terça-feira, 9 de julho de 2024

lente misteriosa

Quando pegou nos óculos percebeu logo que algo se passava. Poucos segundos depois, a lente caiu. Pegou nela e tentou colocá-la no sítio, ajustando-a à armação. Ali se instalou mas não a 100%. Colocou os óculos em cima do nariz e percebeu que estava a ver uns riscos fora do comum. Não estavam lá antes. Na loja explicam-lhe que a lente está riscada, com ums inscriação particular. É um "A", dizem-lhe. Alguém desenhou um "A" na lente. Coçou a cabeça. Os filhos chamam-se António, Amélia e Alberto. Podia ter sido qualquer um. Já em casa, decalcou a letra e agora procura o autor da caligrafia.

Preciosa

Faz 100 anos mas não quer festejar a data. Os filhos, os netos e os bisnetos nem que insistiram com ela. Podia ser um jantar discreto, curto, com comida trazida do restaurante. Apenas a sobremesa ficaria por sua conta: arroz doce, pouco doce, e com ingredientes do século passado. Preciosa preferiu fazer o que faz todos os dias, almoço vegan, sesta curta, passeio em sapatilhas Geox pelas redondezas, três ou quatro telefonemas para os filhos para saber se estão bem, telejornal às 20 horas. Os filhos vieram dar-lhe um beijo especial antes do jantar. Depois do jantar comeu arroz doce, viu um episódio do Seinfeld e deitou-se. Não quis festa: Coincide com os 50 anos da morte do marido. "E o que é que os vizinhos iriam pensar? E a família? E os amigos da vila?". O filho respondeu-lhe: "Já ninguém está cá, mama!.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

dedo

Júlia sabe que está prestes a beijar, Treinou ao espelho, na boneca da infância, na toalha de banho na sua mão, e na mão da melhor amiga, Júlia prevê que não vai gostar, deve ser parecido com colocar o dedo no nariz.

morada

Moro dentro e fora do meu corpo. Descobri quando saio da natação. Deixei o corpo lá. Boia na água azul. Saio sozinha, sem ele, eu estou fora.

terça-feira, 9 de junho de 2020

mudei de casa

A poesia,
a pausa,
o gozo de estar a observar
a minha rua
depois de a ter deixado
para sempre
porque mudei de casa

calçar as sapatilhas

A poesia,
a poesia ensina-se
a lidar com o visível
que há dentro
de mim
e que torno
invisível a cada dia
que calço as sapatos

Serra de Malcata

A minha filha ouve muito bem,
sai a mim
Ouço cada parcela de vidro
que parte
como se fosse
um predicado de uma frase
forte que se separa do sujeito
Ouço os carros eléctricos
O barulho da lavagem
dos dentes do vizinho
Sei quando cospe
e quando limpa
o rosto à toalha de banho
Já a avisei:
Ouvir bem tem inconvenientes:
aprendemos que ouvir
cada som ínfimo
revela um mundo
composto por mais barulho
do que melodias
e que o ruído sinaliza
obstáculo, perturbação, e ruptura
Quando não ouvi nada
no interior da Serra de Malcata
Não havia pássaros, insectos,
um vento leve que fosse
que abanasse uma folha
Nunca tinha escutado nada assim
Assim não tinha escutado nada
Ainda bem que ela dormia
sossegada
Enquanto eu tenho medo
ela dorme

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

hospital 2

Tinha um cabelo aos caracóis
como outrora foi imagem de marca
do Marco Paulo
uns olhos azuis cintilantes
que não eram bonitos
porque assustavam
assim que nos fixavam
umas mãos fortes e musculadas
de quem trabalhou
com elas e sobre elas a vida toda
e gestos de menino
contido e envergonhado
o Alfredo visitava todos os dias
a senhora da cama do meio


Hospital 1

Todos estão sozinhos
numa cama de hospital
a simpatia dos profissionais
é empacotada
as arrastadeiras
arrastam as mulheres
para o tempo
das trevas
os médicos não se apresentam
e falam pouco
as visitas jeovás
falam muito
e oferecessem-se
para cortar a fruta
A minha fruta,
digo-lhes eu,
corto-a
com os dentes,
não gosto de facas

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

frio

desejo o frio
como desejo as mudanças
assim que vem
divirto-me à brava
com as suas exigências sazonais
desejo o frio
porque
sinto mais com ele o
calor do corpo
do que
sem ele