quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Odeio talhos

Rita explicava ao Pedro o motivo da sua ocupação constante. Estava sempre a fazer alguma coisa, a programar o que se seguiria, a planear mesmo o que sabia que não tinha condições para cumprir. Noutros tempos não era assim e sofria. Agora não. Optou por andar distraída. A distracção - agora distração por causa do novo acordo ortográfico, que também muda muitas palavras até aqui com hífen - entretém e evita pensamentos relacionados com a morte. "Estou aqui, mas posso não estar e não estarei qualquer dia", dizia ao Pedro. "Quando olho da janela e procuro céu azul, procuro deitar-me nele, como se tivesse acabado de estender a toalha de praia num dia de sol". Antes não. O azul imenso invadia-lhe o cérebro, fazendo-a pensar em tudo de forma nua e crua. Em poucos segundos, ficava dominada pela tristeza. Evitava as montras de talho, tinha o cuidado de passar para o outro lado quando avistava alguma, pela mesma razão. Carne exposta daquela maneira é pornografia. Agora sim, continuava a contar ao Pedro. Não tinha tempo para depressões. O Pedro perguntou-lhe então: "E não te cansas?". Rita encolheu um pouco os ombros e depois de uma pausa, atirou: "Claro, mas antes cansada que morta".

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