quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Não morreste do coração

Desde que me lembro de ser gente que corri para as urgências do hospital com as crises de saúde da minha avó. De repente, um simples telefonema trocava as voltas à vida da minha família. Ela, apesar de já estar habituada, reagia sempre como se fosse dessa que ia morrer. Despediu-se vezes sem conta. Despedi-me vezes sem conta. Mais ainda sofreu a minha mãe que falava com os médicos e escondia os piores diagnósticos, aguentando sozinha aquela angústia que a incerteza da vida ou morte dá. Quando cresci, fiquei com parte do fardo da minha mama. Por uma questão geográfica passei eu a tratar das idas ao hospital. Transportei-a de carro várias vezes sem saber se se aguentava até lá chegar ou se teria sido melhor esperar pela ambulância. Quando se colocou a hipótese de uma operação ao coração, a minha avó quis, corajosamente, fazê-la. Havia muitos riscos. Foi mais uma despedida. Nunca me esquecerei das suas pernas magras que desapareceram no elevador. Seguiu-se o recobro, cenas de situação limite, com novos furos nos pulmões, sangue a jorrar para garrafões, desfibrilador, a conversa com o cirurgião chefe de que se poderia ter de desistir e desligar a máquina. Mas ela recuperou. Depois, em poucos dias, voltou ao que era no seu melhor. O dia mais feliz da minha vida foi quando saí com ela do hospital. Tenho na minha cabeça a foto que não se tirou: na porta principal dos HUC, eu a empurrá-la na cadeira de rodas e as duas a olharmos para a paisagem como se fossse a mais bela das vistas. O que não é, na verdade. Ao lado, estava o meu namorado que, disse, nessa época, que aquele também tinha sido um dos momentos mais intensos da sua existência. Ele adorava a minha avó. Mas não foi do coração que ela morreu. Viveu mais 10 anos, seguiram-se muitas mais idas às urgências, até que um dia lhe doeu outra coisa. Tinha tirado essa semana para passar umas férias com ela. E ela teve uma dor insuportável na primeira madrugada. Ainda me lembro de pensar enquanto lhe tentava arranjar a melhor posição: "Não pode estar a acontecer, estamos de férias e ela ontem estava tão bem disposta. Não pode ser nada que não se resolva". Como se queixava mais do que era costume e mal se conseguia mexer, chamei uma ambulância. Andou ainda noutra até Coimbra e eu fiz essa viagem com ela. Ainda hoje não posso ver ambulâncias naquele caminho sem me passar. Daquela vez, os médicos disseram que seria uma coisa simples, pois não se tratava do coração, mas do pâncreas. Melhorou, piorou, voltou várias vezes aos cuidados intensivos. Dei-lhe comida na boca seca quando os olhos já não me reconheciam. Despedi-me várias vezes dela. Ainda melhorou e chegou a contar histórias a mim e ao meu irmão a ponto de eu achar que estaríamos a ponto de ver "Nealva 2", como quando foi a operação ao coração. Mas acabou por morrer. Amanhã faz 2 anos e por acaso marcaram-me um electrocardiograma.

2 comentários:

Anónimo disse...

O teu coração é lindo e vai portar-se muito bem, verás!

Anónimo disse...

A tua avó era uma pessoa maravilhosa e eu gostava das sopas dela.