quinta-feira, 8 de novembro de 2012

agente principal

Ia chegando gente e mais gente à Praça Luís de Camões. Sentei-me nas escadas à espera. Treino há anos o exercício de espera. Antes andava sempre com um livro atrás e aproveitava e relia. Reservava as passagens novas para os ambientes caseiros. Hoje em dia, deixo-me ficar a olhar. Assim estava quando um sujeito se aproximou de mim. Perguntou-me se me chamava Dulce, se não o reconhecia. A voz rouca, sumida, era-me familiar, apenas a voz. Depois, rapidamente recuperei a memória. O João foi meu colega do ciclo. Da primária, pelo menos, não me lembro. Disse-me que eu estava igual. Disse-lhe que ele estava diferente, talvez por causa da careca, que desfigura a dimensão do rosto. Na minha memória ele foi o meu protector. Graças ao João, passava de cabeça erguida diante dos miúdos que gostavam de apalpar meninas durante a aula de educação física. Tudo aquilo se passava com a conivência do professor, que ninguém denunciava. Não se falando do assunto era como se ele não existisse. Comigo, aconteceu duas vezes. E parou. Descobri que tendo o João por perto, estava fora do alcance deles. Olhavam, mas não tinham coragem para me tocar. O João só se lembra dos disparates que dizíamos no regresso da escola para a casa. Ontem, fiquei a saber que é agente principal da PSP no comando responsável pela remoção dos cadáveres, em Lisboa, e é pai de duas filhas. Acabei por lhe dizer: "Também estás igual".

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