terça-feira, 5 de outubro de 2010

Nuvem em cima da cabeça

Silvia vivia mais um dilema típico seu: continuar a fazer de parva, de desentendida, para ver o que aquilo dava, ou saltar fora, sem rede. O tempo das conversas soltas na cama deram lugar a monólogos sem direcção. Luís começou a poupar palavras como se economizasse dinheiro em tempo de austeridade económica. E ela resolveu ser entertainer sem plateia. Contava as suas histórias, ao seu ritmo, gracejava se fosse caso disso, e mesmo que ele se mostrasse absolutamente desligado, continuava. Desde o despedimento do Luís que este mudou, e a relação deles foi-se ressentindo. O novo emprego, numa agência de comunicação rendia-lhe mais dinheiro, é certo. Mas o Luís deixou de ser a pessoa animada e criativa da altura em que era jornalista e em que ia para os copos. A Silvia chegava dizer que não percebia como algumas mulheres não gostavam de ver os maridos a chegar tarde a casa. Ela adorava. Ele vinha sempre com vontade de a compensar da ausência e normalmente nessas noites havia boas movimentações na cama. O Luís não abusava na bebida, por isso, esqueçam lá o mau hálito e os suores intensos. Não havia disso. Em pouco tempo o Luís começou a viver como se andasse sempre com um nuvem carregada em cima da cabeça. E a Silvia só conseguia ter bons momentos com ele, quando dessa nuvem caía chuva e ele falava, falava. Em pouco mais de seis meses, Silvia deu por si a pensar se estava para aturar aquilo. Aguentar alguém assim por mais um tempo para ver se alguma coisa mudava, se o Luís, sacudido por alguém, sei lá, por um acontecimento qualquer, voltava ao que era ou deixava pelo menos aquele autismo nível cinco. Ou, ir-se embora para evitar aquela dor que é ver um amor esmorecer, ficar moribundo, em coma, a entrar no forno crematório. Claro que a Silvia tentou alertá-lo para o que se estava a passar. Porém, como é costume nestes casos, ele estava cego, preso aos seus problemas e reduziu o resto e ela, principalmente, a uma ninharia. Luís passou, entretanto, a estar sempre cansado para a brincadeira na cama. E ela foi desistindo de puxar por ele. Ainda assim, sentindo aquela relação a desgastar-se, Silvia continuou o seu show off: contava-lhe os momentos cómicos do seu dia, continuava a mostrar-lhe os novos temas descobertos por acaso no Youtube. De falar pouco, a importar-se pouco com ela, fez-se um percurso rápido. Um dia ela sentiu-o tão desligado, tão pateticamente centrado no seu umbigo, e percebeu: o melhor era ir-se embora. E foi.

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