteve internado, no Santa Maria."Foram muito atenciosos comigo". A irmã, afinal, não veio. "Ela queria vir amparar-me, mas não pôde vir", disse. "Mandou-me uma fotografia".

gramática

As ideias atropelam-se umas às outras,
as palavras encavalitam-se e saem fora do sítio.
estarei cansada?
o cérebro pede folga e poesia,
versos soltos, intuições pouco sólidas, vagas.
Dou-lhe tudo o que me pede.
Devolve-me a minha vida.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

manif

o que sobressai de uma grande manifestação é a condição humana. somos todos iguais dentro da casa de banho e diante da injustiça. quem aprecia famosos, não percebe nada de manifestações.

gato ou cão

- Tia, quando se sabe se se gosta de alguém?
- hum, aí há gato. Conta lá.
- Não há gato, há cão.
- Ahahah.
- Começa por se pensar nessa pessoa.
- A toda a hora?
- No início, não. Vai aumentando de frequência.
- Só à noite, no começo, é isso?
- De noite, há menos ruídos e distracções, por isso a nossa cabeça se reserva a outro tipo de pensamentos. Diria que a poesia tem mais a ver com noites e manhãs.
- Ainda não percebi bem o que é a poesia.
- Leva o seu tempo.

Malditos

Jurar, jurar. Quem mais jura, mais mente, quem enaltece em exagero um aspecto, procura esconder algo se não dizer exactamente o contrário. As palavras traem as ideias em estado puras. Coitadas. Por elas, não seria assim. Fazem-lhes mau uso e lá estão elas a enganar toda a gente. Malditos.

apagador

A dor física é do pior que há. Tira a racionalidade a um filósofo. Perde-se a vista. Engole qualquer preocupação. Bem, por esse lado sobra uma parte boa. Vá lá. Depois da facada, vem a cicatriz, depois da cicatriz, a história para contar. Algumas apagam-se completamente, outras deixam rasto.

o dia a custo zero

Estava no seu dia a custo zero. Almoçar em casa, tarde no jardim, garrafa de água na mão, livro no saco, ao pé da prenda dele. Levou-a com ela. Dava-lhe um certo conforto tê-la por perto. Ninguém apareceu à hora combinada e ela agradeceu às árvores pelos atrasos. Estava tão bem caladinha. Falou demasiado a semana inteira, tinha gasto as 21 mil palavras disponíveis. Estava tudo certo, estava tudo certo, depois de estar tudo errado.

Pata

Enquanto ela falava, falava, os olhos dele acompanhavam cada vírgula. Ela inclinava a cabeça e ele reagia sempre com outro movimento qualquer. A cadela colou-se aos pés da Josefina assim que chegou à esplanada. Estacionou ali de forma familiar. Quando chegou a altura de ele dominar a conversa, Josefina colocou as mãos entre os joelhos, fazendo uma sandes. Assim ficou, ligeiramente inclinada para a frente. Tinha-lhe sido diagnosticado zona, não podia encostar as costas à cadeira. Soprava um vento suave e ela lembrou-se do quanto Miguel gostava de chuva e tempestades, tanto quanto ela se perde de amores pelo vento. Coisas que passam pela cabeça sem que se faça esforço algum. A Pata, o nome da cadela, mexeu-se um pouco. Tocou-lhe na perna. Josefina afagou-lhe o pêlo preto brilhante. Uma e duas vezes. Ou mais. Pedro, o seu dono, gostava de estrelas e sabia tudo sobre elas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

like

- não me deixes um like protocolar
- não o faria.
- porquê?
- ando a estudar as microdecisões e a tentar perceber como elas nos mudam a vida.
- e o que tem isso a ver com um like?
- já te explico. não são as decisões, em grande, que estiveram a marinar, antes de saírem cá para fora, que fazem a diferença. as pequenas já o fizeram. nem nos apercebemos disso.
- e o que tem isso a ver com um like?
- um like pode ser o princípio de uma microdecisão

costureira

as fantasias são feitas exactamente à nossa medida, são os filhos que os filhos não são

colchão pikolin

Apertou a folha na mão
até que se desfizesse
Estava seca
Mariana sabia que
tinha de sair da sua zona de conforto
deixar o bairro
Desfez-se em pedaços
Estaladiços
O seu cérebro estaria espalmado,
naquele instante,
como um colchão.
Mariana apanhou o comboio
da linha de Sintra e
saiu em Cascais.
Quando voltou,
as ideias estavam chocalhadas,
removidas e a decisão tomada
Não era preciso mudar nada por fora,
apenas por dentro





domingo, 9 de setembro de 2012

simples

Há músicas tristes que nos fazem felizes.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

substitutos

Fazia tudo aos pares. Tomava dois cafés seguidos, postava duas músicas de cada vez no facebook, saía sempre com duas pessoas em simultâneo, comia duas peças de fruta de enfiada, optava sempre por duas bolas de gelado. Fazia tudo aos pares, embora preferisse os números ímpares. Nasceu num dia ímpar, teve um filho num dia ímpar, foi operada num dia ímpar, sabia que iria morrer num dia ímpar. Fazia tudo aos pares com medo que alguma das partes falhasse.

Silêncio

José passou um mês, algures na Índia. Não sabia ao que ia. E encontrou um retiro espiritual destinado aos que querem limpar a mente. Durante 30 dias propôs-se conviver com 55 pessoas, abdicando do uso das palavras. Ali eram proibidas. Não podia falar. Apenas conhecia a Maria, a sua melhor amiga, que com ele aceitou a aventura de ir sem destino certo até onde fosse e lhes apetecesse e o dinheiro deixasse. Em dois dias, fez quatro, cinco amigos. A aproximação baseou-se nos olhares meigos e nas escolha do local para fazer as refeições. Dirigiam-se sempre para o mesmo canto. A meio do mês tinha-se habituado. Começou a ser natural escutar o estômago em funções. Passou a ouvir em bom som o que acontecia no interior do seu organismo. E os grupos foram-se solidificando. A dez dias do fim, Maria começou por se encostar ao ombro do Chris na altura da sobremesa. Ficavam colados e quietos. A seis dias do fim, faziam-no nas pausas dos passeios a pé. A três dias do fim, nos intervalos da exibição dos filmes. Mudos, claro. No último dia, abraçaram-se e despediram-se.






Cinco anos

- olá. parabéns!
- olá, olá. Parabéns?
- faz hoje cinco anos que acabámos.
- Só tu, como te foste lembrar disso.
- agora, a esta distância, foi bom ter acontecido, já viste?
- sei lá se foi bom, aconteceu. Fez sentido naquela altura. mas não te dou parabéns. que parvoíce.
- estás a chamar-me parva?
- estou
- ainda bem que acabámos.
- ainda bem que és parva
(caiu a ligação)
- caiu a chamada. Não és nada parva. eu é que sou parvo.
- somos dois parvos.
- vou desligar, ok?
- não consigo ser eu a desligar, já sabes.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

bilhete de avião

Josefina tirou férias do passado.

domingo, 1 de julho de 2012

azul açoriano

Passava o chuveiro em movimentos circulares por cima do coração. Uma e outra vez. Estava no banho e o ar embaciado. De repente, nasceu-lhe a imagem de um umbigo, um umbigo bem desenhado, pronto a crescer. À medida que foi alargando, alargando, começou a brotar água das profundezas e em pouco tempo formou-se um lago. Um lago tranquilo de azul açoriano. Foi então que deu por si a procurar o barco de papel que tinha dobrado na pastelaria Tifani, dois dias antes. Foi fácil encontrá-lo. Estava onde o tinha posto. Na primeira gaveta do armário. Pegou nele e, com a delicadeza mais fina que imaginou, colocou-o na água. Simples. Primeiro, houve equilíbrio. Depois veio o naufrágio. Pelo meio, um lago descontrolado, uma banheira oceano.

domingo, 27 de maio de 2012

cerejas

Come chocolates como quem come cerejas

quarta-feira, 18 de abril de 2012

o melhor pedaço

Felismina sempre deixou o melhor pedaço da lasanha para o fim. Aplicava a regra à sua vida. A melhor parte, fica para depois. Por vezes, tão depois, que nunca mais vinha. E se vinha, apressava-se a empurrá-la energicamente para a frente. Um dia, porém, o empurrão correu mal e deu por si a engolir a melhor garfada de lasanha, a que está próxima da borda, ligeiramente tostada. Ficou com a boca cheia. Enquanto a mastigava, os olhos abriram-se ao máximo do seu tamanho. Desfez-se na boca. Quando acabou, perguntou: é só isto?

sismo 2012

O encanto das lojas tradicionais seduz-me. Têm vida. Cheiro com identidade. Encontro marcas de um passado que não foi o meu, mas que sei que foi de todos. As lojas tradicionais são sobreviventes. Quando entro numa, sinto-me um sobrevivente, só não sei muito bem de que catástrofe.

noiva

Não gosto de protagonismo. Se casasse, nunca seria a noiva.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

tim tim por tim tim

José sentou-se e ficou ali de boca fechada. Ela queda ficou. José pediu um chá verde, pouco quente, e uma torrada com manteiga. E disse-lhe que não sabia como começar. Tinha uma coisa para lhe contar, mas não tinha descoberto o melhor início. Sentia um nó na garganta. Ela propôs-lhe uma ordem contrária: do fim para o princípio. José tentou. Fixava-a nos olhos e desistia. Não conseguia. Maria perguntou-lhe se ele estava decidido. Ele respondeu-lhe que não sabia, só tinha uma certeza, sem falar com ela não podia ficar. Passaram 15 minutos e nada. Maria tocou-lhe na mão e despediu-se. Não se pode esperar infinitamente pelas as palavras dos outros. Saiu dali convencida de que não havia nada a fazer. Andou em passo largo até casa, ultrapassou um jovem de calças descaídas com a roupa interior à vista. Ainda identificou os desenhos de umas gotas de água cinzentas. "Lágrimas?", passou-lhe pela cabeça. "Chuva ou lágrimas?". Quando chegou a casa, abriu o frigorífico, retirou um um iogurte liquido, fechou bem a porta e ligou o computador. Lá estava: um mail dele a contar tudo, tim, tim por tim, tim. Com os pormenores que ela jamais perguntaria. Escrevemos tanta coisa que não falamos. Falamos tanta coisa que nunca escreveríamos.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

coisas que se estragam

Só se estraga o que era bom
e se era bom, funcionava
e se funcionava, era útil
e se era útil, faz falta
e o que falta é o que nos move.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Árvores na cidade

São precisas mais árvores na cidade.
Os troncos fortes agarrados à terra inspiram certezas.
As folhas sujeitas ao vento dão-nos a banda sonora, embalam.
Não sei porque não plantam mais árvores na cidade
se sobram canteiros vazios.
Uma árvore não pede para ser levada a passear todos os dias,
nem obriga a uma muda da areia regular.
A árvore é a coisa mais simples que há.
E os seus ramos sempre foram o meu sonho de braços


sábado, 21 de janeiro de 2012

no dia em que cresceu

Quando a Dulce se olhou demorada e profundamente ao espelho, como lhe desafiou a Marta a fazer, descobriu uma nova percepção difícil de aceitar. Era um pouco feia. Pelo menos, menos bonita do que se imaginava na maior parte do tempo dos seus dias. O espelho de manchas castanho dourado que tinha à sua frente mostrava-lhe traços desequilibrados. Se se visse de fora, será que se apaixonaria por ela? Lembrou-se da sua avó, do que lhe dizia vezes sem conta. Da avó que tinha dificuldade em dizer a idade, por achar que o número não lhe pertencia. Dulce nunca teve problemas com a sua imagem. Sempre actuou como se fosse dotada de uma beleza mediana ou acima da média, caso se comparasse com quem costuma ver no metro à hora de ponta. Aos olhos dos outros, a forma como a fitavam, confirmavam-no. Achava ela. Lá em casa, a perspicácia, a reacção rápida, energia, e boa disposição bastavam. A vitalidade e o humor é que interessavam. No dia em que se observou de outra maneira, cresceu.

Inverno

Os amores de Inverno duram mais. Ninguém quer sair cedo da cama. Nem que seja pelo quentinho das mantas ou edredon. E dá-se tempo.

veste a minha pele

Somos muito mais bonitos por fora. As entranhas têm porcaria e cheiram mal se ficarem ao ar. A pele tapa tudo e protege. Esconde e deixa ver. A pele atrai.

morcego

No meu prédio, a média de idades, se me retirar das contas e aos vizinhos novos do rés-do-chão, é 90 anos de idade. Por isso, costumo encontrar alguém parado nas escadas com uma mão em cima do corrimão. São as pausas antes de mais três degraus. Não vivem ali crianças, cães, mas há um morcego e soube-o da forma mais improvável. Ouvi-o numa conversa na tasca do Jorge. Ele estava tão impressionado. O Jorge, um homem forte sem medo de malfeitores, estava com os olhos presos, nem pestanejava. Um morcego? Uma pessoa a quem chamam morcego. A neta da senhora Alice, falecida antes do Natal, ficou de arrumar as coisas da avó enquanto não se põe a casa à venda. E foi ficando. No outro dia, a vizinha Mariazinha foi lá pedir-lhe um ovo, fez-se convidada e entrou. Conta que o apartamento estava imundo. Amontoavam-se pacotes de comida na cozinha. Do que espreitou no quarto, a roupa estava organizada em montes. Parecia a casa de alguém que perdeu o tino. Telefonou à filha da Alice e ficou a saber de tudo. A sua sobrinha era estranha. Na família é conhecida como o morcego. Fala pouco, pinta os olhos de negro profundo, não convive com ninguém, à excepção do namorado, igualmente figura sinistra. "Ela não lava roupa, compra peças e mais peças, todas elas baratas". A Mariazinha viu um barata gigante a sair da cozinha e está preocupada com um ataque em massa. O prédio tem um morcego a viver no terceiro andar e eu nunca o vi subir as escadas.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

cão sem trela

Josefina sabia do quanto ele gostava dela. Durante o abraço, os seus joelhos falhavam. O que não percebia era a contradição. Não aparecia na hora combinada. Desmarcava. Estava sempre atarefado. Foi tolerante, tolerante, até um dia. Uma tarde atirou-lhe à cara as contradições e pôs um ponto final. Gostava muito dele, mas preferia estar com pessoas de quem gostava menos nesse Inverno. Não quer ter laços, dar conta da sua vida. Se for um cão sem dono, pode estar sem ladrar o tempo que lhe apetecer.