terça-feira, 11 de novembro de 2008

Pessoas

Quando estou mais em baixo, contava o Zé, volto a ler Fernando Pessoa. Ele é o guru dos solitários que têm gozo em sê-lo. Josefa via com distância essa realidade. Neste momento, tinha dois filhos, um marido ocupado que a fazia sentir mãe solteira e estava cada vez mais afastada dos amigos de sempre, que continuavam a sair à noite, a frequentar festas. Umas amigas de outros tempos tinham criado um colectivo de djs a que chamaram "Donas de casa aos pratos". Na primeira vez que ouviu o nome, até pensou que estavam a gozar com ela. Pois sempre coleccionou pratos, dos mais retro, aos modelos com mais design. Enfim, disse ao Zé que não sabia o que ler agora que tinha pouco tempo. Nada a animava. E o pior é que a maior parte das narrativas lhe pareciam demasiado fantasiosas. Chegou a dizer que até deu por si a pensar no outro dia se a valorização dos escritores e das suas obras não era uma atitude do século passado. "Porque são eles os heróis do intelecto?", questionou. O Zé acalmou-a. Elogiou as crianças, vivas e espertas, o trabalho onde ainda brilhava. O Zé disse-lhe que ela tinha tanta coisa boa a que se agarrar e fez-lhe ver que ele tinha muito menos motivos para acordar bem disposto. Ela deu-lhe razão. Ele foi lá dentro, fez um embrulho rápido com papel de jornal e deu-lhe um presente: "O rosto e as máscaras", poesia e prosa de Fernando Pessoa. Ela emprestou-lhe a Rita, de quatro anos, para ele passear um dia inteiro.

2 comentários:

Anónimo disse...

Que grande coração, o da Josefa, emprestar assim uma Rita catita... que vale bem mais do 2 Pessoas:)!

Anónimo disse...

E por que são os escritores os heróis do intelecto? "Os romances são os sonhos da Humanidade- e se não houvesse romances a Humanidade seria muito mais louca do que já é"; por exemplo, "Dr.Jekyll and Mr. Hyde, por que é que é tão famoso? Porque pôs em palavras algo que todos os humanos sabiam, mas que não podíamos saber conscientemente, porque não tínhamos palavras para nomeá-lo, e que é uma verdade básica- que dentro de nós mesmos há muitas pessoas." Rosa Montero dixit.